sábado, fevereiro 28, 2009

ENTRE SAN JUAN E MENDOZA, TEM A VIAGEM

Por Enéas de Souza


Tenho tentado aqui desenhar o possível caminho da economia americana; e com algumas pinturas, também o da economia mundial. Um exercício de imaginação baseado nas tendências das forças econômicas e suas potencialidades para responder a crise. Tenho colocado, com cores quentes, que estamos saindo de um modelo de acumulação financeira para um modelo de acumulação produtiva. Então, temos no mapa o ponto de partida e vislumbramos o ponto de chegada. O problema é a da passagem de um ponto a outro, como aquela do ovo à omelete. E o grande passo foi dado por Obama e sua equipe: definir o plano de vôo e a estratégia a seguir. Ou seja, o governo disse: basta de desenvolver a esfera financeira do capital. Mas, é claro, que não basta dizer que o bom, que o doce, que o dinheiro do almoço e do jantar das pessoas virá da esfera produtiva. Não basta somente pensar em investir nela, para que tudo saia bem, para que o mundo econômico das finanças e dos serviços se construa, para que o emprego resplandeça. Porque a produção também está vindo a baixo. E o pior: temos uma espiral descendente e a pendente negativa continua sucumbindo. A reversão ainda não se deu, ainda tem muito espaço para chegar ao chão do ciclo.

O leitor duvida? Olhe companheiro, já estamos falando à náusea do movimento entrópico das duas esferas citadas. Aonde dominam as finanças, além dos dinamitados ativos financeiros que continuam a ocupar a moita, ou seja, o balanço dos bancos, a gente se acautela diante dos hedge funds e dos fundos de pensões, ameaçados que estão por títulos sem valor, pela queda progressiva dos preços das ações e pela volubilidade das commodities. O vento do temporal ainda está presente. A verdade é que o Banco Central (FED) está atento a tudo isso e existem recursos para ir girando o barco. Dinheiro público naturalmente. Mas a religião econômica é como a religião católica: não basta comprar as indulgências ou receber recursos do FED para chegar ao caminho do céu. Depois desta asa da economia temos a esfera produtiva e seus dois núcleos de acumulação, os imóveis e os automóveis, que desabaram, sem piedade, como lutadores nocauteados. E a queda destes mercados produziu um efeito catastrófico sobre a cadeia que sustentava produtivamente estes dois centros. Portanto, examinando o corpo fraturado da economia, vemos que estamos no meio de um processo de desvalorização do capital. As finanças desprecificando os ativos financeiros e a produção torrando as mercadorias ou não podendo vendê-las. Basta ver a queda dos preços dos imóveis e o tempo necessário para que o estoque de novas habitações seja absorvido pelo mercado. (Dê uma olhada no gráfico de quinta-feira do André).

Então, temos o ponto de partida: a decomposição do modelo de acumulação financeira, que funcionava com as finanças puxando o consumo de forma empinada, pois os salários ajudados pelas rendas financeiras o punham lá no alto. E como o consumo tinha vigor, as empresas se destacavam em desenhar novos projetos de investimento. Pois este modelo tombou, vencido, pelo excesso de especulação, que é a essência da atividade financeira. E o que o Obama e sua equipe fizeram foi montar uma estratégia para inverter este modelo. Antes de tudo, dar prioridade ao investimento produtivo e não à aplicação em papéis. Como as empresas estão receosas e a lucratividade esperada está no calcanhar, o jogo é tocar na frente o investimento público para impulsionar a dinâmica econômica. Do investimento público virá o investimento privado e como uma onda do mar que chega à praia, o efeito atingirá o emprego. E o consumo, como um balão de São João, poderá voltar a crescer e a subir. E sem deixar de ter mercados próprios, as finanças estarão articuladas ao setor produtivo, via a expansão do crédito.

Até mesmo desenhei, dado o esfalfamento cíclico da atual estrutura tecnológica, um novo paradigma industrial, que começasse pela renovação da infra-estrutura energética com efeitos tecnológicos sobre todo o sistema. Mas o que gostaria de frisar, de salientar e de trazer à discussão é o problema do tempo. Do tempo-rei como diria o Gilberto Gil. Ou seja, a passagem de um modelo a outro exige uma transformação que tem que percorrer uma viagem, um caminho, um itinerário. A passagem da semente a fruto requer metamorfoses mais ou menos demoradas. Pois é o nosso caso: quanto tempo levará para que os capitais se desvalorizem, tanto o financeiro quanto o produtivo? Quanto tempo levará para que se reformulem as tecnologias do novo padrão industrial? Quanto tempo levará para que se consiga armar um novo sistema financeiro? Quanto tempo levará, mesmo com apoio público, para que as forças que fazem o ciclo progredir alcancem a magia do círculo vicioso? Quanto tempo levará para que se invertam as estruturas do modelo financeiro de acumulação? E, igualmente, é preciso saber que este modelo financeiro trabalhava internacionalmente com dois déficits gêmeos e o modelo produtivo vai ter que trabalhar com a exportação tanto produtiva quanto financeira. Logo, quanto tempo levará para que a torção de um modelo a outro dê origem a uma nova economia internacional? Então, os apressados das soluções têm que compreender que entre o ponto de partida e o ponto de chegada existe a dimensão da trajetória. E ao contrário da semente que chega a fruto, na economia, a passagem de um modelo a outro se dá por meio de duros combates sociais, de acertos e erros, de avanços e de recuos. Sim, já avançamos alguma coisa, talvez o básico: temos estratégia. Temos quase tudo, falta apenas a versão material desta estratégia. O que é a mesma coisa que dizer que falta tudo: falta livrar-se do declínio cíclico e falta construir uma longa e imprevisível trajetória.

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