quinta-feira, maio 27, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
27 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS

O ESTRANHO
DA CRISE:
DEZ SEGUNDOS
PARA O INFERNO
Por Enéas de Souza


DANÇANDO NAS NUVENS

Se a gente dá uma chegada na crise – porque para a maioria das pessoas a crise está muito longe, tão longe quanto qualquer boteco do outro lado da cidade, ou seja, quase noutro planeta – o negócio parece assustador. E naturalmente, muitas vezes chego a desconfiar das minhas análises. Não se trata de enxergar errado. Se trata de ver que as pessoas te olham como se fosse um ser do outro mundo. Mas, acho que, de fato, uma das funções dos economistas é pôr a estranheza no meio do cotidiano. Não é pôr o bode na sala, não. É fazer a pessoa achar que aquilo que ela pensa que é familiar, corriqueiro, tem uma baita coisa diferente. Freud falava muito bem sobre isso. Só que em termos de inconsciente. Não. O que quero dizer é um pouco outra coisa. Pensando bem, acho que vem do Freud mesmo. Lembra o leitor ocasional aquela história de quando o autor de “O mal-estar da cultura” estava numa estação ferroviária? E de repente, viu na janela do trem uma figura horrorosa, que achou medonha. Algo assim como: “que velho desagradável”. E mesmo quem não conhece a trama, já adivinhou: o velho medonho era ele mesmo, Freud. Pois, estou pensando nisso: a economia está como o cadáver de Polinices na peça Antígona de Sófocles: apodrecendo. E é isso que é o estranho, com o mundo saltitante, ao menos neste lado do Altântico. Vocês não lembram um seminário que a Globonews pretendeu fazer e que tinha no título a idéia de pós-crise? QUÁ, QUA, QUÁ, QUÁ. Todo mundo tem o direito de errar, mas pensar burramente é outra coisa. Daí a gente vê que os financistas, os políticos, os jornalistas, os economistas estão dançando nas nuvens, nem sabem a fera que está escondida na selva da crise.

DE COMO A POLÍTICA AMERICANA TRATA A CRISE FINANCEIRA

1) Olhe bem o leitor. A economia americana que estava saltitante e feliz como a banhista do quadro de Picasso, entrou em débâcle e encontrou a sua feiúra: quebra de bancos, gente perdendo muito dinheiro, diretores de instituições financeiras ganhando, por ano, o que eu, você e o Ronaldinho Gaúcho não ganhamos em cinco anos. E mais, e o principal: a produção despencando, o emprego sumindo, os emigrantes voltando. Uma economia financeira que manda no Estado, que diz via lobbies no Congresso o que ela quer. E o mundo para eles é o lugar da sua impávida arrogância: nós não vamos ceder em nada. Leiam os debates dos congressistas, leiam o noticiário sobre o assunto. Das finanças, temos que esperar a fome de lucros especulativos. E de outro lado, o Executivo, teoricamente com a liderança do processo querendo reorganizar a sociedade americana, mas alcançando resultados pífios. Parece que foi aceita apenas uma agência para defesa do contribuinte, um controle leve sobre esta medusa da agência de ratings, etc. Coisas mínimas. Pois, os pontos fundamentais – regulação, separação entre bancos comerciais e bancos de investimento, nível de capital para suportar os riscos, tratamento do “to big to fail”, agir em operações arriscadas com o seu próprio dinheiro, a eliminação desta dinamite que é o Credit Swaps Default, etc. – nada disso passou.

2) Acho que me excedi dizendo que os projetos não incidiram sobre a regulação. Sim, porque os congressistas – um bom número deles ligados às instituições financeiras – disseram: “Preferimos a regulação do que controlar o tamanho dos bancos”. Tradução: os acidentes de percurso do movimento do capital financeiro vão acontecer outra vez. É questão de tempo. (Basta ver que os comentaristas da crise grega e européia falam que muitos bancos americanos, por ligações misteriosas com os bancos europeus, estão “embuchados” – ou expostos, na linguagem financeira – com ativos gregos.) Em homenagem à Grécia, cutuco a minha lembrança de Heráclito, que começava um aforismo com estas palavras: “Este mundo, o mesmo para todos, é um fogo imensamente vivo, que se acende e se apaga com medida”. Talvez as finanças sejam estudiosas de grego...

O EURO NEM ERA UMA VERDADEIRA MOEDA

1) Passo para a Europa. Encaminho o leitor para o seguinte: vamos dar uma olhada na torção liberal e conservadora no modo como ela examina a questão. O que eles dizem é que os Estados – a Grécia, principalmente – foram desleixados, gastaram demais, etc. O caso pode começar a ser entendido com uma primeira pergunta: “O que é a Europa, hoje?” A Europa é, antes de mais nada, uma construção falha do capital financeiro. As finanças, inclusive européias, botaram na cabeça de alguns países que era legal fazer um Estados Unidos da Europa. E que o negócio devia dar partida com uma moeda única, o euro. Em tese, esta tese seria efetivamente uma boa idéia. Mas só se ela fosse acompanhada por uma construção política: união monetária, coordenação fiscal ou tesouro europeu e Estado da Europa. Pois é notório que não é uma moeda que sustenta uma comunidade, é uma comunidade que sustenta uma moeda. Mas, o que aconteceu foi outro filme: a lábia dos capitais e o olho dos políticos foram maior que a realidade. E o que tivemos: apenas a superfície, apenas a casca de uma comunidade. Na verdade, nem uma moeda mesmo foi construída.

2) Então, vejamos: se uma moeda tem três funções – meio de troca, medida de valores e reserva de valor – o euro só cumpria duas. Porque como já falamos insistentemente em nossos trabalhos, para que uma moeda possa ser uma moeda moderna – uma moeda financeira – ela tem que estar sustentada, tanto por um Banco Central, que define a taxa básica de juros e a sua valorização, como por um Tesouro, que garante esta valorização por intermédio dos títulos deste Tesouro, assegurando com essa estrutura estatal a função de reserva de valor. Assim se enxerga com clareza, econômica e politicamente, a necessidade que a Europa para ser um Estados Unidos da Europa tinha que ser uma UNIÃO POLÍTICA!

DE COMO AS FINANÇAS QUISERAM MANDAR NA EUROPA

1) A Europa era então apenas uma “união monetária” e cada Estado, que não dominava a moeda, tinha que garanti-la com o seu Tesouro. Então, a moeda européia tinha uma taxa de juros definida pelo Banco Central Europeu e muitos “tesourinhos”, cada um na sua fragilidade, “garantindo” a moeda única. E nessa estrutura, os bancos emprestavam para os Estados sem controle nenhum. E os Estados menos favorecidos, tendo perdido o controle da economia, tentavam compensar a perda de instrumentos, como consequência desse arranjo monetário, através de um endividamento que garantia sob forma de gastos seja o crescimento seja o emprego.

2) Contudo, a última perfídia das finanças foi sustentar a idéia de que foram os Estados que quebraram. Quando em verdade, os Estados estão quebrando porque eles estão salvando os bancos. Pois quem o pacote europeu está tirando do buraco, de fato, são os bancos. E por quê? Porque estes bancos não têm capital para sustentar, como todo bom banco, uma proposta de reestruturação das dívidas destes países. Forçaram o endividamento e a especulação sabendo que, no limite, as dívidas passariam dos Estados menores para o “bailout” da Europa. Assim, a Alemanha, a durona, teve que entrar na questão porque os seus bancos estavam metidos no buraco e poderiam quebrar. A loura germânica foi saindo como severa, mas bem que escondia a capa protetora.

Entre parêntese: o ministro Schäulbe, ministro das finanças da Alemanha, está propondo regulamentação e uma taxa para as finanças. Mas, “was ist dass?” Uma manobra para esconder a salvação escandalosa de bancos europeus e americanos. Sabe-se que o Morgan Chase e o Citicorp tinham expressivas aplicações no “affair europeu”. Portanto, o “Expresso Berlim”, como diria Jacques Tourneur, se parar para investigações vai verificar que desta ferida pode exalar ainda muito pus. Só que dada a velocidade dos acontecimentos europeus, o temor é outro, muito mais grave. No seu último livro, “Humilhação”, Philip Roth inicia seu romance com o capítulo “Sem deixar vestígio” da seguinte maneira: “Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. (...)”. O escritor está falando sobre um ator de teatro, mas faço uma pergunta: o autor americano não poderia estar narrando sobre outro personagem? Sim, sobre um outro personagem chamado capital financeiro? Poderia ou não poderia? Só que o título do capítulo não deveria ser “Sem deixar vestígio”, porque, mesmo sem ainda ter estourado, a bomba de retardamento está visivelmente a ponto de explodir, deixando as pessoas sem emprego e outras com salários reduzidos. Tinha um filme de Samuel Fuller com um título expressivo: “Ten seconds to Hell” (“Dez segundos para o Inferno”), contando a história dos caras que desmanchavam bombas na Berlim da 2ª Guerra Mundial. Como em “Guerra ao Terror” da Kathryn Bigelow. A turma das decisões econômicas e políticas continua decidindo como se Keynes nunca tivesse existido.

OS SINOS DOBRAM PELAS FINANÇAS?

Assim, a crise financeira não terminou nos Estados Unidos. E prossegue e desaba na Europa. E faltam medidas de todas as ordens, sobretudo, tratando de regulação, nova estrutura financeira, separação de instituições, níveis de capital, crédito para produção e não para a especulação – e, portanto, a metamorfose de uma economia de acumulação de capital fictício para uma economia de acumulação produtiva. Nesse barco faltam a transformação da liderança tecnológica, a construção da liderança de indústrias com novas tecnologias, a transformação da base energética, a criação de indústrias vinculadas ao meio ambiente, etc. Falta a construção de um novo Estado não submetido às finanças. Na Europa falta um Estado europeu, um Estado para todos e não um Estado para o Capital. Ou seja, o importante é distinguir que a trajetória da nova economia começa por interromper a fatalidade das finanças. Pois, o excesso financeiro – hybris, como diria a cultura da Grécia antiga – caminha com velocidade de míssil na rota da depressão. Ou seja, parece que a política não está conseguindo – está impedindo até – que a economia canalize o seu desastre cíclico para uma distinta e diferente economia. Tudo porque a cristandade das finanças quer que a sua hegemonia seja respeitada. Só que ela é uma hegemonia cega, bêbada e corrompida. E o destino de quem não enxerga é aquele de esbarrar contra qualquer obstáculo que leva a uma perturbada e fulminante contusão. Para mim, fica cada vez mais claro que a proposta de Keynes da “eutanásia do rentista” vai ser substituída por uma realidade mais explosiva: a autodestruição das finanças. E sob o som e a fúria, sob o signo de Escorpião ou sob o olho de Marte, mesmo na possibilidade de todos contra todos, um novo Estado vai surgir. Temos que lutar mais do que nunca pela sua democracia.

quinta-feira, maio 20, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
20 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS

VAMOS PARA
A DEPRESSÃO?
Por Enéas de Souza



O TIRO DAS FINANÇAS NÃO VAI AONDE ELA QUER

Não se pode ver a crise da Europa isoladamente e culpar a Grécia como o bode expiatório da realidade. É preciso ver que isso tudo faz parte da instalação das finanças no comando do mundo. Mas, hoje, é ela quem está caindo. E, contudo, como fera acuada, as finanças estão manobrando para pôr nos governos a culpa; empurrar para a população os custos; e assumirem, com a astúcia de vítima, um pouco mais, o domínio político-econômico das regiões. E, ameaçam. Sim, ameaçam. Ameaçam com um ataque de gavião, onde a sua garra financeira, fulminante, rasga e dilacera. Trata-se de uma garra que tem o nome de especulação. E que traz um ás escondido, uma receita econômica preferida: corte de gastos, diminuição de salários dos funcionários públicos, liquidação dos regimes de aposentadorias, aumento de impostos sobre os bens de consumo, etc., visando uma falsa estabilização. E, olha a perfídia das mentes traiçoeiras e das bactérias oportunistas: em nome de que os governos vão ter menos receitas, porque este plano é obviamente deflacionário, contracionista, dobram a aposta e retornam, num segundo tempo, a um novo movimento especulativo, ameaçando os governos e as nações de uma crise sem precedente. Mas, o resultado final não será o que eles almejam, porque sempre pensam individualmente. E o que é bom para um capital, não é para todos – e muito menos para todos os países. Então, este jogo não será aquele de um tiro no pé, vai ser o de um tiro no próprio peito.

A BALA ARMADA

O grave problema é que de um lado, os governos, tendo criado a desregulamentação dos mercados financeiros, ao ouvirem a sedução das finanças, se encontram hoje impedidos – por estarem ligados a este setor – de tomarem medidas extremas para re-haver o controle público da economia. Exemplo: poderiam definir uma regulamentação para as finanças; interditarem vários tipos de operações e títulos; poderiam nacionalizar os bancos; e poderiam, ponto supremo da mais extrema audácia, estatizar os bancos. Então, dada a impossibilidade destas medidas, abrem-se aos famosos e ditos planos de austeridade e, logo, às avenidas tensas e críticas da revolta social. E olhe, leitor perseverante, elas já estão vagando pela Grécia. Num passe de temor, podem incendiar outros países ameaçados: Espanha, Portugal e Itália. Como também já se sentem comichões pela França. Porém, com olhos míopes dos governos pelas idéias neoliberais e pela terapia da austeridade buscam dar uma medicina “amarga, mas necessária” como os cortes e os aumentos que já falamos acima. Como é que não querem que se diga que os Estados continuam na mão dos mercados? É a visão dos Arsène Lupin das finanças. Que vão acabar por recuperar no social o mito de Robin Hood, que Ridley Scott está exibindo agora nos cinemas do mundo. Vê-se que o cinema é capaz de funcionar como metáfora dos eventos econômicos. E tudo se passa, através da indústria midiática da ideologia, como se os bancos não tivessem participado do excesso de crédito oferecido aos Estados. As instituições financeiras querem enrolar a quem? Terapia da austeridade é aperitivo para novas especulações, é transferência de renda do Estado e da população para as finanças. E, obviamente, é a bala armada para o tiro no peito.

QUE ESTADO AS FINANÇAS CONSTRUÍRAM?

É preciso analisar o tema dentro da dinâmica do capital e da organização da política em função do triunfo progressivo, desde os anos 70, do setor financeiro. O primeiro movimento foi criar um desfavorecimento à área produtiva via uma taxa de juros imbatível – uma taxa de rendimento do capital aplicado nos mercados financeiros – em face da expectativa dos resultados futuros dos investimentos produtivos. Esta hegemonia tornou o setor financeiro um sugador de recursos do setor produtivo e dos trabalhadores. Já o segundo movimento foi garantir que as políticas monetárias e financeiras, e mesmo fiscais, fossem todas na direção do incentivo às finanças privadas. E a ação forte, como um ferro abrasador, foi dominar os governos, separando a área econômica da influência da atividade política normal. Os bancos centrais passaram, de uma forma ou de outra, a assumir um papel de independência e de autonomia em relação aos executivos. E em muitos deles, a própria Fazenda (chamadas de Finanças ou Tesouro em alguns países), como propugnador das políticas financeiras do próprio sistema. Criou-se o Estado Financeiro em toda a sua dimensão hegemônica e coercitiva. O ápice deste movimento foi, certamente, a desregulamentação que permitiu inúmeros fatos: alavancagens absurdamente perigosas; nenhum controle sobre os níveis de capital para solucionar aplicações podres; possibilidades quase infindáveis de securitizações que elevavam as apostas financeiras alargadas teoricamente ao infinito. E, sobretudo, à combinação ou ao conúbio espúrio entre os bancos comerciais e os bancos de investimento que davam insegurança aos depósitos e margens amplas para especulações devastadoras, como estas que não afrontam apenas aos investidores e aos bancos, mas ao próprio e ao garantidor em última instância, o Estado. É a visão contemporânea da sentença romana “delenda Cartago”. Porém o que se escuta é a voz do último desejo das Finanças.

O VÍRUS DA ESPECULAÇÃO NA SOCIEDADE

Pois com as finanças soltas como cães danados na noite das sociedades, o crédito foi praticamente direcionado para as especulações, e a financeirização assumiu a sociedade em todos os níveis: na esfera da produção, via governança corporativa e o princípio do valor acionário; na esfera do governo com ataques aos orçamentos, déficits e dívida pública. E, como desdobramento lógico desta dominância, o ataque frontal à remuneração de funcionários públicos e assalariados. Ora, se combinarmos esta reboldosa com a estrutura do Estado financeiro temos a gênese da culpa que os banqueiros e a imprensa de plantão acusam: a “farra” do endividamento. É isso que os economistas conservadores chamam de que “os governos e pessoas viviam acima das suas possibilidades”, que eles faziam festa com o dinheiro dos outros... Como se os bancos não tivessem nenhuma participação nessa “farra” e usassem seu próprio dinheiro nesse processo e nesse clima. Na verdade, é preciso verificar que a ideologia das finanças invadiu o Estado e invadiu a sociedade. E criou um sistema lamentável, onde o futuro é desconsiderado pelo presente, onde o investimento só surge por efeito do exagero do consumo. E agora que amputam os gastos públicos e privado, botam os Estados em quarentena. E não nos enganemos, olhando bem, as finanças se vestem neste carnaval tétrico com a fantasia de bactéria oportunista.

A INSANIDADE COMO POLÍTICA ECONÔMICA

1) Desta forma, na crise de 2007, quando as finanças americanas foram atropeladas por elas mesmas e quando o Estado teve que salvar os bancos, elas, as finanças, ficaram muito agradecidas e comovidas, e voltaram, como gangsters de filmes dos anos 30, a ameaçar a sociedade e o governo de Obama, com recusas de mudanças do sistema financeiro e com novas especulações, sobretudo atravessando a economia globalizada. Assalto puro: revólver na cabeça. Porém, o neoliberalismo não era uma propriedade americana, estava impregnado como um carrapato em toda parte. Perniciosamente, esta classe dominante continuou tentando viver como antigamente. E, naturalmente, depois de demolir os Estados Unidos, faltava desmontar o outro lado do Atlântico. Já na crise americana, vários bancos ingleses, alemães, franceses, suíços, tiveram problemas. Mas, as armações, verdadeiras bombas de retardamento, estavam inseridas em todo o sistema.

2) Pois agora, em 2010, o estouro se deu ali no canto mais pobre, porém berço da civilização ocidental, a Grécia. E com isso pôs a descoberto vários aspectos. O primeiro deles que o euro era uma moeda capenga e coxa, que, como escrevi no SUL 21, parodiando Machado de Assis, mostrava-se como uma Vênus Manca. A nudez mostrou tudo: a Europa como União Monetária não é um vestido que se sustente, pois nenhuma moeda sobrevive às crises cíclicas sem Tesouro. Mais, em segundo lugar, o que falta à Europa, além das etapas da consolidação fiscal é o projeto de construção de uma União Política. Sem isso não há solução definitiva dos problemas econômicos e sociais europeus. Então, parece que a insanidade está valendo como política econômica em tempos de crise. Ela está toda inteira nisso: jogar as infelizes nações a uma política conservadora de cortes públicos, de baixas de salários, de inanição de investimentos públicos e privados, de desemprego, etc., como se essas idéias fizessem parte de uma solução salvadora, além de ser a única e a insubstituível. Olha só o palpite infeliz da dona Ângela Merkel: a solidariedade e a solidez das economias são irmãs. E diz isso sem enrubescer e quando a crise explodiu. A Alemanha está inventando a teoria da destruição como forma de solidariedade. Talvez uma outra forma de se apoiar na pulsão de morte de Sigmund Freud, ou ainda, na transformação da postura econômica de Schumpeter em teoria política: a destruição criadora... Keynes poderia falar do seu túmulo: “Frau Merkel, o que liga o futuro ao presente é o investimento”.

E AGORA, EUROPA? E AGORA, MUNDO?

Vamos para a depressão? É a pergunta inquietante que brota desta crise americana e européia. Serão os Estados capazes de se distanciarem desta fração da classe dominante que querem exaurir todos os recursos públicos em nome de sua salvação? Como a política vai gerir esta crise econômica profunda? Combater algumas operações dos especuladores como quer a Alemanha é apemas um modestíssimo começo. Os conflitos estão à flor da pele, vamos ver se surgem os estadistas que nos faltaram até agora. E é preciso ver como a população vai ser tratada na política que virá. Sobretudo, se sabendo que o caminho da renovação está claro: um novo Estado, uma nova arquitetura financeira, um novo retorno à separação entre o banco comercial e o banco de investimento, uma nova relação finanças-produção, uma nova onda de investimentos baseadas nas novas tecnologias, e, sobretudo, uma nova política de empregos e de proteção social e uma nova política cultural e uma política ambiental. Fácil de escrever, difícil de realizar. Porque, obviamente, as ações e os gestos são políticos. O que é certo é que, neste caminho, por mais nítido que pareça, não será feito sem grandes solavancos. As cabeças estão a prêmio, mas as armas ainda não começaram a disparar no rumo certo. Estamos entre os romances de Marçal Aquino e os filmes de Michael Mann. Pode-se até dizer que o clima é mais dramático, mais duro com o coração da gente. Tem o tom da película de Sidney Lumet “Antes que o diabo saiba que você está morto”, se a gente quiser enxergar esta questão social e histórica do ponto de vista pessoal.

quinta-feira, maio 13, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
13 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS

A EUROPA
OLHOU
O ABISMO
Por Enéas de Souza


A FALÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA EUROPA

1)A Europa olhou o abismo antes de o abismo chegar. O tombo grego parecia ter uma volúpia inexcedível. Principalmente porque a Europa estava inerte, parada, o corpo com uma rigidez quase cadavérica. Dª Ângela Merkel não compreendeu a dimensão de uma liderança. Um líder é esculpido por uma estratégia. E por menos apoio que tenha ou por mais que precise realizar, não pode perder um momento de eminência de vitória e de poder e de realização. Mesmo que esta vitória lhe custe problemas futuros. Pois, ela, Ângela Merkel, na hora decisiva, diante de uma perda eleitoral na Alemanha, justamente por sua posição favorável na questão grega, acabou indo assistir a comemoração da derrota nazi-fascista exatamente da 2ª Guerra Mundial, em Moscou. Que fuga mais séria! Não encarar o caso grego e descuidar da herança hegeliana: a de olhar o negativo no rosto. Naturalmente que ir à capital russa seria importante em tempos normais, mas, não nesse fim de semana, decisivo, inconfundível para a Europa. Resultado: Ângela Merkel complicou-se, enroscou-se, e candidamente - para não dizer, quase simploriamente - decidiu ir ver a parada russa e os girassóis de Putin, permitindo que sua possível liderança, ao alcance da mão, escorresse pelo week-end perdido no convívio com Dimitri Medvedev.

2) Ora, Dª Ângela! Não seria a hora de dar uma resposta vasta, de fazer um gesto amplo e de marcar atitude profunda? Ou seja: não se tratava de assumir, com os cofres recheados da nação européia que melhor resolveu a situação econômica, a liderança do processo de metamorfose da Europa? Dar, de fato, uma de estadista? Dito de outra forma: não seria o caso de buscar a união e a solidariedade para um projeto e um planejamento da Europa – de uma Europa do crescimento, e não de uma Europa da contração fiscal? Mas, Ângela Merkel não soube ser a líder que a Europa precisava. E o pacote europeu saiu à custo, um pouco empurrado por Obama. Sim, ele salvou, no momento, a Grécia e a própria Europa. Contudo foi um pacote burocrático, quase que orientado pelos bancos, por gente de cabeça financeira, que tem objetivos claros: austeridade, ajustes fiscais e contração da economia. Enfim, uma política de casa de família, uma política doméstica. No máximo uma política de supermercado. Mas, uma política que possa pagar, no fim das contas e nos prazos fatais, os juros que contabilizam as finanças nos empréstimos e nas especulações.

3)Faltou, portanto, alguém que fosse o estadista do momento, o político que empunhasse a bandeira da reformulação do velho continente e que saltasse para a mudança do Estado nacional na direção de uma unidade política da região. Claro, tudo isso tem seu tempo, tem que ser feito no longo prazo. O que obviamente poderia ser colocada era uma proposta que começasse agora; com passos precisos na construção de um Fundo ou de um Fisco europeu. Algo mais do que esta coisa contábil, como quer fazer a Comissão Européia, a de examinar os orçamentos nacionais. O ponto chave da hora presente é dar substância ao euro como moeda financeira, já que ele tem apenas a cara de moeda: o Banco Central Europeu (BCE) fixa apenas a taxa de juro. Só que o avesso da cara é a coroa, que simplesmente inexiste. E a coroa é extremamente importante, é a garantia que só um Tesouro - e teria que ser um Tesouro da Europa - pode dar aos aplicadores em títulos públicos da região. Sem isso não existe moeda, porque a moeda tem que ter cara e tem que ter coroa.

4) Mas, a Europa teria que ir mais longe do que uma moeda com cara e coroa. Teria que cultivar uma estratégia para uma trajetória de desenvolvimento. Sarkozy, que enxergou a situação, não tem nem bala, nem visão suficiente na cartucheira. E seguramente, nem dinheiro necessário para ocasião. No entanto, poderia fazer um duo com Ângela Merkel, como em outros momentos fizera. Se esta percebesse estaria instalada a hegemonia franco-germânica. O momento, em todo caso, não era dele, era dela. E Ângela Merkel, que não enxergou o sucesso que lhe estava reservado, não visualizou a liderança da Alemanha, perdendo-se nas filigranas da política interna. A bola esteve por mais de dois meses picando na sua frente. E a terra de Bach não achou a melodia que precisava. E, no palco da política, os concertos de Bradenburgo viraram valsas do Danúbio. Dizendo mais claramente, sobre o duo França-Alemanha, nem a música clássica alemã, nem a canção francesa emplacaram ou se completaram. Como diria o cantor francês Georges Brassens, quem ganhou foram “Les oiseaux de passage” Naturalmente, que “os pássaros de passagem” foram, mais uma vez, os bancos. E veio ao contrário de uma estratégia de desenvolvimento uma política na direção da recessão.

PARA O EURO NÃO SE DESMANCHAR NO AR

1)
O que aconteceu na Europa foi grave e mostrou a sua verdadeira vulnerabilidade. Por ter uma moeda acima das nações, ela tinha um falso seguro, a potência européia. Nada mais equivocado, porque a Europa é um conjunto de países, dispersos, todos separados. Eduardo Lourenço, um pensador português, sempre disse: ”Nossa história é aquela de uma guerra civil perpétua”. Como conseqüência, o euro pairava no ar, bailando na ponta da taxa de juros. Sim, porque uma moeda financeira tem que ter banco central para definir a taxa de valorização das aplicações financeiras, mas tem que ter também uma instituição que garanta minimamente esta valorização. Melhor, que permita que essa moeda cumpra plenamente a função de reserva de valor. A moeda como reserva de valor aglutina, então, a taxa de valorização e o instrumento que cauciona a percepção deste valor. E quem garante esta parte da moeda é o título de uma entidade pública. A Europa tem Banco Central (BCE), mas não tem Tesouro; logo, não tem quem sustente a segunda dimensão da moeda como reserva de valor. Os países europeus têm tesouros particulares, que por si só não garantem qualquer título europeu, só podem garantir, se tiverem com dívidas e déficits controlados, os seus próprios títulos.. Logo, o euro atual é um vôo de Icaro. Tenta decolar da montanha mas vem a baixo. Olhando bem, o euro não é uma moeda financeira, é uma moeda parcial, uma promessa de pagamento que quando a economia entra em crise é apenas uma máscara de moeda. Só o conjunto dos governos, reunidos e acuados, tomando decisões em fim de semana e em fim de noite, podem, quase no desespero, garantir, por algum tempo a mais, a sua efetividade.

2) Para que o euro se sustentasse, havia a necessidade de algum fundo, já que não tinha fisco nenhum por trás. E foi isso que a Alemanha não enxergou, com sua mentalidade de punição e austeridade. Ficou apenas falando na Grécia, onde os conservadores, de veras, tinham exacerbado a corrupção e o gasto. Quando se deu conta de que ela também ficaria, ainda que longinquamente, na linha de tiro; quando percebeu que a Europa iria dançar a valsa do dominó; concordou com o movimento geral de criar um fundo de 750 bilhões de euros, quase 1 trilhão de dólares. Foram 60 da Comissão Européia, 440 dos países membros e mais 250 do FMI. Claro, isso não é dinheiro posto sobre a mesa, trata-se de uma garantia, de um montante colocado à disposição, para que os europeus possam enfrentar os mares altos que vão cair sobre as praias do verão europeu: Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda ou Itália. Ou, sobre qualquer outro país que possa ser visado pela especulação. E daí os leitores são capazes de compreender o pequeno pensamento da posição alemã. Ela estava conjeturando unicamente em si, em manter a sua boa posição econômica, os seus consagrados excedentes comerciais e os seus não tão habilidosos bancos. E, como a exigência de um mestre severo, a Alemanha falava ininterruptamente em austeridade e em condicionalidades à Grécia. Precisou o Obama telefonar para a Ângela Merker e dizer: “Como é, vais deixar a Europa e os Estados Unidos, por tabela, virem abaixo?”. Obama tocou no tema do contágio. Foi assim que só restou aprovar o pacote que atendia a toda Europa.

3) Ficou claro, então que a moeda européia era pasto para as finanças fazerem o seu rapa. Mesmo porque era uma boa: as nações faziam as dívidas com os seus bancos e com bancos estrangeiros. E tudo facilitado, taxas de juros baixas e liquidez relativamete abundante do BCE. Resultado: uma mistura e uma promiscuidade, relações perigosas diria Choderlos de Laclos, entre bancos e Estado. E, naturalmente, sob o guarda-chuva do Banco Central Europeu. Só que nesses últimos tempos, quem estava à perigo eram os Estados como já vimos. Em primeiro lugar, o grego. Depois os bancos deste país e os bancos dos demais países europeus. E, enquanto o caldeirão fervia, os especuladores atiçavam as taxas de juros para cima. Fogo contra fogo. Pergunta: quem pode salvar a Grécia? Quem poderia salvar os bancos? Resposta: em princípio, os Estados. Mas, se os Estados estavam ameaçados, quem poderia salvá-los? Os bancos? Claro que não! Então, só os Estados mais poderosos (Alemanha, Franca, etc). Só a Europa em conjunto, em profunda solidariedade Só ela teria munição para o pacote. E assim ele foi feito. Não se pode esquecer que houve uma arma que a impelia a ação: estavam em jogo os seus bancos. No caso grego, os bancos alemães tinham 27 bi aplicados lá, os franceses 50, a Itália, 20. Não tinha escolha: a Grécia e os bancos tinham que ser salvos. E seus bancos, e no limites estes generosos países. Como se vê esta conjunção carnal, “Estados europeus e bancos”, não pode dar certo sem que haja uma força maior, um Banco Central junto com um Tesouro. Ou ao menos um fundo salvador. Isso foi decidido de sexta a domingo em Bruxelas, enquanto Dª Ângela estava olhando os girassóis na Rússia. E por uma boa causa: uma parada anti nazi-fascista.

4) Ora, para cortar os raios da tempestade teve que haver algumas manobras. Primeiro, se não se tinha fisco, logo tinha que haver um fundo. E isto foi realizado. O tal do pacote de empréstimo. E ao mesmo tempo, se programou uma ação forte, sob a vigilância do FMI, de fazer uma “prensa” fiscal, um ajuste com fortes pitadas de austeridade, em primeiro lugar nos gregos. Será possível que isso possa ter êxito? Talvez. Mas, de qualquer modo, ficou constatado que a Europa vai ter que achar um jeito de construir algo como um Fundo ou um Tesouro,.se não o cachimbo vai cair. Segundo, o Banco Central Europeu para ter capacidade de dar liquidez aos títulos privados e públicos, que emperravam o interbancário, por exemplo, recebeu ajuda do FED, que colocou à disposição “Swaps”, para fornecer dólares ao BCE.. Então, o FED funcionou como o emprestador em última instância, assim como a Comunidade Européia (Comissão e mais os países e mais o FMI) funcionou como o Tesouro do não-Tesouro europeu. E cada vez ficou mais evidente: o dólar é a única e verdadeira moeda da economia globalizada. (Pode o leitor ver quem será ameaçado se a Europa tombar nos mercados?)

5) Logo, o tema é simples, mas o caminho efetivo é complexo: 1) há que construir a fiscalidade européia, há que fazer um Estado europeu, há que construir uma moeda. Uma baita trajetória a palmilhar. 2) Há que pensar num projeto de crescimento para a Europa, e consequentemente para a Grécia, porque caso contrário: “sabe quando a Grécia vai se levantar da sua crise?” Nunca. 3) Há que achar uma liderança para o projeto porque Alemanha não será a líder: a sua política, para a Grécia e para os outros países ameaçados, é somente contração de gastos públicos, diminuição da remuneração e de vantagens dos funcionários, aumento de impostos, queda de preços e salários nos produtos exportados. Conclusão: como é que vai ocorrer a recuperação da economia grega e européia? 4) Há que fazer com que Alemanha perceba que ela é o país que tem que inverter a sua posição; que tem de puxar a demanda efetiva, e não desampará-la. Só que ela não quer perder as receitas de exportações, não quer sair do seu controle fiscal, não quer perder o seu Estado de equilíbrio, seja lá o que isso for; A Alemanha sonhou tanto com um domínio sob a Europa, que agora quando poderia liderá-la, vai ficar presa ao seu passado de austeridade fiscal. 5) Há que mostrar à Europa que está em jogo um volume intenso de tendências deflacionistas, cujo caminho segue o ônibus da “Depressão”. 6) Há que reverter o domínio das finanças sobre o euro, por isso é indispensável fazer da Europa um Estado forte, sob que forma for. Pode-se partir da atual questão fiscal para se atingir uma entidade política mais ampla. Mas quanto tempo levará a se implantar esta idéia? Vinte, trinta, quarenta anos? Ou nunca. Portanto; 7), há que de qualquer maneira, de qualquer jeito, fortalecer a unidade política frágil deste conjunto de países em conflito secular. Contudo, o cheque mate de todas ações está nisso: deixar de ser prisioneira dos seus bancos, mesmo que eles sejam públicos. A política tem que voltar a imperar sobre as falsas premissas econômicas, notadamente aquelas contracionistas. A verdadeira salvação dos Estados é a concertação de um projeto de crescimento e desenvolvimento.

SE O MEU MUNDO CAIR

Como se vê a crise financeira mundial, que desabou sobre os Estados Unidos, agora bota incêndio na Europa. E se a gestão da crise for mal conduzida, ela avançará pelo eixo Inglaterra-Estados Unidos. o que nos levaria à inevitabilidade da depressão. Vale, portanto, a lembrança da velha palavra de Maisa; “se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”.

quinta-feira, maio 06, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
06 de abril de 2010
COLUNA DAS QUINTAS

OBAMA
COMEÇA
A ROMPER
O CERCO


Por Enéas de Souza


SÓ EXISTE UMA APOSTA

1)
Obama está conseguindo furar o cerco que levou no primeiro ano de seu governo. Isto quer dizer que, depois de muito tempo, começou a produzir atos visando à realização de sua estratégia. Deixou de lado o campo da observação e do constrangimento para lutar por seus objetivos políticos Em primeiro lugar, conseguiu uma semi-vitória, a aprovação do seu Healthcare, que significou, no concreto, uma melhoria de vida para 32 milhões de pessoas. Foi uma semi-vitória, porque não alcançou a universalização dos serviços médicos. Mas, para um país avesso à presença do Estado na economia, a aprovação deste projeto se constituiu, obviamente num passo para os pobres - de um modo geral deserdados no maior potência econômica do mundo. Não há dúvida, o resultado foi espetacular. E Obama, percebendo-se um herói vitaminado, sentiu-se com poder, amparado simbolicamente, para iniciar o longo processo de combate e de solução da questão financeira.

2) Mas, há que considerar o estilo de Obama. Antes de mais nada, Obama é um estrategista. Tem bem claro a sua política e os pontos que organizam a sua ação. O alvo do seu empreendimento é o retorno a um liberalismo econômico e político, através da reorganização do capitalismo. Significa, sem hesitação, desmontar este absurdo capitalismo financeiro, que embora seja um “finance led growth” (as finanças conduzindo ao crescimento), na verdade é muito mais transferência de renda para as finanças do que crescimento, Bom, este é o ponto chave: desmontar as finanças para as finanças. Desartiular um sistema financeiro que deixava apenas sobras miúdas à produção e à camada popular da sociedade. Logo, está em pauta, uma nova batucada e um novo objetivo, uma estratégia de longo prazo. Pretende Obama que as finanças aportem o seu mel para a atividade produtiva. E se esta proposição tiver sucesso e ela ocorrer, teremos a retomada de um capitalismo industrial como centro da economia. E ele virá, não liderado pelas velhas indústrias, mas com outras alavancas e com outros pontos de impulso. Pode-se dizer que terá o seu rosto baseado numa ampliação e numa maturação das novas tecnologias de informação e comunicação, acompanhadas, porque necessária econômica e ambientalmente, de uma transformação da matriz e da infra-estrutura energética. Nesta reviravolta fundamental, o segredo das jóias é a reposição das finanças como motor do financiamento da produção. Ou seja, o que está na ronda da noite e na roda do samba é a estratégia de longo prazo de Obama.

A POLÍTICA DO LONGO PRAZO

No campo político, o objetivo de longo prazo de Obama é retomar e reformar o capitalismo e desenvolver uma forma democrática peculiar, estruturando-o para a paz. Claro, “si vis pacem para bellum” (“se queres a paz prepara-te para a guerra”), pois a estrutura política dos homens – e não seria diferente do capitalismo - não é outra do que uma estrutura de conflito. Nessa visão, os Estados Unidos continuariam a sua liderança, partindo do seu poder militar (apenas como potência, evitando o esforço bélico), e enjambrando no bojo desta força, o poder político e o poder ideológico. Tal manobra daria tempo para reformular a liderança econômica, cuja substância viria da sua vanguarda tecnológica. Embora pareça claro, para os próprios americanos, que eles vão partilhar uma menor figuração no crescimento do PIB mundial, o que lhe interessa é manter o domínio da ordem econômica a partir do político. Eles estão dispostos a tolerarem as presenças renovadas da China e dos emergentes (incluindo o Brasil), tanto na ordem econômica e política, mas não abrem mão da sua “vocação de liderança”. E dada as configurações bélicas, Obama propõe, então, uma liderança militar pela paz, reformulando o mapa do mundo, começando com acordos nucleares com a Rússia, harmonizando o Oriente Médio e tentando trabalhar cooperativamente com os países líderes dos diversos continentes, Por via da política há um objetivo estratégico nítido, a reformulação do capitalismo, com inovações tecnológicas significativas, sob a liderança dos Estados Unidos.

A UTOPIA DE OBAMA

A visão idílico-realista de Obama leva-o a atuar, pelo menos imediatamente, em três frentes: 1. na frente econômica; jogando, por sua vez, três pontos chaves: a desmontagem das finanças, a reorganização das relações com a China e a abertura para o longo prazo na questão energética; 2. na frente da política externa, onde o ponto chave é a construção um outro tipo de liderança, através de um reposicionamento da Europa; de uma estabilização da frente nuclear, ao mesmo tempo, que recompõe um novo equilíbrio na questão do Oriente Médio. De um lado deslocando o eixo da guerra para o Afeganistão e de outro, tentando dar novos contornos ao tema Israel-Palestina, contendo Israel e diminuindo o voluntarismo do Irã. 3) na frente da realidade social americana. Aqui as ações visam à metamorfose da economia a curto e longo prazo, o que significa no primeiro aspecto recuperar o emprego, e no segundo, proporcionar uma proteção maior aos cidadãos comuns americanos.

E O ESTADO COMO FICA?

Nesses três pontos, está embutida uma tentativa de reorganização do Estado. O princípio que gera este movimento é a tentativa de fazer dele, algo independente do capital – basicamente do capital financeiro. Embora pretenda ser, e continue a ser, aliado de diversas facções desta figura econômica da sociedade (de tal forma que possa ser um Estado pró-capital), tem, distintamente, um alvo superior. Tem um “up grade”. tem uma grande proposição: o de querer poder controlar e ser o regulador político dos mercados. Notoriamente, não tem objetivo de ser um Estado social-democrata, mas um Estado capitalista com preocupações sociais - um pouco mais marcantes do que as do governo Buch. Ou seja, um Estado onde as desigualdades entre as classes não atinja o nível selvagem deste capitalismo financeiro. Então, este desenho estatal tem como movimento prioritário a manutenção modificada do capitalismo. E passa, como seria esperado, por uma liderança internacional, onde vai desfazer-se das idéias de unilateralismo dos “neocons”, assumindo um lado liberal mais clássico. Com essa rota, o governo de Obama e os Estdos Unidos se preparam para dar uma ordem política ao mundo, enquanto se preparam para reencontrar o caminho econômico. Nesta trajetórias está em projeto uma disputa e uma reordenação das relações Ocidente e Oriente, baseados, ao menos em intenção explícita, num confronto pacífico com a China. E esta certamente vai colaborar, pela forma do seu governo e de suas instituições políticas, com o reforço do papel do Estado em todo o Ocidente e nos Estados Unidos. O que não estão excluídas rugas num tempo mais distante.

A OPOSIÇÃO CAPITALISTA A OBAMA

1) A questão básica é, no entanto, as diversas frações políticas e econômicas que se opõem à Obama. Ele está cercado. E por essa razão vai ter que matar um leão a cada tarefa. Tem diante de si grandes combates. É verdade que agora está se sentindo com mínimas forças sociais para encarar os monstros. No meu modo de ver, ele tem pelo menos três frentes complexas para desbastar: a área financeira, a área militar e a área energética.

2) A questão financeira é a principal, porque significa pôr um freio, dar um chega para lá, na turma das finanças, que não quer de modo nenhum afastar-se da desregulamentação e da sua concepção exclusiva de fazer negócios. O que se alterou nos últimos tempos no panorama americano foi, sem dúvida, a estratégia de Obama. No meio de um Congresso, inclusive com democratas hostis à regulação, o presidente armou uma dupla ação. De um lado, preparou via Geithner o “Finantial Regulatory Reform”, que deu motivos a grandes discussões e inúmeras sugestões no Congresso, E de outro, a Volker Rule, que o próprio Paul Volker disse ter ido ao Congresso apenas para aparecer na fotografia. O que não expressa a força efetiva e subterrânea da proposta.

3) A “Finantial Regulatory Reform” pretende modestamente criar um FED, um pouco mais forte, com poder de resolver qualquer crise sistêmica que se anuncie. E também um conselho de diretores de agências que orientaria o FED a estas intervenções, etc. Já a Volker rule, tem dois pontos suculentos: um, a necessidade de uma capitalização efetiva para os bancos, e dois, a procura de impedir que os bancos usem os capitais de terceiros para especularem. O que na prática voltaria a divisão, supressa ao longo do processo de desregulamentação, entre os bancos comerciais e os bancos de investimentos.

4) Mas, o importante não foi exatamente isso. Pelo menos até agora. O importante foi o jogo de boxe entre as finanças e Obama. Logo nos primeiro momentos, os banqueiros, que saíram na dianteira, jogaram uma barragem de fogo no Congresso, através do seu Partido dos lobbies. Só que Obama usou uma estratégia mais silenciosa e sutil contra eles. Nosso personagem lembra aquele grande pugilista, meio médio ligeiro, Ray Sugar Robinson, um boxeador elegante, competente nos punhos e de grande estilo. Começou com ataques aparentemente sem muita envergadura, discretos, ao nomear personalidades fiéis as suas visões para as agencias reguladores. (Neste último mês já está tornando o FED com um jeito mais seu). Tratou, enfim, com astúcia, de colocar nomes que não fossem representantes maquiados dos bancos. Só para dar uma idéia da importância destas nomeações. A SEC (o equivalente a Comissão de Valores Mobiliários no Brasil), por exemplo, na crise de 2001, na crise da Enron, uma semana antes dela falir, a corporação era considerada, pela agência reguladora, uma empresa sem nenhum problema.

5) Agora, a fotografia é distinta. A atual SEC fez uma acusação pública e formal contra a Goldman Sachs, levando ao chefe desta instsituição a reconhecer que a conduta da Goldman na crise financeira em 2007, “visto de hoje”, 2009, era de fato altamente questionável. Claro, ela foi a corporação que formou com os títulos podres da Paulson & CO um Collateral Debt Obligation. E depois, saiu olimpicamente a vender estes títulos aos seus clientes, sem falar das porcarias que vendiam. E mais tarde, com a vivacidade delituosa dos atores do mercado financeiro, jogaram contra este Collateral Debt Obligation, um Credit Swapps Default, ou seja, enganaram os seus clientes de forma vergonhosa. E hoje, na imprensa e no Senado, tiveram a cara de pau de dizer que essa era uma prática ética comum no mercado. Dito no acessível: ganharam, por um lado, por vender um título podre e depois ganharam porque jogaram contra ele. No que importa: Obama deu um golpe no fígado deles. Não foi um “knock out”, mas foi ao menos um “knock down”. O que significa que atacando um banco símbolo do sucesso do capitalismo financeiro, e de maneira contundente, Obama acrescentou inúmeros pontos nos “rounds” para a vitória final da luta. E, vejam bem, leitores do esporte financeiro, a estratégia de Obama está montada no longo prazo. E nunca, nunca, joga tudo numa parada; vai minando como Sugar Ray Robinson progressivamente os adversários. São golpes aqui, golpes ali, pausa, novos ataques, até que dá a pancada final. Se esta visão é correta, a luta entre as finanças e Obama não se encerra na presente proposta de regulamentação. Mas de passo em passo, jogando inclusive tanto quanto possível com a população, o presidente vai fazendo recuar o sistema financeiro.

6) Tudo é ainda muito pouco. É preciso encarar os meandros e a duração das discórdias Mas, o decisivo é, como já firmei nos parágrafos acima, que Obama tem projeto de longo prazo. Toda a sua habilidade está empenhada em tentar ligar este ponto mais longínquo com o imediato, para empinar a economia e a política americana para o patamar de uma nova realidade. O que se nota, todavia, é que, com ataque cerrado a Goldman Sachs, se esboça, pela primeira vez, algo inusitado: uma leve ruptura do cerco a que foi submetido desde o seu triunfo eleitoral. Obama sempre esteve acuado. Só que agora com os lances efetuados no tabuleiro social, já pode começar a se olhar no espelho. O que apenas quer dizer que Obama está pronto para agir. Embora se possa escrever que a crise, como o verme dos livros de Machado de Assis, continue a roer.