quinta-feira, dezembro 29, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A REVERSÃO
DO ESTADO
PRÓ-FINANÇAS.

Enéas de Souza
29/12/2011


Tenho falado que é o Estado que vai intervir e liderar a transformação da atual sociedade capitalista, de financeira-produtiva para produtiva-financeira. Mas, amiga e leitora, a arquiteta Glenda, traz aos meus comentários da semana passada, “Por quem estouram os foguetes neste Natal”, uma dupla questão. Nas suas palavras: “Concordo com tudo, só que me ficam algumas dúvidas, a primeira: será que ainda existe ‘Estado’? Aquele que cuidava da ‘res pública’, aquele que supostamente existiria para promover o ‘bem público’? Acho que está (o Estado) reduzido a um fantoche, um brinquedo nas mãos do ‘mercado’ e dos bancos! Em segundo lugar, tem uma questão crucial que é este ‘embate’ entre Ocidente e Oriente: conhecendo-se as diferenças cruciais entre as mentes ocidentais (que tiveram sua inspiração primordial – num exercício de síntese muito redutor, é verdade – no pensamento, ciência e políticas gregas e, fundamentalmente no Direito romano) e as mentes orientais, sempre ferrenhamente autoritárias e ditatoriais, pergunto: qual o papel da China, da Índia, Irã, Iraque, etc., neste quadro apocalíptico?”

Glenda tem toda a razão sobre o Estado atual. E por quê? Em primeiro lugar, porque hoje o citado personagem é resultado de uma construção e de uma institucionalização política que dá ênfase e saliência ao projeto das finanças. Não se pode esquecer que institucionalização vem de “instituire”, que quer dizer “o que permite viver”. É o que permite viver a supremacia do capital e das finanças. E nesse embalo, o Estado deixa de lado tanto o bem comum, quanto a dimensão pública da sociedade. E ele se transforma – pela sua atuação, pela prevalência de mecanismos onde a taxa de juros é o principal definidor de impostos, tributos, taxas, multas, descontos, desonerações e incentivos, e mesmo de políticas públicas, etc. – no que chamo de Estado financeiro.

Podemos perguntar: em que consistiu fundamentalmente este projeto neoliberal das finanças para o Estado?

O projeto das finanças foi uma lenta e longa noite que visou a destruição do Estado nacional (1979-2007/8). Deu-se, então, como a repartição do átomo. Houve uma ruptura na unidade e no entrelaçamento de instituições e órgãos estatais que comandavam a política, a estratégia e o projeto nacional. Tal cirurgia esquartejadora, infindo espetáculo macabro, envolveu a separação e a anulação e, em muitos momentos, a cooptação da direção do Estado. Fantasma aterrador. Duas de suas grandes forças institucionais – o Banco Central e a Fazenda – se tornaram, no mais das vezes, órgãos auxiliares das Finanças. Só que, dentro do Estado, eram forças dominantes. E para completar a destruição da unidade, um dos elementos decisivos da operação do Sistema Financeiro, foi tornar ineficiente ou eliminar completamente o Ministério de Planejamento. Obviamente, essa bala mortal, transformou o Estado numa ‘stultifera navis’, um Titanic navegando sem rumo. Culminou essa operação tríplice por liquidar uma política econômica e social global, ficando o Estado apenas a conduzir uma política econômica reduzida, dedicada à expansão voluptuosa do sistema financeiro.

Ou seja, armou uma política subalterna de Estado com um composto de política monetária, cambial, financeira e fiscal, com o objetivo nobre de garantir a estabilidade da economia, no entanto, para que as instituições financeiras surfassem nas ondas da especulação. E o resto, se não foi silêncio como diria Hamlet, foi a metamorfose de zonas da política pública a expansão do capital inversor nas fronteiras internas do próprio Estado: previdência, saúde, educação e cultura. Com isso, o processo de socialização foi abandonado até mesmo como busca de longo prazo. E como um véu enganador, o futuro desapareceu do horizonte das sociedades. Surgiu, então, a grande festa do cassino e do carrossel financeiro, que atirava sobras para o setor produtivo e migalhas para a população. Houve momentos exitosos em que as pessoas se sentiram felizes. Só que o desastre americano, em todos os sentidos, revelou que, no outro lado da lua, o rei exibia seu corpo nu. Pois só existem perspectivas duradouras para toda a sociedade, se e somente se o longo prazo organiza o curto.

Mas qual foi a curva que levou as finanças ao seu trajeto declinante? Foi a carta mais audaciosa, a mais alta, como uma árvore secular: a desregulamentação progressiva e doida do mercado financeiro. Foi aí que, como um cavalo selvagem, a especulação tornou-se uma correnteza indomável, levando de arrasto inúmeros capitais e ativos financeiros. Ela – a desregulamentação – está arruinando todos os Estados dos países desenvolvidos, dos Estados Unidos à França. Isto foi o resultado de uma combinação de ações do executivo e de congressos, permitindo, no caso mais exemplar – os Estados Unidos – que as alavancagens (cada dólar se transformando, sem controle, em trinta, quarenta, cinquenta outros) provocassem as extrapolações da securitização e da hipotecarização. E vejam que nesse processo ocorreu também uma aliança dentro do Estado contra o Estado, a partir de poderosas forças que atravessaram os congressos nacionais e, muitas vezes, o próprio judiciário.

Já se pode ver que o projeto neoliberal sempre procurou afastar o Estado da economia, liquidar funções fundamentais dele como a mais vital, a do planejamento de curto e longo prazo. Para ver o descolamento do Estado com a população, a questão do emprego foi relegada ao setor privado, a uma política microeconômica. Veja-se a perfídia: o Estado, sobretudo na crise, tem que sustentar o nível do emprego da sociedade, o contrário do que se faz hoje, quando é forçado a cortar na própria carne e começa pela exclusão de funcionários, pela liquidação da previdência e das aposentadorias e a supressão dos programas sociais, etc., como em Portugal e na Grécia.

Mas, Glenda, veja só a perfídia desse neoliberalismo. Cortaram o Estado em pedaços para melhor repartir o domínio do Estado para o capital, com hegemonia do financeiro, como já falamos acima. Mas, no entanto, estamos no coração do artifício e da cilada. Aparentemente, a fragmentação do Estado nos dava a impressão de que ele estava sem força. E isso era verdade. Mas somente dentro de uma linha: estava sem força contra o capital e contra as finanças, principalmente. Mas contra o cidadão, esta força era cada vez mais sem limites. Porque Estado tem o monopólio da força, ele é coerção, e as finanças sempre usaram a coerção do Estado contra o cidadão, e não contra o Estado, porque, na verdade, quem o ocupava era a própria Finanças. A burocracia que poderia visar, pelas suas funções, o bem comum, tramava, por compadrio, com a força econômica dominante, a capação da res pública. Chesnais, François Chesnais, disse muito bem: o que temos é a ditadura do capital financeiro. Por isso, o público desabou, mas o poder do Estado, não. E as finanças sempre souberam usá-lo como nunca, apoiado no domínio financeiro sobre o político em geral. No entanto, está havendo, inclusive no Brasil, um princípio de reversão do Estado, onde a sua reunificação está num movimento que vai se acelerar. Múltiplas pressões encaminham o ente estatal a liderar a construção de um novo padrão de acumulação. Chegar até lá e reconstruir é um longo processo de desmontagem das instituições liberais e a construção de novas. Não há como negar que a China, dando saltos avassaladores, tem mostrado o êxito da unidade do Estado no combate à crise atual. A tendência parece vigorosa. É daí que nasce o mar da reversão.



(PS. Quanto à segunda questão, não sei responder com segurança. Mas, o que posso dizer é que ela tem que ser pensada não num confronto entre Ocidente e Oriente, mas num confronto de fundos antropológicos, sociológicos e históricos das nações na dinâmica do capital, no seu processo de reprodução. Por isso, o Estado chinês – por mais que tenha as influências históricas das suas dinastias, da Revolução comunista de Mao, da sua cultura histórica milenar – vai sendo direcionado pelo processo de valorização do capital. Claro, o Estado do capital nos Estados Unidos é diferente do Estado do capital da China. As tradições das nações dão a cor da sua experiência no desenvolvimento do capitalismo. Mas, o primeiro, enquanto sobreviver, será o capitalismo. E isso faz parte da luta geopolítica das nações. O comunismo foi o último movimento que se opôs, e foi derrotado, diga-se, pelas suas próprias contradições. No confronto do Ocidente e do Oriente, o importante é saber, em termos de economia, se existe a possibilidade de construção de um outro sistema que possa se opor ao citado capitalismo. Do contrário, será apenas o modificar da forma externa de desenvolvimento do capital, porque o capital é o seu próprio construtor, já que é ele que revoluciona a si mesmo. E a sua destruição terá que ser um processo revolucionário de base política, econômica, social e ideológica – que, no momento, está fora de cogitação e de construção).

quinta-feira, dezembro 22, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

POR QUEM ESTOURAM
OS FOGUETES NESTE NATAL?

                                               Enéas de Souza



Estamos num processo longo de reformulação da economia capitalista, desde a crise de 2007/2008. Neste Natal, a gente pode fazer um balanço para onde ela vai. E examinar, busca de lucidez, que tendências estão inscritas no seu movimento e na sua dinâmica, uma vez que o mundo se mexe apesar das aparências. Daí a pergunta: para onde está indo o capitalismo? Nada mais próximo do que falava o nosso Fellini: “E la nave va”.

A DINÂMICA DO CAPITAL ESTÁ NO IMPASSE

Quando se olha a realidade atual, o que é que nós vemos? Olhamos uma economia que chegou a um auge nos fatídicos anos de 2007/2008 e desabou. Chegar a um auge quer dizer que esta economia criou capital demais, superacumulou e, portanto, quando se chega a um excesso, a um transbordar, o capital – que sobra e que não dá lucro – precisa ser queimado, destruído, eliminado. Isto significa que a acumulação não vai adiante, não há mais espaço para crescer. Ao mesmo tempo, toda a lucratividade do sistema cai e é preciso recuperá-la; mas sabe-se que os mesmos procedimentos não podem ser repetidos. No caso das finanças, toda aquela enxurrada de papéis que se tornaram apodrecidos não conseguem mais serem utilizados, são papéis ilíquidos, são mecanismos emperrados. Ari Barroso tinha razão: são “Folhas Mortas”. E as instituições que as possuem se tornaram insolventes. Foi aí que entrou o Estado e o Banco Central dando força às instituições financeiras, fazendo operações de salvações gigantescas ou pondo liquidez na caixa e nos ativos dos bancos.

Então, os bancos ficaram se equilibrando e se salvaram, mas o problema é que a superacumulação indica claramente que o processo não vai adiante, que cada vez mais há empecilhos. O espaço de acumulação se reduziu, os mercados encolheram e a lucratividade também. Ora, foi assim na securitização com a grande história da crise imobiliária, está sendo assim na crise dos títulos soberanos, e continua assim na questão da re-hipotecarização. Logo, a arena de valorização do capital ficou pequena para tanta fome de lucros e de valorização. E quando o espaço encurta, os capitais tem que lutar entre si, com todas as armas, com todos os machados, com todas as facas, com todas as navalhas. Este é um processo de luta à morte dos capitais. Ele já destruiu várias instituições financeiras. Entre elas, a Lehman Brothers, a Fannie Mae e, recentemente, a MF Global. Isto quer dizer que alguns capitais já morreram (por exemplo, o Unibanco no Brasil) e outros vão morrer. Não há expansão da lucratividade para todo mundo; o que há é concentração e centralização de capital. Os mercados – tão celebrados – sumiram para alguns capitais. O capital vive um impasse: vai levar muito tempo para que essa autofagia traga uma abundância de lucros para todas as suas frações, da financeira à produtiva, sem que a economia altere profundamente o seu padrão de acumulação.

DE ONDE VEM A REVERSÃO DA FASE ATUAL?

É possível recompor a possibilidade de acumulação de capital, de modo substancial, através de uma vasta metamorfose tecnológica. E como pode ser? Ela se dará por meio de uma passagem, de uma transição. Vemos, de um lado, uma economia produtiva que está se desmanchando, que está apanhando e que vai estacionar e regredir nos próximos anos. Nela, a tecnologia já chegou ao seu limite, há várias coisas que podem ser acrescidas, mas a sua liderança atingiu uma zona de saturação. De setor líder vai passar a ser um setor em processo de envelhecimento e comandado por outro(s). Seus incrementos serão sempre de produtividade e jamais de invenções revolucionárias, como é o caso da indústria automobilística. Todavia, algumas outras indústrias, como a eletrônica, têm saltado para transformações decisivas, tanto na questão da produção, como na questão da distribuição – ou, como se chama de outra maneira, na esfera da circulação do capital. Isto quer dizer que uma parte do novo padrão de acumulação – as novas tecnologias de comunicação e informação – vai progressivamente ocupar o seu lugar, a posição de liderança dinâmica. É exatamente pela tecnologia que o capitalismo pode sair do seu impasse de aumento da valorização do capital.

A BARCAROLA DO ESTADO AVANÇA NO MAR DOS CAPITAIS.

Contudo, o ponto chave para a transformação da economia é o Estado. E aqui temos que salientar duas coisas. A primeira é que o Estado tem que se livrar do aprisionamento das finanças, que levaram a quebra de alguns Estados nacionais, através do entupimento das dívidas soberanas. Ou seja, os Estados têm que abandonar essa ligação cariada. Eles não podem se recuperar para salvar e apoiar novamente as instituições financeiras falidas. Se isto acontecer, tudo será como no Japão, nada se mexerá, nem as finanças, nem a produção, nem a sociedade e nem o Estado.

(Os americanos estão singrando nesse caminho e nessa rota, só as eleições podem alterá-los. E a Europa? Bem, a Europa está pior. Veja o BCE: não empresta para os Estados, mas empresta para os bancos, sob o suposto inverossímil de que esses comprarão as dívidas daqueles. Ah! essa idéia só pode ser de um homem das finanças: Mario Draghi, aquele que comandava a Goldman Sachs, quando essa auxiliou a Grécia a falsificar as contas para entrar na Comunidade do Euro... Porque o concreto é o seguinte: o banco especula e não compra dívidas para salvar os Estados. Só por essa razão é que o BCE faz a festa das finanças e encaminha o desastre europeu para mais uma falsa esperança.)

Para que o capitalismo se resolva, o Estado precisa desatar a crise fiscal, escapando da longa mão especulativa e anti-social das finanças. A segunda coisa é que é preciso deslocar a fonte de atenção da estratégia dos Estados, ela deve deixar de se ater às finanças e passar a se preocupar com o investimento e com o emprego. As finanças jamais financiarão um Estado em profunda crise e jamais passarão recursos da especulação para a aplicação produtiva espontaneamente. Por isso, o Estado é o ator principal. Portanto, a questão é uma questão política. E as indagações são as seguintes: como é que politicamente o Estado vai passar à liderança do processo econômico e resolver seus problemas de financiamento? A ênfase do novo financiamento será através de novos endividamentos? E eles serão de que origem? Ou o financiamento virá através de aumentos de impostos? E como? Ou será através de uma situação mista, endividamento e tributos? Ou o Estado, num caso extremo, financiará a si próprio porque nacionalizará ou socializará os bancos? De qualquer forma, a pergunta subsequente é imperiosa: o Estado vai se financiar para quê? A única resposta válida: o financiamento deve ser para um projeto de longo prazo da economia, que é a construção desse novo padrão de acumulação já citado.

A questão toda que aparece neste Natal é a incerteza da definição e o tempo para essa mudança, já que ela depende da capacidade de resistência das finanças, da amplitude política dos capitalistas e dos trabalhadores para instalarem um Estado com um projeto de longo prazo, e das negociações políticas e econômicas capaz de dirigir o Estado para a arquitetura de um novo padrão de acumulação. Se o impasse triunfar, a mundialização pode desembocar, quem sabe, na instauração do bélico, de um escuro neoliberalismo financeiro de guerra.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:

DILMA NA TENSÃO
DO CURTO E DO LONGO PRAZO

Enéas de Souza



Um ano de Dilma. Há muita coisa a falar sobre a sua presença no cenário nacional e internacional. Vir depois de Lula não é fácil, porque Lula fez um trabalho sensacional e empolgante. O que é surpreendente para os adversários é que ela está se saindo bem, está fazendo as suas tarefas. Como se dizia antigamente, a Dilma é quadro. Mas, agora, ela ultrapassou essa etapa, ela é a comandante do país. Só que pegou uma conjuntura movediça, voluptuosa e errática. Numa palavra: ameaçadora.

Olhem, leitores controversos, qual é a situação em que se encontra a presidenta. Em primeiro lugar, há dois problemas imediatos. Um de curto prazo: como armar a defesa brasileira em torno da ameaça constante do vendaval da crise. E nele a pergunta chave é: qual o momento exato em que a conjuntura internacional será irreversível? Dilma vai precisar de sintonia fina e de uma sensibilidade antenada, como a de um escritor como Borges. Ou, como Pamouk. Mas, há um segundo ponto, um problema de transição: como desenvolver um projeto nacional no meio da constância dos ventos e dos aguaceiros? Aqui já é o longo prazo que está chegando à porta e perguntando à Dilma: o que tens para me agradar?

(A essa última pergunta, nos seus devidos momentos, Collor não tinha resposta e Itamar só tinha suspeitas. Já Fernando Henrique, foi indolente: deram-lhe o neoliberalismo e ele aceitou. Talvez tenha sido que nem Riobaldo, só que sem Diadorim. E Lula, por sua vez, chegou para descortinar um horizonte ao Brasil na política externa e para desenvolver, igualmente, uma luta contra a miséria, uma política de sustentação coerente para os que fizeram e fazem as verdadeiras raízes do Brasil).

Assim, a questão do curto e do longo prazo é uma realidade terrível, porque, como a economia capitalista está em transformação, as crises americanas, europeia (incluindo Inglaterra) e a tendência da China, a diminuir seu crescimento, mostram que o mundo do capital vai mudar profundamente. É o que sempre vínhamos dizendo: a busca de um novo padrão de acumulação. Ou seja, algo de adventício vem chegando. Como diria Carlota Perez: estamos na zona do “turning point”, só que este momento leva tempo para se encaixar. Enquanto ele não chega, vivemos a turbulência do curto prazo. E os estragos do capitalismo neoliberal obrigam aos países a cuidar das devastações do imediato (vide agora o novo problema da re-hipotecarização, como faz notar o meu amigo André Scherer).

Bem, no meu modo de ver, a grande jogada de Dilma é exatamente colocar uma atenção muito forte sobre o curto prazo, sem descuidar de olhar, pelo menos de quando em vez, para o longo. Como assim? Explicite melhor! O que penso ser a estratégia da Dilma para o termo imediato já começou desde os primeiros dias de seu governo. Claro, tudo se inaugura com um princípio, que é uma estratégia: a reunificação do Estado. Ela é um grande lance para o Brasil se desvincular deste neoliberalismo financeiro, cujo objetivo foi sempre desarmar a entidade estatal de sua capacidade de efetuar política econômica, de pensar e articular o curto com o longo prazo, de proteger a sociedade de eventuais desastres dos mercados financeiros que afetam o investimento produtivo e o emprego, a inanidade pública diante da crescente miséria e fome do mundo. O resultado desse processo de financeirização da economia e da sociedade foi um Estado fragmentado, no mínimo dividido entre Governo de um lado e Fazenda e Banco Central de outro.

Foi essa cissiparidade econômica que Dilma conseguiu obstaculizar e dar um passo gigantesco para a reunificação do Estado. Se Lula já tinha conseguido colocar a Fazenda no bom caminho, Dilma alcançou um feito memorável. Sem impedir a autonomia do Banco Central, articulou para o órgão uma presidência que tem uma visão de economia semelhante a do próprio Governo. Faz muitos anos que não existia essa identidade na área econômica. No limite, o Banco Central de Meirelles, pelo menos, era sempre as Finanças governando o país. Agora, o Banco Central pensa também no crescimento econômico da nação. Olhem, para confirmação, no movimento da taxa de juros.

O que significa isso? Significa que para que um país possa vencer sem grandes rombos no seu casco de navegação esta brutal crise internacional ele tem que ter minimamente uma unidade. E Tombini, pelo menos até agora, tornou-se um presidente alinhado com o Estado Nacional. E daí vem a visão de Dilma. É preciso preparar fortemente o Brasil para defender-se da furiosa disputa econômica do momento atual, efeito da queda da produção dos países líderes ocidentais, da queda do comércio internacional, da devastação alucinada das finanças, da procura invasiva de especulações vigorosas, da débâcle do eixo americano (USA-Inglaterra e Europa) e dum avanço menor do eixo chinês como rebote desse eixo americano sobre ele.

Esmiuçando um pouco, Dilma tem então duas preocupações no curto prazo: a primeira é defender-se dos efeitos negativos da recessão mundial a caminho de uma depressão. E a segunda: recuar, fechar-se se for necessário, para uma certa proteção da economia brasileira, voltando-se, atingido um ponto crítico, para o mercado interno. Essa manobra visa reaver um capitalismo estatal, como o da Petrobrás, incentivando o capitalismo privado produtivo, até para uma expansão internacional, e procurando medidas, controles, ações na área financeira que protejam o próprio setor bancário. Isto quer dizer que Dilma trabalha numa dupla dimensão: manter as relações com o que está vivo do capitalismo internacional e uma reativação das estruturas internas do nosso capitalismo para que se mantenha o investimento e o consumo e se mude a situação de áreas industriais prejudicadas nessa mundialização, sobretudo aquelas afetadas pelos chineses. Tudo é uma questão de momento, de oportunidade, de ter o olfato para o que vai ocorrer. E, sem nenhuma dúvida, puxar o gatilho no momento agudo.

O ponto mais complexo, no entanto, é o do longo prazo. Por quê? Exatamente porque o Brasil não é um país líder do capitalismo, não tem nem um setor industrial nem tecnologia de ponta. E aqui talvez esteja uma das grandes dificuldades para Dilma. Por um lado, o Brasil está encaminhado para o novo padrão internacional de acumulação, pois a sua inserção está praticamente garantida através do petróleo, da mineração e da produção de alimento. Só que se ficarmos nisso será cometer o equívoco da Argentina no século XIX e XX. Seria paralisarmos nossas pretensões na trajetória da produção primária. E, portanto, ficarmos dançando um excessivo e prolongado tango. O problema, então, é como conseguir envolver o país numa estratégia de longo prazo, englobando um itinerário industrial onde as novas tecnologias de comunicação e informação, da biotecnologia, dos novos materiais, etc., façam a sua parte. Isso vai exigir, além de planejamento, investimentos estatais e investimentos privados, locais e estrangeiros, e uma estratégia que envolva além de um projeto nacional, econômico e político, um desdobramento para as áreas da educação, da ciência e tecnologia, e da cultura. Mas não, é claro, como um projeto adicional, e sim como um projeto essencial do país.






















CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: Mais sobre as "re-hipotecas"

domingo, dezembro 11, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: Fisk e a ditadura financeira

"I didn't need Charles Ferguson's Inside Job on BBC2 this week – though it helped – to teach me that the ratings agencies and the US banks are interchangeable, that their personnel move seamlessly between agency, bank and US government. The ratings lads (almost always lads, of course) who AAA-rated sub-prime loans and derivatives in America are now – via their poisonous influence on the markets – clawing down the people of Europe by threatening to lower or withdraw the very same ratings from European nations which they lavished upon criminals before the financial crash in the US. I believe that understatement tends to win arguments. But, forgive me, who are these creatures whose ratings agencies now put more fear into the French than Rommel did in 1940?"
Talentoso. Falei sobre essa picaretagem no Clube de Cultura terça e ontem estávamos comentando o assunto de novo, né Enéas? Muito bom esse artigo do Robert Fisk.

http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-bankers-are-the-dictators-of-the-west-6275084.html

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: The Merkelization of Europe - By Paul Hockenos | Foreign Policy

The Merkelization of Europe - By Paul Hockenos | Foreign Policy

terça-feira, dezembro 06, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: Debate no Clube de Cultura

Amanhã e quinta-feira (07 e 08/12) ocorrerá o debate "Crise Financeira Mundial: e o Brasil?" , no Clube de Cultura, situado na Rua Ramiro Barcelos,1853.
Amanhã estará em debate a conjuntura internacional e o desenrolar da crise financeira, com o economista André Scherer. Quinta-feira o tema será a conjuntura nacional frente à crise internacional, com a participação do economista Augusto Pinho de Bem.
O Clube de Cultura se notabiliza ao longo das décadas  por promover debates que estimulam a difusão do pensamento crítico, tendo nos estudantes da capital seu público principal. As palestras dessa semana se iniciam às 19:00 hs.

sábado, novembro 26, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: A China vai resistir à desaceleração global?

Não há modelo exportador puro na China ao menos desde 2008. Mas pode a China crescer taxas atuais por longo período sem o suporte das economias ocidentais? Tomara, pois os efeitos de uma desaceleração chinesa seriam desastrosos para a economia mundial.
Carta Maior - Internacional - Os ventos da crise também batem à porta da China

quarta-feira, novembro 09, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:
O FRACASSO POLÍTICO
DAS FINANÇAS E DO G-20
Por Enéas de Souza




10 de novembro de 2011




1) Coisa curiosa: a Europa e o G-20 encenaram uma comédia em Cannes, talvez seja a antecipação do próximo festival. Só que, fora do elenco dos protagonistas, apareceu um sátiro grego, quem sabe um misto de bufão e clown, Papandreou, que roubou a cena. Parecia, quem sabe, um personagem da comédia dell´arte de Goldoni infiltrado numa figura dramática de Aristófanes. Então, para quem é afeito ao cultivo das imagens, dava gosto ver aquela gente poderosa tentando manter a pose de que eram importantes. Naturalmente que o pessoal dos emergentes entrou de sangue doce. O chinês dava o seu sorriso Colgate de Pequim – dentes reluzentes, olhos entre irônicos e orgulhosos, roupa impecável, como se os que passaram o terno passaram junto a figura da autoridade. Mas estava feliz: a China vem jogando bem e só, só fustigando os Estados Unidos e a Europa. Trouxe o dragão para a sala quando disse, numa das manobras americanas e européias para flexibilizar o câmbio, que aí mexiam com a China, mexiam com ele; e, portanto, deu o sinal de veto.

2) A grande mídia que atuou muito no encontro, vuvuzela dos infernos, foi a européia. Claro, esse G-20 teve o conteúdo de uma manobra da região para ver se arrumava uns trocos com os emergentes, tipo Brasil, e alguma grana pesada com a China. Botaram muitas fotos e vastas coberturas de tevê para Merkel e Sarkozy. Como disse a Dilma: “por que eu vou botar dinheiro no fundo europeu se nem os europeus botaram?” Por aí vocês vêem como foi a reunião. E Dilma comentou e falou mais um pouco. Achou a reunião um sucesso relativo. E se considerar que a Europa tomou consciência que eles estão na alça de mira, tudo bem, foi isso mesmo. Os europeus que sempre cantaram de “prima donna” ou de tenor de sucesso, junto com os seus irmãos maiores, os “brothers” americanos, descobriram não a náusea existencial do Sartre, mas a falta de solidariedade entre eles mesmos. Estão vendo a espiral da caminhada para o fundo do poço. Mas, leitor cartesiano, leitor que duvida de tudo, poderíamos esperar algo mais de líderes como Berlusconi e seu número de bufo prolongado, de Sarkozy e sua visão midiática do mundo, de Obama que está pela bola sete, de dona Merkel e sua Alemanha ciosa dos trocados ou de Zapatero que está indo embora do poder? Claro que não. Sim, a Dilma tem razão; foi um sucesso relativo; a Europa se deu conta que ela própria é quem tem que sair do buraco. Imagina o Brasil dando uma graninha para o Fundo de Resgate Europeu? Assim, generosamente, sem pedir nada em troca? Ah, os emergentes propuseram dar sim. Dar uma contribuição, mas via FMI, com a condição de mudar a estrutura e a arquitetura do Fundo. E, claro, mudar a realidade do Fundo é difícil, ninguém cede se não estiver nas últimas. Fácil é tentar tirar dos mais pobres. Mudou-se de assunto.

3) O G-20 evidenciou o que temos dito aqui. O eixo único americano se partiu em dois, e o que ficou com os Estados Unidos, Inglaterra e Europa está se decompondo, enquanto o eixo que tem a liderança, já não tão discreta, da China continua a passada lenta, gradual, ocupando espaço. Ora, o G-20 botou no time as camisetas dos titulares nos Estados Unidos e na China, e pôs a Europa com as camisetas dos reservas e os demais emergentes, temporariamente, ficaram como titulares, titulares passageiros ou possíveis, reorganizando o jogo. Assim, o que se quer constatar é que o G-20 foi uma reunião para Europa ver que está na hora dela achar uma solução. Porque ela estava – e ainda está – caminhando rumo à zona do precipício.

4) O interessante foi o número de Papandreou; encestaram o que deu o líder da terra de Helena. Mas, ele pensou, refletiu, calculou. E no palco mundial da mídia encenou o numero cômico da vingança. Quando a Europa festejava o pacote renovado para a Grécia, Papandreou jogou a carta do referendo. Foi um caldeirão de água lançado nas costas da turma européia, em pleno G-20. Claro, Papandreou estava blefando e, sobretudo, estava devolvendo o passa-pé dos grandes países. Olha aqui, vocês me encurralaram, mas eu também encurralo vocês. E saiu aristofanicamente rindo. Logo em seguida, a Grande Mídia pintou um quadro de que a Europa e o G-20, insultados, enquadraram o político grego. Deu para dar boas gargalhadas. E gozem mais um pouco. E se sai mesmo o tal de referendo? Na verdade, tudo não passou de uma delícia vingativa de Papandreou.

5) Agora vamos tentar ampliar a nossa interpretação. É preciso ver que estamos num jogo onde as finanças internacionais blefam, atacam e fazem um ataque insaciável, jogando a gasolina do medo e do caos social no mundo. A Grande Mídia, tuba canora como diria Camões, está do mesmo lado, riscando o fósforo do temor. Foi-se o tempo em que a mídia informava; hoje, dá notícias pela metade, mente, inventa e, de quando em vez, chantageia tanto quanto faz propaganda. Clama pela liberdade de imprensa e se enxerga liberdade de empresa. Vendendo a sua mercadoria, inocula a ideologia das finanças. E as finanças, depois de terem sofrido um colapso nervoso em 2007/2008, na crise do mercado financeiro americano – que se desdobrou para a Europa e o mundo – conseguiu, via medidas de salvação e doação dos Bancos Centrais e de vários governos, se equilibrar. Só que, da crise financeira, passou-se à crise fiscal e, da crise fiscal, o mico viajou para o Estado. Desde lá, estamos atravessando a crise desse, o que significa também, com diversos matizes, uma polpuda crise política. Essas realidades são o resultado do movimento da luta furiosa dos capitais entre si, mas também do combate complexo deles contra as nações. Tudo porque as finanças, no seu neoliberalismo, apesar de dizerem que o Estado deve ficar fora da economia, não podem viver sem o Estado. Primeiro, para que elas possam, no período de crescimento, exatamente se expandir, enquanto o Estado garante estabilidade e paz social. E segundo, para quando o ciclo desce, capa protetora, salvar as instituições financeiras. E tudo, crédulo leitor, em nome do poético nome de “evitar o risco sistêmico”. Salvam-se os bancos, os investidores não perdem a propriedade desses e muito poucos dirigentes deixam os seus cargos e os bônus. Aquilo que seria natural, o conúbio finanças e Estado não nacionalizam, nem estatizam essas corporações, põe o prejuízo ou no Banco Central ou na dívida pública. E, quando o próprio Estado entra em crise, encontra-se uma ficção adequada, a recomposição do Estado, para que as finanças possam se recuperar e retomar o seu domínio. Tudo em cima das demais camadas da sociedade. E o que é pior: em nosso nome.

6) Por isso, quando as finanças caem, elas caem perdendo o apoio social. Vejam o movimento do Tea Party e do Occupy Wall Steet. E, mais que lógico, também arrastam para o abismo o Estado, que ingressa no cone de sombra de uma crise. Porque não há outro ponto e outra regra: as finanças só sobrevivem para especular tranquilamente (sic!) com a economia estabilizada e com calma social. E quem garante isso? O Estado. Qual é o movimento das finanças? É tentar forçar que o Estado retome a estabilidade. Como? Cortando gastos, em alguns casos, aumentando impostos, mas sempre buscando demitir funcionários, diminuindo ou eliminando aposentadorias e, em alguns países, privatizando previdência, saúde, educação e cultura. E assim chegamos a uma segunda etapa do neoliberalismo: para a falência do neoliberalismo, mais liberalismo.

7) Porém, a estratégia é sempre a mesma. Endivida-se um Estado, joga-se uma agência de ratings em cima para diminuir a sua nota e especula-se contra os títulos desse país. E logo se fabrica a cena midiática do “Grande Caos” da política e da nação. E sabem como é que se faz esse jogo, que tem o cheiro de uma jogatina de Las Vegas? É assim: um título do país é lançado com uma taxa de juros X no mercado primário, por intermédio de um banco ou um pool deles. Quando o título é passado para o mercado secundário, onde todos podem comprar, os capitais, os próprios bancos intervenientes, atacam este papel, exaurindo sua sustentabilidade, obrigando-o a pagar um prêmio de risco, de por exemplo X mais 1, 2, 3, 4, 5, 6, etc. % a mais. O título italiano ontem, no mercado secundário, chegou a pagar um prêmio de 5,7, acima da taxa básica que é 3%. Ora, esse prêmio de risco força o país, quando for lançar um novo título soberano no mercado primário, a levantar a taxa de juro para por esse novo ativo possa encontrar comprador. Ou seja, está apresentada a espiral da especulação e a depredação de um Estado.

Claro, já percebemos então, que a mão que poupa é a mesma mão que pede e escorcha. Resultado: força-se tanto ao endividamento do Estado quanto a desvalorização dos seus ativos. E depois, soltam-se os cães ladradores das agências de ratings e, no rastro da bruxa, se traz a turma do FMI (no caso da Europa, também o Fundo de Estabilização Financeira Européia) para dar as receitas básicas ao Estado dito “soberano”. Ora, o país que já estava em crise econômica, dá um mergulho patético na piscina fiscal e pratica o arrocho financeiro sobre o próprio Estado. E logo, logo, entra em recessão, até conseguir - às custas do desemprego, da abdicação de políticas públicas privatizando empresas e serviços estatais, e da liquidação da estrutura e arquitetura do próprio Estado, incluindo pessoal burocrático adequado, tanto em número como em qualidade – um determinado momento de razoável equilíbrio, que geralmente leva anos, às vezes décadas, a chegar. É isto que aconteceu no Brasil, salvo do neoliberalismo por Lula. E é este o destino de Portugal, da Espanha, da Itália se continuarem e forem nessa estrada da vida. E é isso o que o primeiro ministro Fillon está forçando, junto com Sarkozy, para que a França siga, inclusive para escapar da rebaixa das notas das agências de ratings. Fazem parte de um tempo chamado de “tempo de austeridade”. Ora, em bom português de antigamente, se diria: co´os diabos, austeridade para quem?

8) E para a solução dessas crises sempre surgem engenharias econômicas complexas para que o capital privado recupere não apenas o seu dinheiro, mas o fruto de sua especulação. E como na especulação, ele ganha somas monumentais, obviamente que pode, com a generosidade dos assaltos, fazer algum perdão, mesmo que este perdão seja pago pelos Estados dos capitais emprestadores. Exemplo vivo na Europa, o dos bancos franceses, espanhóis, italianos e mesmo alemães. Sem contar aquela dos países que já sucumbiram com Portugal e Grécia.

9) Ora, o G-20 mostrou o seguinte: I) a inércia americana – seja pela paralisia provocada pelo Congresso, amarrando o governo com o teto da dívida e com a limitação dos gastos, seja porque Obama não pôde nem tinha condições políticas americanas e internacionais de ser protagonista; II) a reboldosa na Europa – com as finanças e os Estados engolfados, em longa agonia, na tempestade financeira, fiscal e política. Peter Breughel pintaria hoje, a partir dessa situação, uma nova “dança da morte”; III) a incapacidade do núcleo líder da União Européia – a França e a Alemanha já demonstraram, quase à saciedade, que não têm talento para dar uma solução à UE. Sarkozy está enrolado na disputa para a presidência com François Hollande, com um futuro, para ele, sombrio, pois, num possível 2º turno, este, François Hollande, ganharia de 68 a 32%, segundo sondagens atuais. E Ângela Merkel, criticada por suas manobras no plano externo, está muito preocupada com o plano interno socialmente. Tenta roubar as perspectivas dos adversários mais à esquerda, através da proposta de um salário mínimo profissional, bem como fechando as usinas nucleares.

10) Uma outra coisa importante, como a de Papandreou, aconteceu fora do G-20: a entrada de Mario Draghi na presidência do Banco Central Europeu. Ele é italiano, economista do MIT e da Goldman Sachs, tendo dirigido, na parte internacional dessa, a secção européia, exatamente no momento da fraudulenta entrada da Grécia na União Européia, quando a Goldman fez um trabalho de consultoria para a nação grega. Portanto, como dizem os portenhos: Ojo! E Draghi já descartou a idéia do Banco Europeu ser o emprestador em última instância, rompendo com uma recente posição de Trichet. O que joga água no chopp de um avanço político na Europa. Ou seja, parece que o objetivo do sistema financeiro é continuar mantendo um espaço inatingível pelo Estado de controle da sua ação dinâmica, impedindo que haja um Estado supra-europeu. Ou seja, pode-se conjeturar que a luta entre os capitais se decida pelos mais fortes e pelos Estados nacionais mais capazes de sustentar um apoio aos seus bancos. Uma concentração de riqueza e de poder. Quando a concorrência se estreita, cada capital quer a morte do rival. E a concorrência se estreita porque há cada vez menos possibilidades de negócios à sombra dos títulos privados e públicos. E a competição dos Estados se desloca pela melhor e mais astuta política de uns sobre outro. Pode-se até conjeturar que, ao menos uma parte da Itália, mesmo em desaforada ópera-bufa almeje deslocar a França de sua posição de liderança.

11) E o que o G-20 revelou profundamente foi o segredo mais visível de todo este começo de século: a incapacidade das lideranças políticas européias, sobretudo da França e da Alemanha, de alcançar uma solução inventiva. E enquanto a política não encontra saída, os capitais continuam massacrando, desesperadamente, os países e os Estados e as populações. Sempre na expectativa de passarem à frente dos seus concorrentes na luta especulativa e sempre na busca de uma solução de aperto dos Estados e das populações. O objetivo é chegar a um ponto base, a um Estado equilibrado ou controlável em termos de dívida, de déficit e de orçamento fiscal. Por outro lado, todo o problema das finanças passa sempre por manter a liquidez, alcançar fontes de alavancagens para decididas especulações e títulos apetitosos, forçando os Estados a entrarem no seu jogo, a despeito do grande desastre social. Por isso, a reação anti-finanças no mundo todo; embora esse movimento se esboce com uma pequena contundência de quem sofreu e não sabia quando estavam lhe roubando a carteira, botando-lhe a mão no bolso. O mundo agora se exalta, sai às ruas, grita. Ouviremos, então, quando algum grande escritor escrever sobre este tempo, uma frase como esta, ao estilo da Ilíada de Homero: “Canta Musa, contra os Ataques das Finanças, a Ira da População”?

12) Dilma tem razão. O G-2O foi um sucesso parcial, porque circunscreveu, neste momento, a crise no colo da Europa. Mas não mudou a organização para-estatal do sistema econômico, do tipo FMI, seja no seu elenco de quotas com dominância americana e européia, seja no seu pensamento de solução da crise. Mostrou, igualmente, a debilidade do Fundo de Resgate, e a rasteira que a Europa queria passar nos emergentes. E lá no fundo, aparece a China, sorridente, dando os seus passos progressivos e adventícios. Ao menos no campo econômico – pois, no geopolítico, a coisa é diferente – os americanos estão tentando cerca-la e constrange-la. Mas, paira no mundo, ainda, a visão econômica das finanças. A solução proposta cabe sempre no tambor do revolver financeiro. Contudo, a questão subterrânea é outra, sufocada pelas finanças: onde está o lado do crescimento e do emprego? Onde está a tentativa dos Estados liderarem os processos de investimento produtivo e de expansão tecnológica? As finanças e os Estados continuam movidos pelo curto prazo. O longo prazo e o novo padrão de acumulação, que poderiam dominar as iniciativas públicas e reorganizar a economia, com as finanças passando a apoiar a produção, ainda estão longe do horizonte da luta forte que travam capitais e Estados, sob as mais diversas cores e mais faceiros matizes. E a presença dos trabalhadores, dos estudantes, dos jovens, dos indigentes, dos pobres é ainda muito tímida no cenário mundial. Mas, com muitos processos e praticamente sem nenhuma proposta. Enquanto isso ocorrer, as finanças continuarão com o seu projeto de resolver tudo isso financeiramente. Tudo isso, com a subordinação dos Estados, com o desemprego, com a diminuição das garantias sociais e, sobretudo, com uma paralisia da dinâmica econômica produtiva, onde a competição fica restrita à produtividade do capital, e jamais na passagem para o investimento, na direção de um novo padrão de desenvolvimento, ou seja, na direção de um novo padrão tecno-econômico, como diria um schumpeteriano. O que evidencia o total fracasso da economia das finanças, que está fragmentando a unidade do eixo americano e, principalmente, está reposicionando a Europa, seja pelo desmanchamento econômico, seja pelo apequenamento político. Foi isso que apareceu no G-20 de Cannes, enquanto a China olhava sonhadoramente as oportunidades que virão, enquanto as eleições americanas não decidirem o outro lado da fogueira dos capitais e dos países.






PS – Entro em férias. Só que, primeiro, vou apresentar e comentar na Maison du Brésil, em Paris, um ciclo de “Cinema Brésilien Contemporain”, de 21 a 25 deste mês. Serão exibidos: “Edifício Master” de Eduardo Coutinho, “Santiago” de João Moreira Salles, “Crime Delicado” de Beto Brandt, “O Homem que Copiava” de Jorge Furtado e “Lavoura Arcaica” de Luiz Fernando Carvalho. E lá, no dia 22, Robson de Freitas Pereira e eu lançaremos nosso livro “O Divã e a Tela”. Estarão também presentes as colegas psicanalistas Lucia Serrano Pereira e Ana Lucília Rodrigues, que escreveram um artigo na referida obra. Depois do ciclo, as férias. Bordeaux no Café Corse, omelette parmentier no Boul´Mitch e livros na Compagnie, na la Hune e na l´Écume des pages. E uma conversa livre com os amigos parisienses, desde os temas artísticos até as questões políticas e econômicas, sem excluir, claro, as maldades sobre os inimigos do coração. Retorno na metade de dezembro. Até lá!

quinta-feira, novembro 03, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:
A ELEIÇÃO DE CRISTINA
FAZ AVANÇAR A AMÉRICA LATINA?
Por Enéas de Souza

03 de novembro de 2011


Cena Um – Estou na Plaza de Mayo, Buenos Aires, domingo à noite, dia da eleição argentina; uma grande multidão de crianças, jovens, adultos e velhos, com tiaras, fitas, bandeiras, gritos e pulos, comemoram a vitória de Cristina Kirchner. Um vendedor berra furiosamente, no meio da massa, a sua mercadoria: “Cerveza! Cerveza! Cerveza!”. Ninguém se preocupa e se incomoda. Há um desejo forte de comemoração. Comemorar a vitória e esperar que a presidenta apareça. Há uma alegria sincera e intensa. As bandeiras dançam, um locutor anima a festa e todo mundo celebra o acontecimento. Em alguns momentos, na noite cheia de faixas e balões, estouram canções de louvor à Cristina e, como num estádio de futebol, as pessoas pulam de alegria. Não diria que há uma euforia exuberante, mas há um entusiasmo contente e moderado.

Cena Dois – Vou num taxi conversando com o motorista, perguntando sobre as eleições e tentando compreender o seu mau humor cada vez mais consistente e graúdo. A certa altura, ele me diz: “Não gosto de política. Os políticos são todos ladrões. Eu não votei em Cristina, votei no Rodriguez Saa. Não quero mais falar do meu país” (O seu candidato não fez sequer 8%). E vejo que está irredutível, não quer mesmo mais falar sobre o assunto. Está furioso.

 PRIMEIRA CONCLUSÃO: O FRACASSO DO NEOLIBERALISMO

O que a gente percebe é que o insuficiente neoliberalismo teve um baque enorme com essa vitória da Cristina. A população vem percebendo desde 2001 que o neoliberalismo foi uma tragédia para a Argentina. E por isso, com a vitória da presidenta, ela consegue entender que o país está na eminência de escapar da crise absoluta – de “uma crise que parecia terminal” diria Ricardo Forster no seu livro “El litígio por la democracia”. O que evidencia que Kirchner e Cristina inverteram a curva da destruição do país, tratando de diminuir e conseguindo, até agora, tirar muita gente da pobreza e da indigência. E o povo ainda está desconfiado, depois de tanta lambada, de tanto cinismo e tanto banditismo do tempo de Menem. Ele começa a acreditar, pelo menos uma boa parte dele. A Cena Um, que narramos acima, tem o pendor de mostrar um grupo de pessoas, mais de 50% dos votantes, acreditando, achando, um pouco desconfiados é verdade, que é possível avançar, ganhar e progredir. Festejam. E não se trata apenas de retórica, o que se sente é que existe um projeto do Kirchnerismo, que Cristina leva adiante e que tem sintonia com a gente humilde. E esse projeto tem uma face imediata: acabar com o neoliberalismo. Pois foi esse neoliberalismo de Menem, que dando sequência à catastrófica política econômica de Martinez de Hoz dos anos 80, levou a nação ao caos total. Não se tem idéia da profundidade enorme da devastação social, política, econômica a que chegou a Argentina no início dos anos 2000. E foi isso que Kirchner e Cristina bloquearam e começaram a reverter. Martinez de Hoz – não o mágico mas o delirante de Hoz – dizia, na sua vigarice neoliberal: “Achicar el Estado, agrandar la Nación”. Uma piada. Acabou com o país e o Estado ficou em frangalhos. Em “ruínas” como disse Kirchner numa conversa com José Pablo Feinmann. No entanto, o neoliberalismo está batido, mas ainda não vencido

A SUSTENTAÇÃO EXTERNA DO MOVIMENTO INTERNO

O movimento de recuperação da Argentina segue o mesmo processo do Brasil. De um lado, o Estado retoma minimamente a liderança e tem um projeto nacional. E de outro lado, para expandir a economia do país, tem que ter uma presença internacional. E essa presença se dará em união com as demais nações latino-americanas. Cristina tem certeza, como Kirchner já tinha, a saída para os países desta região – portanto, para a Argentina, inclusive – é latino-americana. O que significa incrementar fortemente uma defesa comum para a área, seja através de políticas comuns, seja através de uma atuação vigorosa em fóruns como o G-20 onde, juntamente com o Brasil, a Argentina pode propor diversos temas. E entre eles se destaca a busca de abertura de mercado para os produtos agrícolas, que os países avançados tratam de manter um protecionismo de longa data. Essa posição poderá ser acompanhada por uma política interna que, além do incremento da produção desses bens citados, permita também que ocorra uma industrialização mais forte dos referidos produtos. Naturalmente que, para tal, é indispensável que o Estado desenvolva políticas de fomento que assegurem aos industriais argentinos um apoio bastante forte em termos de produção, de inovação, exportação, etc. Se isso ocorrer, a tradução social será tanto no aumento do produto como na ampliação do emprego. Ora, o Estado pode tentar seguir esse rumo, justamente porque conseguiu dar uma consistência à política fiscal. O que está ainda fora de controle é a questão inflacionária. Uma pressão contundente, que funciona como um espelho das tensões da economia e da política do país.

CRISTINA PARA MUDAR O ESTADO DE COISAS

Portanto, o kirchnerismo de Cristina vai ampliar aliança dos setores capitalistas nacionais com os setores operários, dos trabalhadores do setor serviço, intelectuais e universitários, mas também com setores indigentes e pobres e desempregados, porque sem essa aliança – uma aliança populista – será impossível avançar nesse projeto. Um governo que não tenha base popular não tem como se manter. E é por isso que esta vitória aplastante afeta a pequena burguesia – Cena Dois – que se sente ameaçada, pois ela, como certos setores agrários, pensa em termos relativos. Se eu não pioro, mas os outros melhoram, na verdade, estou piorando relativamente. E a proposta de Cristina é certamente avançar a economia nacional, mas ao mesmo tempo dar ênfase aos setores desfavorecidos pelo neoliberalismo, o que desagrada aqueles que pretendiam, na pior das hipóteses, manter o estado de coisas.

A COMBINAÇÃO INSUPERÁVEL DA VITÓRIA

Porém, a verdade é que Cristina desmanchou, pelo menos por mais um tempo – com habilidade, astúcia, coragem e inexorabilidade – as hostes adversárias e os seus contendores. Seguramente, ela foi a grande vencedora, ela deu um passo a mais na sua trajetória, mas não se pode esquecer que a morte de Kirchner está na base deste triunfo. Foi uma combinação detonante: o peso de um passado que deu certo com um futuro que pode ser tão promissor quanto possível. E por quê? Porque a população sentiu que, no meio de erros, de problemas, equívocos, etc., há um projeto que pretende incluir o maior número de pessoas, sobretudo os de má situação de renda e de condição social precária. E isso se não é uma certeza, é, ao menos, uma promessa que elas podem acreditar. Porque o neoliberalismo que prometia riqueza a todos foi a causa da dinamite que jogou a Argentina no espelho do abismo.

 Cena Três – Estamos na virada de domingo para segunda, a música solta e vibrante, uma multidão que celebra e que tem esperanças. Com uma lavada alma, vibrando em cima de uma campanha exitosa, Cristina dança e baila com um sorriso, pela primeira vez, em público, serena, e aceitando um pequeno repouso depois da morte de Nestor, seu companheiro de jornadas. Uma vez, em 2006/7 ouvi, quando saia de um táxi, a frase derradeira que condenava o casal, contra o qual o motorista empilhava e empilhava argumentos. No fundo, todo argentino, de um modo geral é um político ativo. Tem posição e tem idéias. Ele gritou: “Y lo peor és que la pareja és indecente”. Lembrei-me dele quando Cristina dançava só, dançando a vitória em forma de profunda maioria. Sim, “la pareja” tinha dado a volta por cima, a barragem neoliberal, oriunda sobretudo da mídia, tinha perdido. A morte de Nestor e a firmeza de Cristina estavam constituindo uma nova figura política do casal.

AS ENCRUZILHADAS DA ARGENTINA

Quando a gente olha para uma possível trajetória da Argentina, o que se percebe é que ela vai ter que passar por vários desafios. Entre eles, se podem notar, com saliência, os seguintes:

01. Deixar de lado o ideário e as instituições neoliberais que destruíram o Estado e a Argentina;

02. Voltar a ter uma política econômica, política e social que se refira permanentemente à igualdade e a justiça;

 03. Repensar o seu passado peronista (o bom e o mau), revisar a sua memória menenmista, e projetar um novo estágio do kirchernismo-cristinismo;

04. Criar novas figuras do poder e da política – ou seja, o seu futuro em função de um novo projeto de nação;

05. Trabalhar para a criação de um Estado dominado, como dizia Kirchner, por “valores e convicções”, que articule projeto nacional, política econômica autônoma, planejamento e uma política externa. E que mantenha a liberdade de imprensa, a democracia, mas não seja prisioneira do setor midiático;

06. Fazer da política econômica e social um instrumento de reformulação da área industrial, de uma sustentação do setor agrário, de resultados fiscais importantes, definindo políticas cambiais e protecionistas adequadas à nação, bem as questões de educação, saúde, previdência e cultura;

07. Introduzir na política externa uma forte união com o Brasil, na organização de uma América do Sul e de uma América Latina sólidas, ativas e sempre proposicionais;

08. Adequar os seus interesses econômicos para a construção de um processo de integração infra-estrutural (estradas, portos, aeroportos, reorganização urbana, etc.) da América do Sul, combinando apoio ao setor capitalista, mas contrabalançando o poder discriminatório do capital com uma intervenção estatal reequilibradora da situação salarial, de aspectos sociais, etc.;

09. Dar o exemplo de sua política de defesa dos direitos humanos para os países menos adiantados no tema na região;

10. Ajudar a formular uma política e uma estratégia para a América Latina no mundo, de tal modo que a sua execução se torne protagonista nos cenários mundiais, nestes tempos de crise;

11. Buscar o equacionamento de uma política econômica que relacione: as empresas multinacionais que atuam no espaço planetário, mas que passam por espaços nacionais com os Estados Nacionais sul-americanos e latino-americanos, individual e coletivamente, para equilibrar a relação de forças entre corporações produtivas e Estados;

12. Controlar com a força do Estado o capital financeiro estrangeiro e nacional, apoiar fortemente o setor produtivo local, mas, sobretudo, pensar que a nova configuração econômica tem que se direcionar para um novo padrão tecnológico que virá, envolvendo energia, meio ambiente, comunicação, informação, biotecnologia, etc.;

13. Ter clareza das possibilidades e dos limites da integração da América do Sul e da América Latina, na dinâmica da solução da crise geopolítica e geoeconômica que assola o neoliberalismo financeiro de guerra.

A VIAGEM E A VOLTA

Fiquei um tempo na Argentina e vi a atmosfera de uma cidade, Buenos Aires. Do que olhei, do que li, do que conversei, com amigos e desconhecidos, cheguei a algumas conclusões, que estão aí. Tenho a clara e nítida sensação que a Argentina deu um salto, imperceptível para alguns, evidente para outros. O conflito, no entanto, se aguça, vai assumir novas formas, teremos novos desafios e novas dimensões. Tudo está em aberto, nada é certo. A direita prepara o contra-ataque, embora esteja na defensiva. É a hora de aproveitar o que Borges chamava de “fervor compartido”. São mais de 50% que apóiam o governo. E no campo internacional, temos sempre a pergunta que vai animar as nossas relações: poderão a Argentina de Cristina e o Brasil de Dilma acertar o passo numa estratégia e num projeto sul-americano/latino-americano para o mundo? Já se poderá ver alguma coisa na reunião do G-20 nesta semana, em Cannes.

sexta-feira, outubro 21, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: "Crise ampliará a presença do Estado"; por André Scherer

Segue a entrevista concedida à coluna que o CORECON-RS tem no Jornal do Comércio de Porto Alegre e que é publicada toda sexta-feira:
Crise ampliará presença do Estado
Nos recentes debates sobre a crise mundial, a pressão é grande para que os europeus resolvam rapidamente a crise e os problemas de seus bancos fragilizados. Para o economista André Scherer (CORECON/RS - 4888), a crise europeia tem potencial para impactar fortemente a economia mundial. Confira abaixo.

CORECON/RS – Quais as razões que levaram a crise 
internacional, que envolve países da Zona do Euro? 
André Scherer - A crise financeira mundial iniciou-se ainda em 2007, com o fim da bolha especulativa imobiliária nos EUA. Essa crise mudou de fase em 2008, quando, após o episódio da falência do banco de investimentos Lehman Brothers, o crédito parou de irrigar a economia, os mercados financeiros perderam liquidez e a economia “produtiva” foi fortemente afetada, também em caráter mundial, com quedas expressivas no volume do comércio internacional. Nesta fase da crise, a situação é mais grave na Europa, uma vez que a moeda por lá foi constituída sem o suporte de um tesouro e de uma União fiscal. É isso que leva a intermináveis discussões sobre como, quando e quem paga pelo resgate dos sistemas financeiros e dos países atingidos pela crise. 
CORECON/RS - A crise ameaça a economia mundial?
Scherer -É importante ter em mente que o sistema financeiro mundial é, hoje, constituído por uma ‘teia’ de relações que ‘enozam’ os diversos produtos financeiros em escala mundial. A globalização produtiva, embora em ritmo mais lento, também propaga o impacto de uma queda da atividade econômica na Europa para os demais continentes. Para o Brasil, o melhor cenário possível é uma intervenção governamental na Europa que, embora não solucione, ao menos evite um agravamento maior da crise. 
Nesse cenário, as economias do centro (Europa, EUA e Japão) continuam estagnadas, mas permitem ao eixo ora dinâmico da economia mundial, capitaneado pela China, a continuidade de seu crescimento, ainda que em ritmo menor. Isso reduz, a médio prazo, as disparidades entre os países desenvolvidos e as economias emergentes. Para a economia brasileira, a grande questão é se a economia da China (e, consequentemente, o preço das commodities) será impactada negativamente pela crise européia.
CORECON/RS - O Estado injetará recursos?
Scherer - A intervenção do Estado na salvação do sistema financeiro é uma imposição da realidade concreta. Do contrário, levaria a enorme depressão mundial, com consequências político-sociais graves. A questão é que a intervenção em grande escala, se necessária, não pode repetir erros de 2008, quando deixou praticamente intocado o modus operandi das finanças que haviam levado à crise.
CORECON/RS - Quais as principais consequências?
Scherer - Nós, aqui na FEE, desde 2007, já alertávamos que a crise que se iniciava seria de longa duração, levando à desintegração do neoliberalismo que prevaleceu desde os anos 80.  É o que vem ocorrendo em um processo que agora começa a se acelerar. O debate público sobre as causas da crise e os beneficiários do sistema, que se intensifica com a ampliação da pressão popular nos países desenvolvidos, levará a uma reorganização institucional a partir de mudanças políticas. Acredito em maior presença do Estado na economia, preocupação com a economia produtiva e com a inovação e políticas ativas, visando à redução das desigualdades de renda. Isso somente será possível com um controle estrito sobre os fluxos internacionais de comércio e de capitais, que permita uma nova divisão internacional do trabalho. Ou seja, o oposto do que marcou a economia mundial nos últimos 30 anos.

quinta-feira, outubro 20, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: O ESTADO E A HEGEMONIA DAS FINANÇAS. Por Enéas de Souza

Coluna das quintas


1) Embora o leitor Felipe X ache que coloco a China como a grande novidade dos Estados no atual capitalismo financeiro porque ela está por cima, a realidade não é esta, é outra. A China está por cima porque na dinâmica da economia mundial, com a crise financeira americana, o eixo único que unia todos os países, inclusive a China, desarticulou-se e se transformou em dois eixos, o americano e o chinês com grande crescimento deste último. E no processo, os dois Estados participam de maneira distinta, por causa da sua estrutura política. Dito de outra maneira, a relação das finanças com o Estado americano – e com o Estado inglês, e com os Estados da Europa, e com os Estados da América Latina, etc. – é totalmente diferente da relação com o Estado chinês. Como se a mesma árvore frutífera desse muitas peras e uma singular maçã. Cada Estado tem uma relação peculiar, específica com o capital hegemônico. São todas peras diferentes, mas são todas peras. Só que a China se relaciona de modo totalmente diferente, é maçã. Vejamos.

2) A grande diferença é que, no caso americano, as finanças de origem nativa, absolutamente mundializadas, impõem uma determinada forma estrutural ao Estado, que marca, mesmo no auge do triunfo dos Estados Unidos, um modo de desenvolver a sua estratégia econômica e política de país, de nação, definida pelo setor privado financeiro. Já na China, mesmo antes dos anos 2000, a estrutura do Estado estava acima tanto do setor bancário como do setor produtivo, porque as grandes empresas de ambos os ramos são fundamentalmente estatais. Ou seja, quem define a política econômica, a estratégia geopolítica e geoeconômica dos chineses é o Estado. Então lá, ele sempre esteve por cima, mesmo quando houve a crise asiática dos anos 1990. E agora, o Estado chinês continua por cima, só que, neste momento, ocupa uma posição de destaque mundial. Por ocasião da expansão do eixo único americano, no dobrar do século, a China assumiu, por duas razões, um lugar impar na mundialização. A primeira, porque na busca de produtos que barateassem o custo da mão de obra, sobretudo americana, as multinacionais, principalmente dessa origem, se deslocaram para produzir na China. A segunda, porque o Estado chinês, ao decidir transformar a sua economia numa grande economia exportadora, com base multinacional, optou igualmente por uma política de saldos comerciais, o que permitiu que ela fosse a grande financiadora estrangeira do Tesouro americano. Foi, como no tênis, o saque do set.

3) Então, leitor atento, vamos seguir os passos. Continuo aqui a desenvolver, nesta passagem, também uma pergunta que o amigo Marino Boeira fez lá atrás, sobre o sucesso da China. Foi o Estado que decidiu que a China se tornaria uma economia exportadora e que financiaria uma parte da dívida americana. Foi o Estado quem organizou a entrada das multinacionais na China, as formas delas se instalarem lá, a negociação da transferência de tecnologia, os possíveis níveis de associações entre empresas estrangeiras e chinesas. E tudo isso dentro de uma visão estratégica de nação, onde a política econômica global era definida pelo Estado, onde as empresas (bancos, indústrias, companhias comerciais exportadoras, fundos soberanos) agiam e agem dentro da liderança do Estado. E num dos elementos fundamentais da política econômica, a questão monetária, o controle do Estado é total, pois tem o poder de manejar a taxa de câmbio segundo os seus interesses. Aliás, essa é uma das reclamações dos neoliberais americanos, como se o dólar fosse só fruto das decisões de mercado e os Estados Unidos não se valessem dele por ser americano e moeda mundial. Mas o fato é que o Estado chinês tem o comando da economia chinesa e da sua relação com exterior. Trata-se de ver que essa é a posição original da China na dinâmica econômica financeira e produtiva da mundialização.

4) A diferença está, portanto, na unidade do Estado, que proporciona a capacidade de definir e articular, tanto a sua estratégia geopolítica como a sua estratégia econômica, gerando a China o seu lugar na confraria/contenda das nações do planeta. Trata-se de uma postura de união de uma política nacional com uma política econômica. E cabe dizer, nesta passagem, que esta política econômica, no caso da China, é global. O que quer dizer isto? Quer afirmar que a gestão chinesa abarca todas as políticas de Estado, ou seja, a política monetária, a política cambial, a política fiscal, a política financeira, a política industrial, a política agrícola, a política tecnológica, a política de salários, a política social, etc., etc. E é por isso que, quando o leitor fala na questão da crise dos quatro bancos chineses, a aparência é de que a solução do tema passou pela mesma forma dos Estados Unidos. Num sentido sim, noutro não. Sim, porque o Estado teve que entrar em campo para salvar os bancos. Não, porque o Executivo salva as instituições financeiras sem precisar pedir autorização para o Legislativo, como no lado americano. O que faz com que as absorções dos prejuízos sejam socializadas através de decisões internas ao próprio Executivo, embora com repercussões nas bolsas e no sistema financeiro.

5) Agora, queridos amigos, vejam a diferença com o Estado Americano. Em primeiro lugar, esse Estado não tem unidade. A sua estrutura está separada politicamente, desde logo, por causa da independência constitucional do Banco Central americano, o FED, fato que marca, na prática, a vinculação do banco com as finanças. Ou seja, configura-se uma independência estrutural. E faz com que esse Banco reja a política monetária fora da unidade do Estado, pois é este que tem que se adequar à política daquele. Em segundo lugar, a escolha do secretário do Tesouro é um cargo fundamental, pois se um secretário, como Timothy Geithner, for relacionado com as finanças, toda a estrutura econômico- financeira (Banco Central e Tesouro) veste as cores do setor dominante. Olhe-se a flor do jardim: ela chama-se hegemonia das finanças. Somam-se a isso, mais dois fatos decisivos. Um deles é que as decisões de alterações de leis como a do sistema financeiro (New Finantial Regulatory Law), como a Lei dos Empregos Americanos (American Jobs Act), etc., passam pelo Congresso, onde os bancos e as indústrias têm lobbies expressivos. E o Congresso pode paralisar o Executivo, como paralisou no caso do teto da dívida e do corte dos gastos. E o segundo fato é que a política econômica do Estado americano é parcial; macroeconomicamente, ele só define a política monetária – que, no caso americano, já é cambial – e mais as políticas financeira e fiscal. O resto é definido de forma microeconômica pelos mercados. Por tudo o que expus, a conclusão é que o Estado americano é um Estado fragmentado. E, por conseqüência, a estratégia nacional americana para as ordens da política e da economia mundial passa por dificuldades inúmeras em função desse múltiplo fatiamento. E isto que nós não estamos analisando a segmentação, que pode se ampliar, quando se pensa o poder militar do Pentágono, em função de seus objetivos bélicos e, até mesmo, políticos próprios, quando antagônicos a outros objetivos estatais.

6) Nós, os leitores e eu, não estamos discutindo aqui a questão política da democracia ou da ditadura do Estado. O que estamos apontando, na atual geopolítica e geoeconomia, é a capacidade de agir unitariamente diante das questões postas pelas citadas ordem econômica e ordem política mundial. O que disse em outro artigo foi que a China era a grande novidade nesta hegemonia do capital financeiro, porque ela não estava submetida ao império das finanças. Ao contrário, era ela quem, através do Estado, comandava o desenvolvimento centrado na produção com presença das finanças. O que tenho expressado aqui é que se abriu uma fenda, um corte, na unidade do antigo eixo americano. De um lado, temos um eixo americano dominado pelas finanças que, subordinando o Estado, o leva de arrasto no seu declínio, o conduz, meio desastradamente, à decomposição do neoliberalismo. E, do outro lado, outro eixo que é um capitalismo de Estado, onde o setor produtivo, o setor financeiro, o setor externo funcionam para o desenvolvimento do capital (e no limite, para o da sociedade), porém com liderança estatal. E claro que, neste eixo, apenas o Estado unitário é o chinês, mas é.

7) E nos comentários que tenho feito, o objetivo é de mostrar que o novo na dinâmica do capitalismo financeiro mundial é esta presença do Estado para contrarrestar a imposição das finanças. O espinho encravado no mundo neoliberal. E como o Estado na China organiza unitariamente a sua ação, construindo este capitalismo de Estado (o que não exclui contradições e lutas nas esferas burocráticas, na hierarquia do Estado, e no conflito Estado e Partido, etc.), a crise da economia mundial desloca o polo dinâmico para a China, sobretudo porque ela pode puxar a realimentação da produção. Está instalada na China a possibilidade da reversão da hegemonia financeira para uma nova hegemonia produtiva, reenquadrando os Estados Unidos para outro tipo de liderança, na direção de um novo padrão de acumulação com profundas transformações tecnológicas. Isto não quer dizer que, se o aprofundamento da recessão do eixo americano (Estados Unidos–Inglaterra–Europa) chegar a uma recessão, a China e o seu eixo não serão afetados. Claro que serão! Mas as decisões que deverão ser tomadas são mais fáceis de serem tomadas num Estado que seja unitário do que num Estado fragmentado. Assim, tudo é uma questão de tempo, de ritmo, de rupturas e de metamorfoses. Esta é a hora, assim poetizaria Fernando Pessoa.

8) E o que tenho dito também é que o êxito, mesmo que relativo, da China – seja consigo mesma, seja com os demais países – certamente é um incentivo as outras nações a pensarem em aumentar o poder do Estado na economia. E mais, digo agora, os grupos sociais hegemônicos podem até clamar pela intervenção estatal. Aqui no Brasil não temos visto, as forças econômicas, mesmo disfarçando críticas, endossarem as ações do Estado? E a idéia do Estado europeu não tem sido algo que tem aparecido, aceita ou não, no horizonte da solução da crise na Europa?

9) Uns falam da ditadura do capital nos Estados Unidos, outros da ditadura do Partido e do Estado na China. Por isso, não podemos escapar – olhando a crise e perscrutando o futuro dos dois eixos aqui falados – da pergunta fatal: como é que fica a democracia no mundo? Aqui, neste meu artigo, tenho apenas uma intenção: instrumentar os leitores para a percepção de alguns signos que estão presentes e que vem surgindo à nossa vista, como os filmes de Martin Scorcese, candentes. E então, como no cinema, o meu texto muda de enquadramento e põe um plano aberto em cada leitor: como é que você responderia esta questão? (Não deixar de observar, no fundo do cenário, os movimentos sociais estourando nas cidades, praças, ruas e bairros do mundo inteiro: do Egito a Londres, de Nova York a Barcelona! Falam em “revoluções”. Mas este fenômeno é mesmo o quê? Qual é o seu efeito sobre a financeirização?).

Bom dia, Felipe X! – obrigado pelo comentário.

quinta-feira, outubro 13, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: PARA ONDE VAI A CRISE FINANCEIRA? Por Enéas de Souza

Coluna das quintas



A crise capitalista continua forte, intensa e assustadora, ao mesmo tempo, que se agrava e maltrata a sociedade. A ruptura passa por eminente, como uma ponte pênsil sobre o abismo. A gente se preocupa e teme, mas ela é ainda transferida para amanhã, como tem ocorrido nos últimos meses. Existem até agora medidas que servem para ganhar tempo. O problema se centra na queima de capital e na reorganização da economia e da política como um todo. Digo queima de capital porque, quando ele constrói um aumento excessivo de produção e de acumulação financeira, há a necessidade profunda do sistema se despojar do que está a mais. Um sintoma de que o capital precisa se renovar e encontrar um novo formato. Quer dizer que o negativo está apontando para um possível positivo: uma nova economia. Todavia, não sem problemas, não sem barulhos. Por essa razão, o capital faz uma sangria no próprio corpo. E isso só ocorre porque a mudança é como se fosse uma passagem de um dia para outro, com uma noite de permeio, garantindo o trânsito. Só que a noite da Europa está com uma voz cada vez mais escura de tempestade.

CRISE: ABUNDÂNCIA E CARÊNCIA
A primeira coisa que ocorreu na crise capitalista foi, sem dúvida, a ruptura do único eixo que dominava a economia mundial, “a exuberância irracional” da economia americana. A crise de 2007/08 permitiu ver que tínhamos passado de um eixo singular para um duplo. O eixo único tinha se quebrado em dois. E a economia mundial, com essa ruptura, revelou que tem agora duas partes: uma dinâmica, a economia chinesa, e outra em decomposição, que é a economia americana-européia. E como um relâmpago, ficou muito claro a emergência do eixo chinês-asiático – insistente, se reformando em velocidade inimitável, de um modo geral em grande movimento, invejadamente ativa, mas incapaz de reanimar a economia mundial como um todo. E o outro eixo da economia americana-européia, coitado, tem que queimar capital de forma lenta e dolorosa. Ignácio Rangel, o fantástico economista brasileiro, dizia que o grande problema das economias seria como reorganizá-las, como reenlaçar o que ficou separado durante a crise. Porque essa deixa, de um lado, abundância de recursos, e do outro, carência deles. Não é o que está acontecendo com a China, com grandes saldos de reservas, e os Estados Unidos-Europa, numa crise de liquidez e, em alguns casos, de insolvência? Por que não se faz um laço entre os dois eixos? É que aqui, o problema está além do quintal, ele é geoeconômico e geopolítico. Pois os Estados Unidos temem a invasão chinesa, temem o domínio de empresas e bancos nacionais pela China. Seria dar vantagem no jogo estratégico. Vejam o caso da SUNOCO que o Congresso americano vetou a venda.

O QUE É QUE A CHINA TEM DE DIFERENTE?

Há que registrar, nesta crise, a profunda novidade da China dentro do capitalismo financeiro. Inúmeros economistas e políticos de diversos países não entendem porque o pólo chinês resistiu à crise neoliberal. Acusam a China de manipulação do câmbio, etc. etc. Os Estados Unidos estão até aprovando uma lei que permite sanções contra países que não praticam o livre mercado. Quá, quá, quá. Claro que isso vai perturbar as relações sino-americanas, mas a questão é outra. A questão é que China não sofreu os problemas dos ocidentais, porque ela tem um Estado atento à sua segurança, à sua capacidade de desenvolvimento, à sua constante expansão. Um Estado desenvolvimentista. E um Estado desenvolvimentista é um Estado que planeja a atividade econômica, que comanda o câmbio, que dirige o comércio exterior e que trabalha para recompor a estrutura produtiva e financeira quando uma crise ocorre. E, nas crises, o Estado tem, como um moto no trânsito, uma capacidade e uma rapidez de resposta que é muito maior que a instabilidade desordenadora da economia de livre mercado.

A RAPIDEZ DO ESTADO, A RAPIDEZ DOS CAPITAIS

Isso quer dizer que o processo de acumulação de capital tem como regulador intrínseco o próprio capital. E entra em atividade disparando seu lado corretivo quando há superacumulação, seja produtiva, seja financeira. Emerge, assim, no cenário, a necessidade de repor as coisas em ordem. Fazer uma faxina na casa. E uma crise se resolve através de duas forças maiores: pelo mercado e pelo Estado. De um modo geral, conjugadamente, só que dirigidos por uma delas. Quando a direção vem pelo Estado, o planejamento global e a rapidez das iniciativas ocorrem com mais eficiência (para usar a palavra neoliberal) do que quando são feitos sob direção e inspiração exclusiva dos capitais. Por que? Porque o Estado pensa sempre em termos do capital em geral, sendo ele, Estado, o árbitro das disputas e das discórdias das frações empresariais. E pode sempre sair pelo incentivo ao investimento – público, privado ou misto – que acaba por disparar a lucratividade privada e amparar o crescimento do emprego. Com isso, acaba também, por causa dos seus instrumentos e sua amplitude de atuação, resolvendo, com menos dores, os problemas de toda a sociedade. O que não quer dizer que alguns grupos sociais não possam ser afetados fortemente. Mas quando são os próprios capitais que decidem, os mercados levam tempo para reativar os lucros das empresas, a demanda só reaparece quando a eficiência marginal do capital sobe. Na crise, o capital é muito lento para escolher o que é melhor para si. Depende da fricção entre a concorrência capitalista. E a coisa piora muito para a sociedade. O leitor pode ver o tempo que demora para que o emprego retorne a níveis aceitáveis. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego, nos melhores momentos, ficou todo o tempo ao redor de 9%.

PARA ROMPER COM A CONTAMINAÇÃO

Então, partiu-se o eixo único, ficaram dois eixos, o americano e o chinês. O eixo americano vive o momento fundamental de inflamação completa. E mais, ocorre um circuito vicioso. Os Estados Unidos contaminam a Europa, agora a Europa está na eminência de contaminar os Estados Unidos. Tudo isso faz parte do processo de queima de capital. Pois, quando se fala em recapitalização nada mais se busca do que novos sócios, novos aportes de capital, de tal maneira que o capital se conjugue, se concentre, se centralize e possa enfrentar, com galhardia, a nova etapa do processo de acumulação capitalista. Porém, a crise se estendeu por todo o Ocidente. E estamos num processo de renovação do capitalismo em todo o planeta. Então, há que destruir o que se embaraçou, o que se complicou. Por exemplo, há que impedir que o capital especule do jeito que especulou. Nos Estados Unidos temos a chamada “emenda Volker”, para que os bancos sejam, grosseiramente dito, divididos em bancos de depósitos e bancos de investimentos financeiros, ou seja, bancos dedicados à especulação. Embora a questão chave para mim esteja na idéia das finanças como crédito. O que hoje se precisa é crédito para a produção, para a produção que possa dar emprego. E também que haja crédito para a tecnologia, seja para pesquisa, seja para inovação, seja para apoio à instalação de indústrias em setores avançados. É essencial impedir que o crédito vá sempre para a especulação. E nesse sentido, o Estado tem uma capacidade maior de fazer direcionar o elemento creditício para os setores fundamentais. Uma vez que pode absorver o rendimento de juros baixos ou juros negativos ou conceder juros privilegiados. O crédito é um dos pontos decisivos de uma política econômica. E o mercado não tem política econômica.

A ASFIXIA DO ESTADO PELA DÍVIDA

Então vejamos o que aconteceu com a relação Estado/capital financeiro no capitalismo neoliberal. A mudança foi substituir, em grande parte, o financiamento do Estado através do imposto pelo financiamento através da dívida pública. Ou seja, para fazer transformações profundas, ele tem que se endividar. Ora, é por intermédio da dívida, principalmente pública, que as rendas dos capitais financeiros se substancializam. Mas essa idéia de dívida também foi inoculada na sociedade como um todo. Ou seja, todo mundo faz dívidas para comprar seja carros, apartamentos e residências, seja para adquirir meios de produção, matérias primas, ou vender produtos. É a dívida que potencializa a valorização do capital. Portanto, nos dias de hoje, não se pode retornar aos impostos, porque todo mundo está endividado. Dessa forma, quando um Estado entra numa crise fiscal, a economia balança, e quando temos um conjunto de Estados endividados, acrescidos de uma crise bancária, chegamos à crise sistêmica. Não é um pouco o que Trichet dizia da Europa?

O único setor que não está endividado é o dos mais ricos – a classe alta e a classe média alta – e que ganharam como nunca. No entanto, dado o poder político destas classes, aparece o impedimento de encaminhar uma taxação expressiva sobre eles. Acabar com o neo-liberalismo é sim acabar com a especulação financeira; é sim acabar com a diminuição do Estado; mas, fundamentalmente, acabar com o financiamento estatal através da predominância da dívida sobre os impostos. Só nessa linha estratégica pode-se conduzir o Estado a ser o orientador e o líder de um planejamento social que se sustente no investimento e que, por conseqüência, traga empregos. Sem isso, ficamos nesta ronda incendiária da crise dos bancos, da crise dos Estados (chamada apenas de dívida soberana) e de nova crise dos bancos, como está ocorrendo na Europa e se avizinhando nos Estados Unidos. O mundo só mudará quando os financistas, quando a sociedade, perceber que tem que alterar este modelo de acumulação financeira. A solução para os diversos países e os diversos capitalismos não é necessariamente uma incondicional presença do Estado, mas as finanças não podem fazer do poder do Estado, do poder coercitivo dele, um benefício exclusivo para si. É o conjunto de forças da sociedade, sem a ditadura de qualquer classe – a financeira, principalmente – que poderá levar o atual capitalismo a um novo estágio econômico, com uma política econômica que encaminhe e desenhe um novo padrão de acumulação. É importante levantar a asfixia do Estado.

A realidade é profundamente política. É na política que vai se resolver a mudança do modelo que falamos acima. Para isso, os financistas têm que se dar conta de que o seu modelo chegou ao fim. E eles estão com esta consciência? Sim, e não. Quando o Morgan Chase diz que, para as recapitalizações dos bancos na Europa, são necessários 148 bilhões de euros, ele está dizendo que houve uma queima enorme de capital. Quando se fala que os bancos estão “perdoando” as dívidas, também estamos falando de queima de capital. Quer dizer que todos esses planos de resgate de países e de bancos são a busca de quem vai pagar por essa queima de capital, de quem vai perder a corrida capitalista. E o que torna ainda mais violento e contundente a situação é que essa derrapada não se dá somente com empresas financeiras. Tal acontece igualmente com o setor produtivo, alcança o setor estatal (diminuição de funcionários e conseqüente diminuição da qualidade dos serviços, decréscimo do consumo do governo, inexistência de investimento público) e chega ao paroxismo com a população (diminuição de empregos, de salários, de aposentadorias, de assistência social). Meu caro amigo Franklin Cunha, é isso que está acontecendo com a Grécia, ela é o elo mais fraco do Ocidente: Estado bichado, receita caindo, impostos aumentados mas sonegados, queda de salários, desemprego público e privado, bancos em desgraça, indústrias quebrando. E é tão desastroso que o desastre grego se torna um desastre europeu e, talvez, americano, pois está contaminando bancos de outros países, e vai criar problemas para outros Estados. A chuvarada na Grécia vai levar tudo numa enxurrada. Parece a hora de todos os segmentos do planeta pensarem e negociarem um outro caminho. Já existe um, que é o da China. Mas o Ocidente ainda não demonstrou ter chegado a uma estratégia, a um itinerário.

E...

E tem solução para o Ocidente? Tem. Duas! Uma: a profunda anarquia: deixar o barco correr para ver o que sobra, que é a chamada solução de mercado. Uma solução prolongada e desastrosa. E a outra: a solução política que começa por negociar a recomposição do Estado, a impossibilidade de salvar todos os capitais, a necessidade de promover um bem-estar social de melhor qualidade, a visão da necessidade de fazer investimentos e proporcionar empregos, visando começar a reativar as economias, pois, isso também contamina. Para tal é preciso derrotar politicamente os que insistem em ganhar financeiramente à custa dos Estados, da especulação e em detrimento dos benefícios sociais, etc. E isso é uma luta profunda, uma batalha permanente e um desforço social imenso. Nesse objetivo, é preciso ter bem claro que o que importa são alguns aspectos decisivos. E quais são eles?



PARA ONDE PODEMOS IR?



Destaco agora aspectos decisivos para a mudança da economia. Cabe considerar os seguintes pontos:

1) os Estados tem que se proteger construindo barreiras – fiscais, financeiras e monetárias – ao furacão da crise. Devem estar sempre abertos para se encaminhar na direção do desenvolvimento produtivo e social. E não necessariamente financeiro;

2) a idéia política tem que ter um alvo seguro: transformar o modelo de acumulação, saindo do financeiro para o produtivo. E, nesse caminho, alterar o padrão produtivo de produção em massa – baseado na industria automobilística e regida pelo petróleo - para um novo padrão de acumulação, baseado na microeletrônica, na internet, nos novos materiais, etc. Está na hora de construir o padrão de acumulação sustentado pelas indústrias da informação e da comunicação;

3) a busca de tornar dinâmica a competição dos dois eixos, o americano e o chinês. Para tal, é preciso estabilizar a profunda instabilidade e desordem do eixo americano, principalmente, detendo a crise européia, impedindo-a de fazer um rebote sobre os Estados Unidos;

4) a consciência de que o processo continuará sendo capitalista, com profundas mudanças no produtivo, que, obviamente, alcançará a necessidade de transformação da finanças, passando para a geração de crédito à produção e confinando a especulação ao próprio setor financeiro. Com isso, impedindo que ele avance sobre a produção e sobre o Estado;

5) a necessidade de uma transformação profunda do Estado: controle democrático e Estado unitário (comandando o Ministério das Finanças e o Banco Central). Essas alterações seguem na construção de uma economia desenvolvimentista, com investimento indo à frente e com o emprego sendo fundamental. E, como conseqüência imperiosa dessa metamorfose, a nacionalização e estatização daquilo que o neoliberalismo capitalizou: educação, assistência social, saúde, e cultura. Essas políticas públicas deverão estar à serviço do país e da sociedade e não do lucro ou da imagem das empresas;

6) a necessidade de construir ou reconstruir instituições políticas que acompanhem e regulem a dinâmica de expansão do capital na ordem financeira e multinacional. Portanto, reformas do FMI, OMC, do Banco Mundial, etc., etc., para que estejam a serviço da coletividade. Essa tensão entre capital multinacional e Estado nacional requer ser projetada para pensar e executar soluções criativas, lógicas e dinâmicas. Considere-se o caso da Europa: há que ter um Estado político, um Tesouro Europeu, um Banco de Desenvolvimento Europeu, um Banco de Resgate Financeiro Europeu, acompanhando esse já criado Banco Central Europeu, que está só ligado às finanças.

O desafio é claro: ou o capitalismo avança – e os capitais mais frágeis serão destruídos ou aglutinados – ou ele atravanca o seu próprio desenvolvimento. E, com isso, poderá ficar à deriva por muito tempo. Isso se não fizerem besteiras, como as aventuras de guerra. Os pretextos estão aí, pululando, se oferecendo para os pensamentos mal cheirosos. E hoje, o panorama ainda é confuso. As finanças não têm projeto, a não ser quebrar Estados e bancos mais frágeis (os gregos, por exemplo) e fazer a população pagar. O seu projeto de futuro é não ter futuro. Por isso, que “Occupy Wall Street” avança. Essas manifestações populares com presença eletrônica ainda são muito tímidas, sem perfil político definido. Mas, estão aí. Já o capital produtivo está cindido entre o capital velho, que está mais para as finanças do que para um futuro; e um capital Steve Jobs, um capital Google, um novo capital para a área de comunicações que pensa, sim, numa outra sociedade. Será melhor? Ninguém sabe. As ameaças podem ser muitas. Mas, se o capitalismo sair, ele vai sair por esse canto. E o Estado pode ter futuro se se der conta de seu lado desenvolvimentista, mas também de seu lado social. E isso vai se decidir na luta política e social que está em curso. Como sempre digo a amigos: o mundo vai para o caos, mas para os cientistas sociais (economistas, sociólogos, politólogos, etc.), a realidade atual é sempre assustadora e inquietante, porém excitante e novidadeira. E o que se sente: o rio do futuro está forçando a ruptura das barragens do passado e do presente. Mas, por enquanto, só se vê esse passado indigesto da financeirização em ruínas.