domingo, agosto 28, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: A incrível "interpretação" tucana sobre a crise; por André Scherer

O iFHC reuniu toda a plumagem nessa quinta-feira para um seminário intitulado "Transição incompleta e os destinos da (macro) economia brasileira".  Nome pomposo para mais uma demonstração pública do autismo que vem caracterizando o partido de FHC após nove anos de ausência do poder. Não que seja surpreendente. Dentro dele, seus diagnósticos sobre o Brasil e o Mundo já primavam por frases de efeito sem sentido ou aderência com a realidade  ("o preço do dólar se forma do mesmo modo que o preço da banana"; "nós não merecemos a punição que o mercado está nos impondo porque somos bons alunos", etc...); mas agora há uma superação da forçação de barra subserviente ao mercado financeiro que lhe é própria, agravada pela emergência da crise financeira mundial de 2007.
No referido seminário, além da sempre presente proposição de que o "Estado gasta muito e gasta mal", uma bobagem que tentam introjetar no cérebro dos desavisados pela repetição incessante à la Goebbels, e que "por isso os juros são elevados"; ainda se disse que "a crise financeira mundial explicitou os limites do Estado de bem estar social promovido por meio do gasto público". É até difícil comentar proposições que colocam os "progressistas" tucanos brasileiros em posição alinhada ao Tea Party, aos conservadores fiscais da BCE "alemã" e aos articulistas mais conservadores do Telegraph, jornal anti-europeu londrino. Ou seja, àqueles que têm se caracterizado por tentar jogar todo o peso da crise sobre os funcionários públicos, os aposentados e os mais pobres, condenando os gastos sociais como desperdício e louvando o "salvamento" do sistema financeiro tentando se eximir de pagar os custos.
Mas, tentando ser breve, alguns questionamentos se impõem:
- quem "administrou" mal os recursos que lhes foram confiados, foi o Estado ou o"eficiente" sistema financeiro privado?
- quem deixou vários trilhões de rombo que tiveram de ser absorvidos pelos Estados, nos EUA e na Europa, deixando em situação terrível os cofres daqueles países no momento em que a crise econômica dificulta a manutenção ou o aumento da receita fiscal?
Dizer que a crise financeira expõe os limites do welfare state é dizer que a população tem de ser punida pela imprudência e ganância dos financistas. Explicitar isso como uma tentativa de compreender a realidade contemporânea é, além de faticamente incorreto, um alinhamento completo com as forças que desejam aproveitar a crise para forçar a redução de direitos dos trabalhadores a fim de que se coloque mais água no moinho do sistema financeiro. O que terá como resultado apenas a postergação e o agravamento futuro da crise, como vimos dizendo nesse blog junto com o Enéas.
O lado bom é que com interpretações e programas como esses discutidos nesse seminário, a chance desse pessoal voltar ao poder no Brasil está cada vez mais reduzida. O lado ruim é que caso essa infelicidade ocorresse, a população brasileira estaria muito mal parada. Fiquemos com o lado bom.

quinta-feira, agosto 25, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: SEMINÁRIO UNDESA-IPEA-IPD: Managing the Capital Account and Regulating the Financial System, no BNDES, RJ


Brasil é pioneiro no controle dos derivativos
Brasil é pioneiro no controle dos derivativos
Especialistas estrangeiros reunidos no RJ acreditam que país acertou ao taxar as operações especulativas
O Brasil foi mais longe que outras nações ao taxar a entrada de capital especulativo e as operações de derivativos cambiais. Essa afirmação foi feita pela professora da Universidade de Columbia (EUA) Stephany Griffith-Jones, nesta quarta-feira, 24, durante a coletiva pública que encerrou o seminário Managing the Capital Acount and Regulating the Financial Sector: A Developing Country Perspective
O governo brasileiro estabeleceu recentemente uma taxa de 1% sobre operações com derivativos e obrigou as instituições financeiras a registrar suas posições líquidas nesses papéis na Bovespa. Dessa forma, o Ministério da Fazenda pretende reduzir a entrada de capital especulativo e ter informações sobre esses instrumentos, que foram uma correia de transmissão da crise financeira global em 2008.
Na época, empresas exportadoras do Brasil acumularam grande endividamento com a desvalorização do real. Elas especulavam firmando operações de hedge muito superiores às suas receitas com exportações, apostando na apreciação da moeda nacional.
“As medidas adotadas pelo Brasil não são uma bala de prata que vai resolver os problemas causados pelo fluxo de capital, mas são importantes e pioneiras, pois permitem regular e obter informação em um mercado que está à sombra, não pode haver instituições financeiras sem regulação”, argumentou Gryffith-Jones.
Y.V. Reddy, ex-presidente do Banco Central da Índia, concorda. Para ele, a maneira ideal de se lidar com o capital especulativo é criar um mix de políticas fiscais e regulação. “Taxar as operações, mesmo que simbolicamente, é importante para consolidá-las, monetizar os papéis e obter informações. São medidas que caminham na direção certa”, explicou. Para ele, a partir dessa base, as autoridades do país têm espaços para adotar novas medidas, inclusive, se necessário, elevar a taxação para desestimular algumas práticas.  
O seminário Managing the Capital Acount and Regulating the Financial Sector: A Developing Country Perspective foi organizado no Rio de Janeiro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em conjunto com o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (Undesa). Durante dois dias, especialistas e formuladores de políticas de diversos países debateram as necessidades e os meios de se regular o mercado financeiro e controlar o fluxo de capitais especulativos.

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: Quem salva quem na Europa? (obrigado Thobias)


quarta-feira, agosto 24, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
25 de agosto de 2011
Coluna das quintas


A EUROPA NUNCA SE ACABA?
Por Enéas de Souza


Como Zaratustra de Nietzsche, um economista vai ao mercado e vê a Europa se balancear no trapézio, pronta para se esborrachar no chão. Terrível. A Europa foi o grande engodo das finanças. As finanças e, em particular, os europeus sonharam dar o grande pulo do leão. Sim, o do leão e não o do gato, porque o pulo europeu seria vasto, mais vasto que o do próprio gato, pois esse seria muito pouco para a ambição européia. Era a astúcia do capital financeiro em plena Europa a querer saltar por cima das nações e abrir e constituir um espaço amplo, à frente, uma face já no futuro, independente dos Estados nações, puxando a sua própria valorização. A Europa dos capitais. Uma valorização imantada pela atividade especulativa solta, selvagem, desordenada; o capital só se relacionado consigo próprio, dinheiro chamando dinheiro, como diria o velho alemão Karl. Todos os capitais estavam vibrando: pouca regulamentação, nenhum controle europeu, apenas um Banco Central, posto por eles mesmos – uma lição de JP Morgan, o banqueiro que inventou o Banco Central. Surgiu então o BCE com esta alma, com esta postura transnacional, atravessando praticamente todo o continente.



2) Mas os capitalistas vão de arrasto no movimento dos capitais. Pensam que são eles que criam o dinamismo deste; é o contrário, eles são criados pelos capitais. E o sonho do capital era o de avançar num espaço aberto, sem amarras, especulando; ou seja, a renda alcançando dimensões notáveis, superando fortemente a categoria do lucro. Todo mundo é rentista, inclusive você. Pois bem, quando a economia cresce, o ciclo sobe como uma pipa, como uma pandorga, tudo vai bem. Mas os ludibrios são tantos, que se colocam em jogos financeiros tantos títulos e hipotecas sem nobreza, vagabundos, que a desconfiança chega; e traz o vento desagradável do inverno econômico. Na Europa, com um agravante, o incesto capital privado e Estado.



3) Onde está o furo desse capitalismo financeiro? Onde está o furo desse eixo Estados Unidos – Inglaterra – Europa ? Onde está o furo do eixo americano?



4) Vamos sempre pensar como é que se dá a dinâmica desse capitalismo financeiro. Ela começa com a especulação puxando a valorização, a proporcionar renda aos investidores, faz com que o capital-dinheiro saia pelo escoadouro do consumo e a importação de produtos necessários para a reprodução da economia E só aí é que a economia pensa no futuro; só aí vem o investimento. Vejam o primeiro equívoco deste sistema: o investimento é variável dependente. O segundo ponto – na verdade, o primeiro – todo esse processo é feito sob o olhar de Carolina: o Estado fica na janela vendo o banco passar. O banco é a banda do Chico. E a economia se faz sem regulação.



5) Pois vejam a ambição: a economia estaria nas mãos das finanças que puxaria os links do consumo, do comércio internacional e, no fim, dava uma chance para a produção. E isso sem controle, sem a presença, a não ser muito discreta, do Estado, do FED praticamente, pois o resto do Estado ia tratar, no caso americano, da Guerra ao Terror, na verdade, a Guerra Santa do Petróleo, a Guerra da Predação. Uma aliança Pentágono – Indústria Bélica – Indústria da Construção Civil – Indústria Energética.



6) Continuo a me fixar na questão da dinâmica, porque é preciso entender que o centro geográfico do comando da acumulação de capital era os Estados Unidos, mas, via os fluxos de aplicação financeira, abria-se uma dupla mão que avançou a expansão do capital pela Inglaterra e pela Europa. Quando o Lehman Brothers e a economia das finanças americana desabaram, a Inglaterra e a Europa foram juntas. E aí se viu o escuro da luz. Pois o Estado não estava a serviço da nação, estava do lado das finanças. Mais que o Rhum Creosotado, quem salvou o capital da bronquite foi o Estado, mas deixou a população com a enfermidade, o desemprego, é claro. E, ao mesmo tempo, a peste foi mais longe: não havia coordenação estatal entre Estados Unidos, Inglaterra e Europa, o tal de G-7 era uma drágea de paracetamol e, com isso, os capitais ficaram no pânico. E todos correram para os seus Estados. Será que deu pra ver que o eixo Estados Unidos – Inglaterra – Europa se corroeu, e cada parte ficou meio que isolada, tentando resgatar o lado estatal de sua praia?



7) E o que é que aconteceu? As partes foram se isolando. E isso hoje é absolutamente visível. Por falta de coordenação geral dos Estados – até pode haver uma restrita colaboração entre Bancos Centrais – a cadeia dinâmica foi se esfacelando e a Europa cada vez mais tendo que se virar por si mesma, mas, como já temos falado, com aquela fragilidade toda, sem reinventar investimentos produtivos. Então, leitor, veja o que está ocorrendo: os bancos e os Estados se deram as mãos. Os bancos estão mal porque tem títulos do Estado, e os Estados estão no cadafalso porque têm seus títulos colocados nos bancos. Nesse nível, o rastilho da crise funcionou assim: a crise dos títulos podres bateu nos bancos e a crise dos bancos se aconchegou no Estado, e a crise do Estado voltou para os bancos. E então, esse mesmo fenômeno olhado pelo lado dos países, a coisa parece assim: dos Estados Unidos passou pela Inglaterra, e logo, dali aportou na Europa. Só que agora, com a crise européia, os Estados Unidos estão tentando se livrar dela, usando porta corta-fogo. Por exemplo: de um lado as autoridades reguladoras americanas e inglesas estão exigindo dos bancos europeus comprovações cada vez mais rigorosas da sua liquidez; e de outro lado, os americanos estão retirando aplicações feitas no outro lado do Atlântico. Banqueiro escaldado tira a cauda da sala; melhor, tira seu capital dinheiro dos bancos em perigo.



8) Entre outros fatores, um dos problemas da Europa, já falamos, é, sem duvida, esse enlaçamento bancos e Estados. Ponhamos nossos óculos de grau para enxergar melhor. Só para se ter uma idéia: os bancos detêm em euros: 98,2 bi da Grécia, 317 bi a Itália, 280 bi da Espanha. Quebra um, ameaça o outro. E aí, essa turma, por esses tempos, fez um acordo geral para resgatar a dívida da Grécia. Fizeram um, fizeram em seguida um segundo acordo. Contudo a Grécia, em desespero total, em crise social imensa, tem que esperar, porque o acordo dos chefes de Estado só vale se for aprovado pelos parlamentos. É claro que a velocidade e agilidade não estão na natureza desse instrumento, só que a Grécia precisa de grana AGORA! Percebe-se logo, a inteligência da situação é crítica: o referido acordo permite – olha só a desordem vinda no outro lado da rua – que haja acordos bilaterais entre a Grécia e um dos signatários. Pois não é que a Finlândia e a Grécia fizeram um concorde rapidinho e tácito, o que enfureceu a Alemanha, que vetou esse negócio? Assim, esses pequenos acertos travam o movimento geral, criam problemas políticos para os diversos países, para a Grécia inclusive. E, no final, ela vai fechar com o pior aceite, pois todo mundo vai querer acabar ganhando nas costas da Grécia. E desaba uma das coisas fundamentais da Comunidade Européia, a união, justamente aquilo que poderia sustentar o objetivo maior. Do jeito que está, ela, a Comunidade, vai se chamar de Desunião Européia.



9) E o grave problema – isso é assunto comezinho em nossas análises – é que não existe um Estado europeu, portanto, ninguém manda. Dessa forma, temos grupos contra grupos; a França e Alemanha tentando organizar o mundo do jeito que gostam; e no fundo, estão todos contra todos. A Europa, a rigor, é uma praça de ninguém. O sargento da vez, como na antiga Bolívia, é que dá a direção... Contudo, a coisa é pior, porque as dívidas da Grécia, da Irlanda, de Portugal, da Itália e da França ou já marcharam ou estão para ser postas em causa. Daí a eminência do desastre. Se esses países pudessem fazer parte de um Estado da Europa com um Tesouro único, talvez elas fossem bem manejáveis, pois mesmo diante dos grandes volumes, a dívida seria única e haveria um jogo monetário com o Banco Central e um jogo fiscal com o Tesouro Europeu. No caso atual, a desordem é absoluta: os Estados não confiam nos Estados, os Estados não confiam nos bancos, os bancos não confiam nos Estados, e os bancos não confiam nos próprios bancos – talvez até acreditem menos ainda..



10) Com toda essa atmosfera envolvendo a cena européia tudo, o ambiente fica péssimo. Os especuladores ameaçam os Estados, os bancos fecham o interbancário, e a preferência pela liquidez impede que a fluidez venha, senão da Europa para a Europa, ao menos, dos Estados Unidos. Mas a sinistrose está a caminho, pois o boomerang está se armando. Quem diz que essa bomba americana, que foi posta no colo dos europeus, não volta para os Estados Unidos, dado que tudo está interligado, como rede de metrô ou uma rede da internet? E obviamente, não tendo Estado, nem tendo Tesouro, a Europa, meio alquebrada, vai tentar se equilibrar com o Banco Central Europeu. Esse vai tentar dar liquidez ao time, só os Tesouros dos Estados Europeus, vão ser todos ameaçados – quem sabe até o da Alemanha – e não vão poder fazer nada sozinhos. Resta, então, o superestimado Fundo de Estabilidade (EFSF) que vai surgir somente para cobrir as necessidades do trio Grécia – Irlanda – Portugal. Se Itália e Espanha precisarem, os dois países liquidarão esse fundo, porque ele só tem, e precisa ainda ser aprovado, 440 bilhões de euros de recursos. Portanto, a Europa está pela bola sete. Ou a Europa se reinventa ou ela volta para as Cruzadas. Imagine se ela fosse como os Estados Unidos: teto da dívida controlado e despesas também? Shakespeare poderia dizer: Europa, teu nome é fragilidade. E mais ainda quando soubesse que a Alemanha quer aprovar para todos os demais Estados a estultice liberal por excelência: igualdade da receita e da despesa. E ficaria mais espantado quando descobrisse que a Alemanha já aprovou para si essa pérola, com a possibilidade que a segunda supere a primeira em um ligeira flexibilidade de 0,35%. Que liberalidade, hein, Angela Merkel?



11) Enfim, aqui está a espiral explosiva. Dívida, austeridade de gasto, aliança banco–Estado, queda da atividade produtiva, crescente incapacidade das finanças de especularem e desemprego larvar e contudente. Tudo o contrário do que seria a receita fundamental. Vejamos: Estado europeu, Tesouro europeu, aumento do déficit, aumento da dívida, fortes gastos públicos e privados em investimento, retomada da produção, aumento do emprego, aumento de receitas, pagamento das dívidas, e um novo caminho. Isso para retomar e reativar as atividades econômicas. O que, no entanto, seria só o recomeço pois seria decisivo ver qual a forma como a indústria européia poderia se integrar no novo padrão de acumulação dominado pelas novas tecnologias do conhecimento, da comunicação, da informação. Mas este é um outro problema. Ou a Europa vai para a depressão ou ela vira o jogo.



12) E ela pode? Seria preciso discutir o rumo político do continente. E a pergunta decisiva é a seguinte: com tantos países rumando para a direita (não esqueçam a Inglaterra e mesmo a batalha americana de 2012), cujo objetivo é o conservadorismo paralisante, expresso por corte de gastos, equilíbrio orçamentário, corte de despesas sociais, exclusão de emigrantes, etc., permite que eu faça a você esta indagação: qual é a sua opinião, leitor, sobre o futuro de nossa amada Europa? Será que a coisa não está tão feia, pois 16 milionários franceses (seguindo a linha do americano Buffet) estão dispostos a serem taxados para ajudarem a crise do Estado? E basta essa atitude de cortar as unhas para ficarem os anéis em dedos polidos?



13) Enrique Vila-Matas, admirável escritor espanhol, escreveu entre belos livros, um que se chama “Paris no se acaba nunca”. Faço meu este título e o amplio para a economia, só que o ponho como questão: “A Europa nunca se acaba?”.


quinta-feira, agosto 18, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
18 de agosto de 2011
Coluna das quintas


AS RAÍZES DO FUTURO DO BRASIL
Por Enéas de Souza


O Brasil está fazendo um movimento amplo de transformação de sua sociedade. Um movimento que ocorre no meio de uma crise profunda da economia mundial. Pois a coisa é assim mesmo. Na transição da geoeconomia e da geopolítica planetária, os momentos de ruptura, de esgarçamento, de destruição, de mudanças de formas, etc., alteram a posição de vários países, em função de inúmeros fatores. No caso brasileiro, o que estamos vendo é uma tríplice manobra do governo Dilma, com tal força e com tanto ímpeto, que, muitas vezes, os analistas não percebem. Na minha opinião, temos uma política e uma estratégia nacional que abarca pelo menos três aspectos fundamentais: 1) construir uma atitude unitária do Estado brasileiro; 2) compor uma resposta coordenada do Brasil diante da crise; e 3) inclinar a economia brasileira na via de uma trajetória de desenvolvimento e de integração mais ampla na economia mundial.

A LIDERANÇA POLÍTICA DE DILMA
E A UNIDADE DO ESTADO

1) Esses três movimentos se fazem em simultâneo, mas o principal é, sem dúvida, a construção de uma nova fase do Estado. Trata-se de uma manobra sutil, o que não quer dizer secreta. E ela está em busca do reencontro de uma unidade que estava perdida na política brasileira, a unidade do Estado nacional. Pois o atual período, a época que transitamos, é aquele que corre para um desassombrado gesto de tentar erradicar instituições e/ou procedimentos neoliberais. O que vai se fazendo com passos até agora precisos. Dito de outra forma, essa unidade política se dá tendo como base a recomposição da unidade econômica do Estado. Pois olha-se a Presidência, a Fazenda e mesmo o Banco Central e percebe-se um posicionar semelhante diante dos fatos econômicos.

2) A ameaça de que a crise venha estourar no Brasil faz com que essas três instituições se entrelacem e se encaminhem para um funcionamento articulado, o que ratifica o comando e a liderança da Dilma, que tem um agudo senso estratégico. Ele aparece no caráter mais visível e imediato da preparação para o pulo do gato da saída do colapso da economia mundial. E essa possível ação faz parte de uma estratégia de longo prazo, que chamo da passagem do modelo de acumulação financeira para o modelo de acumulação produtiva dentro da construção de um novo padrão da acumulação planetário. E esse jardim não se fará sob a noite da unipolaridade americana, mas sob a regência, ainda sem cor, da bipolaridade geopolítica dos Estados Unidos e da China, que tramam dois eixos econômicos em emulação e conflito.

3) A primeira proposição, portanto, dessa estratégia, como dissemos, é o reforço do Estado, posição que começou lá em 2006 com o lançamento do PAC, que independentemente dos resultados quantitativos e puramente econômicos, foi uma torção política extraordinária, reintroduzindo uma idéia de comando unitário na política econômica, repondo um pensamento de planejamento e trazendo, para o centro estratégico do governo, a Petrobrás. Agora, está sendo dado mais um passo, diríamos mais um degrau, chegando a um outro patamar. A fragmentação do poder público, começada por ser anulada no governo Lula com a recuperação da Fazenda, enfrenta neste momento uma batalha decisiva. O permanente desgarramento e a ampla distância entre Banco Central e governo, ocorrida na época do neoliberalismo, agora parece ficar cada vez menor, a junção cada vez mais próxima. Ou seja, a modernidade neoliberal da Fazenda e do Banco Central de outros tempos, a formarem um duo da canção financeira como nos Estados Unidos, criando problema para a política da Presidência, parece se arrefecer, tomar novo rumo com Dilma.

4) Passamos da desintegração provocada pelo triunfo das finanças para uma reunificação política do econômico na direção de um outro tipo de acumulação. E o resultado e a atração maior, politicamente, é a unidade do Estado, supostamente mais coerente. Esse movimento vai no sentido de alcançar uma política econômica global, se ergue para superar aquela política reduzida, restrita à política monetária, à política cambial, à política financeira e à política fiscal. Nela, regidas pela política financeira e monetária, se davam as avenidas do sonho das finanças. Desde o governo Lula, a recomposição da totalidade da política econômica tem sido um objetivo perseguido. E Dilma tem se esmerado desde a sua entrada na Casa Civil, fornecendo munição para as possibilidades desse itinerário. E a construção da unidade do Estado é uma parte densamente importante, decisiva e construtora, da estratégia global que vai unir as dimensões da política e da economia do Brasil.

Parêntese 1 - Podemos nos dar conta dessa aproximação na política econômica através de determinados sintomas, como os pronunciamentos e decisões da presidente, do ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central a respeito de uma possível proteção e repercussão dos problemas que viriam da crise do eixo americano (USA-UK-EUROPA). Estamos querendo acentuar que a mágica desses atos é de alcançar uma integração da política econômica global do Estado brasileiro.

Parêntese 2 - Pode-se perceber, além disso, que na área propriamente política se desenvolve uma linha ainda muito diáfana na manobra refinada do retorno de Celso Amorim ao Ministério. Creio que é possível conjeturar e constatar que a unidade do Estado proporciona uma conexão extremamente importante na área da diplomacia e da defesa.

5) Ora, a passagem de um modelo financeiro para um modelo produtivo requer que, por trás da política do Governo, haja ocorrido ou esteja para se confirmar um acordo em termos de economia política. Ou seja, que os grupos sociais que vão sustentar a posição da liderança política nacional sintonizem com a mão que dirige o Governo. Pois, como disse, essa transição e essa metamorfose – de uma hegemonia financeira para uma hegemonia produtiva – está sendo armada pela Dilma já faz algum tempo. O que temos agora na economia globalizada é uma lenta capitulação da área financeira internacional. E embora ela esteja projetando até aumentar a sua presença por aqui, a flor especulativa está murchando, quem sabe no médio prazo será uma outra flor, instalada num outro terreno. E, ao mesmo tempo, fazendo parte e integrada em diferente vegetação, o que garantirá a mudança de figura do crédito, de especulativo para dedicado à produção. Com isso, a flor do financeiro adquirirá uma face distinta e se transformará, porque plantada numa união institucional em favor da área produtiva. Dilma tem dado passos nessa direção e o jardim da economia está sendo pensado de outra maneira. Por esse motivo, a estratégia nacional da unidade do Estado está, como uma serpente prospectiva, se enroscando nas outras dimensões do projeto econômico nacional. Analiticamente, temos o momento da defesa da economia diante da crise e o momento da construção de uma estratégia de desenvolvimento. E a natureza dessa complexa estratégia se materializa numa arquitetura ainda instável que vai nascendo sob a liderança da Dilma.

Parêntese 3 - Uma coisa é a política profunda das classes sociais, que atravessa complicações conjunturais para estabelecer estruturas que perduram, que tem dinamismo lento, mas que, firmes, acabam por definir trajetórias de longo alcance. Mas essa política é mediada por lutas de diversas ordens, que eleitoralmente se expressam em conflitos de política partidária. Com isso, avulta e emerge algo que ainda não tem uma tendência mais definitiva, e que se dá na relação entre a presidente, o congresso, os partidos, a mídia convencional, a mídia alternativa e a população em geral. É uma disputa que baila na superfície do dia a dia. E tem toda uma configuração, tem muitos lados. Todavia, no caso que nos interessa, trata-se da questão da corrupção. Se de um lado, Dilma tem tomado medidas cirúrgicas contundentes, mostrando o Governo na linha de frente dessa batalha; de outro, a mídia conservadora e os partidos descontentes, no entanto, tentam empurrar a idéia de que o governo da Dilma “está cheio de corruptos”. A própria presidente não está atingida, as bazucas estão assestadas para o desgaste do Executivo; Dilma não é o alvo direto, mas o governo dela. É a tática da política como espetáculo e como escândalo que se constitui como o maior perigo do governo Dilma. Pode até afetar o processo de unidade do Estado. Até agora, é verdade, as ruas apóiam e sustentam a presidente. Mas esse problema não pode deixar de ser considerado na tríplice manobra.

O VOLUPTUOSO ARCO ESTRATÉGICO 
LIGANDO O CURTO AO LONGO PRAZO

1) Há duas coisas a fazer do ponto de vista econômico, a partir da reconstrução progressiva da unidade do Estado. E essa unidade serve para um lance que se apóia do longo prazo, um fio lançado no espaço do futuro, e que desce até o curto, desenhando, na verdade, uma defesa contra os efeitos maléficos da crise. Por essa razão, a estratégia do Brasil não deixa de considerar os dois tabuleiros, praticando uma partida simultânea, pois não dá para separar no tempo as jogadas, embora visando alvos diferentes. Não se pode ficar esperando para lançar as malhas de amanhã esperando superar detalhes que batem no presente. E nem se pode cuidar da praia sem pensar no alto mar.

2) O que me parece ser o movimento mais dilatado, mais extenso e de mais duradoura ambição, tem um foco maiúsculo. Convém que se fale da transformação de uma economia financeira para uma economia produtiva. E se nomeie os lances para o adiante, na preparação, na transição do atual paradigma tecno-produtivo – como dizem certos schumpeterianos – na estrada para um segundo paradigma. Na minha linguagem, a transformação de um padrão de acumulação, organizado a partir do duo petróleo e automóvel, para um padrão que começou a se desenvolver, já nos anos 1970, em torno da indústria da informática, da telecomunicação, da internet, mais popularmente chamado de novas tecnologias de comunicação e informação, exatamente no momento da sinergia dos componentes, numa ascensão cíclica rumo sua fase de maturidade.

3) Não se pode deixar de pensar que estas mutações se dão num ambiente geoeconômico balanceado entre o eixo americano e o eixo chinês. O Brasil, que está no ponto de conexão dessas duas linhas, não pode deixar de se situar igualmente na esfera geopolítica tramada a partir dos dois países líderes. Ou seja, o Brasil terá que atuar tanto geoeconomica como geopoliticamente. Ora, a visão se complexifica, o cenário torna-se mais espinhoso e o futuro embrulhado: a atmosfera histórica traz nuvens carregadas e sombrias, inquietantes de ameaça. Dessa forma, a estratégia brasileira põe dois elementos fundamentais: na esfera econômica, investimento e tecnologia; no campo político, busca de uma situação pendular entre Estados Unidos e China.

4) O arpão está lançado no futuro. Não vai para Moby Dick, vai para o padrão de acumulação das novas tecnologias de comunicação e informação. Pois cabe, em primeiro lugar, dar-se conta que essas altas tecnologias estão fora do olhar e da inteligência científica brasileira. Não temos nada em estoque, nem temos condições de financiarmos essas pesquisas. No entanto, pode-se apostar um cartão, dois quem sabe, nesta MegaSena. Porém, uma coisa é certa: a tecnologia acessível vai comandar a reorganização produtiva do patamar pensado. É nisso que o Brasil terá que trabalhar. Mas, economicamente, o decisivo é saber que temos dois objetivos chaves: a ancoragem no novo padrão e o financiamento das propostas de investimento para o nosso desenvolvimento neste percurso. Ou, dito de outra forma, precisamos cimentar a nossa participação na nova divisão internacional do trabalho.

5) Na minha opinião, já estamos, felizmente, ancorados nesse novo padrão, no porto específico da construção de sua infra-estrutura. Pois o retorno da Petrobrás ao centro estratégico do governo, as descobertas do pré-sal posicionaram de forma irreversível a nossa inscrição na infra-estrutura energética desse padrão. E isso nos permite saber e refletir que o Brasil terá um papel destacado. E vai além do petróleo, pois tem bala para fornecer matérias primas, onde a Vale estará envolvida, como, igualmente, para alimentar o mundo, através da pujança do agrobusiness. Naturalmente que se requer uma maior industrialização, seja de produtos derivados desses setores, seja de bens oriundos da diversificação indispensável da indústria brasileira.

6) Daí a gente entende como é importante o setor de bens de capital, não só maquinário para construção civil, mas máquinas e equipamentos para a produção das indústrias. E o setor de bens de capital tem um papel fundamental porque o dinamismo da economia produtiva vem dele, pois vai à frente distribuindo vigor tecnológico e dinamismo produtivo. Se o investimento é a variável decisiva da próxima ancoragem da economia brasileira no novo padrão econômico, sem dúvida, a expansão do setor de bens de capital é imperiosa.

7) E estudos mostram que o Brasil pode estar preparado para a exigência de bens de capital, mesmo na hipótese de altas taxas de crescimento. Por isso, nessa passagem do modelo de acumulação financeiro para o produtivo, o investimento tem que alcançar níveis compatíveis com a pretensão brasileira. Um estudo do BNDES diz que o Brasil, em 2009, estava com uma taxa de 17% em relação ao PIB, muito menos elevada que a da China (45,6%) e dos países asiáticos e da média do conjunto dos BRICs (28,7.%). Todavia, a herança financeira do neoliberalismo nos colocou ainda abaixo do Equador (24,1%), do Peru (24%), do México (21,6%), do Chile (21,4%) e da Argentina (20,9%). E o pior fica evidente: estamos num nível inferior ao da média mundial (19,5%). Um desastre quase completo. É verdade que ganhamos dos Estados Unidos (15,1%), só que este é um pais bem mais financeirizado que o nosso. Todos esses dados nos garantem que o papel do investimento e do financiamento ao investimento no Brasil estará na primeira linha das preocupações. Transformar o crédito à especulação em crédito para a produção é uma alavanca maior para o projeto brasileiro, sabendo-se que será indispensável e inadiável, para o êxito nacional, o investimento em infra-estrutura (energia elétrica, telecomunicação, saneamento, logística, ferrovias, transportes rodoviários, portos) etc. Para tal, o setor público terá que puxar as inversões, seja por meio do orçamento público, de programas públicos, do BNDES, do sistema de bancos públicos, de empréstimos estrangeiros, além dos investimentos privados nacionais e do investimento internacional. Não resta dúvida que, sem uma unidade do Estado, estas perspectivas não sairão do chão.

POR QUE PORTA A CRISE VAI ENTRAR?

1) Tratamos antes do projeto de desenvolvimento. Algo porém, como uma areia no sapato, como uma barreira na rodovia, incomoda: são as coisas do curto prazo. A resposta desse problema está fortemente arraigada no pensamento, nas táticas e na estratégia de Dilma. Portanto, ela tem um diagnóstico e sabe que a crise está vindo, e tem uma potência destruidora. A primeira pergunta vem fácil: por onde a crise vai chegar? A meu ver, existem dois pontos por onde ela pode surgir. Um deles é o da via comercial, como diz Henrique Meirelles, que seria efeito da queda da especulação em commodities, provocando uma baixa nos seus preços, principalmente no caso de uma crise generalizada. E o segundo, é uma pinta vermelha no nariz, o desdobramento no setor dos bancos nacionais, já que se fala que estão muito expostos lá fora.

2) Naturalmente, que a defesa do curto prazo implica ao menos em duas coisas. Uma se sustenta na defesa dos petardos financeiros que baterão sobre o câmbio e sobre o movimento de capitais. O Brasil já tem experiência nessa área, e acredito que, no limite, está até preparado para o fogo máximo que se dará, se a crise for generalizada. Precisando operar no ponto extremo, o país pode exercer um controle apurado da taxa de câmbio e do fluxo de capitais, chegando inclusive à quarentena do capital estrangeiro. Isso já aconteceu nos anos 1970 e praticado pelo ministro Mario Henrique Simonsen, um economista liberal. Só estamos tocando nesse assunto, porque o tamanho, a envergadura, a audácia da resposta brasileira aos ventos e temporais da crise está na dependência do tamanho dos fatos. E esses são imprevisíveis.

3)Todavia, a defesa da economia brasileira não se trata apenas de medidas financeiras, mas deve se referir a uma segunda questão: o fortalecimento e a competitividade da indústria brasileira (de forma imediata na competição com a importação chinesa). O governo tem feito uma série de medidas desde o Brasil Maior até o Supersimples, objetivando não só reforçar a empresa nacional, dar-lhe espírito de inovação e audácia para exportar, mesmo em situações adversas. O Governo procura garantir financiamento, aumento de competitividade, visando o acréscimo do investimento, mas também a expansão do emprego. Portanto, tentando dar um nível de concorrência alto às empresas dos mais diversos portes – grande, média, pequena e micro – o Brasil se prepara para não só responder aos impactos imediatos da crise, mas também para adicionar a uma trajetória de crescimento as idéias de investimento, de tecnologia e de emprego. É tão importante driblar o furacão do colapso desta fase do capitalismo como, no mesmo tranco, unir os rearranjos do curto prazo à futura plenitude do padrão de acumulação.

CONCLUSÃO

O governo de Dilma tem trabalhado para dar uma perspectiva da economia brasileira no processo de transformação de um modelo de acumulação financeira para um modelo de acumulação produtiva. E essa mudança de forma se dá dentro de um padrão de acumulação que transforma a produção em massa, comandada pelo automóvel e pelo petróleo, numa outra, liderada pela informação e telecomunicação. Para o Brasil é importante disputar uma integração nesse modelo de capital e nesse paradigma tecnológico. Só que as suas possibilidades são condicionadas a sustentar a infra-estrutura desse modelo e desse padrão, através do petróleo, das matérias primas minerais e dos produtos agrícolas. A par dessa posição importante, o Brasil tenta através do investimento, da tecnologia, robustecer a sua participação, se não nos setores líderes, pelo menos em patamares importantes das indústrias mais antigas, porém impulsionadas pela inovação. O que se pode dizer é que nessa nova organização, a indústria de bens de capital do Brasil pode ter uma figura dinâmica bem importante. No entanto, tudo isso só está na eminência de acontecer – só, e somente só – por causa da superação da fragmentação e da destruição do Estado neoliberal. O que o atual governo e, principalmente, Dilma têm conseguido é um processo de reconstrução da unidade do Estado brasileiro. E os arautos podem proclamar: sem unidade, que ainda está em processo de reconstituição, o Brasil não terá a possibilidade de tornar-se um país sério e ativo. O casamento profícuo entre o Estado, o capital, o investimento, a tecnologia, o emprego, a distribuição de renda, a alocação de recursos para a área social, trazem as causas materiais para chegaremos à civilização. E, para chegar lá, precisamos dos condimentos da educação, da pesquisa científica, da saúde e da cultura. Atenção: o Brasil não pode se enganar: não há civilização sem cultura. Só a cultura faz a civilização e o progresso material durar.

quinta-feira, agosto 11, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
11 de agosto de 2011
Coluna das quintas

TODAS CRISES SÃO UMA SÓ
Por Enéas de Souza




São tantos assuntos a discutir. A crise americana e a crise européia; a situação do Brasil e a sua resposta à crise global; a questão da corrupção, essa flor negra e malcheirosa plantada no jardim brasileiro; e as inúmeras manifestações de violência que assolam várias partes do mundo, desde Santiago do Chile, Noruega, TelAviv até a Síria, até a Espanha e até as mais midiáticas de todas: as explosões das cidades inglesas. Pensava eu, neste momento, escrever sobre o nosso país, depois de ter me centrado na crise americana e na crise européia. Mas vou continuar tratando dessas, dados os acontecimentos dos últimos dias, pois a crise do eixo USA-Inglaterra-Europa está no centro do tráfico do capital financeiro. E aglutina eventos econômicos, políticos e sociais que estão eclodindo como efeito de uma crise mais profunda, mais decisiva, mais devastadora: a crise mundial do capitalismo. Essa sim é a verdadeira crise, aquela que interessa e da qual o Brasil não está isento e da qual faz parte. Prefiro, por essa razão, analisar o quadro mais geral, pois certamente ele tem repercussões e determinações muito fortes sobre todas as regiões. E não poderia ser diferente, afeta também o país de Macunaíma e de Brás Cubas. Ou como diria Glauber Rocha, o país de Paulo Martins. O que é preciso ver é que a crise capitalista tem características gerais que perpassam todas as partes, só que ela tem um rosto que se mostra singular nas figuras históricas de cada lugar e de cada país.


NÃO EXISTE CRISE ISOLADA, TODO MUNDO ESTÁ NO INCÊNDIO


1) As crises não podem ser tomadas isoladamente. A crise dos Estados Unidos, a crise da Inglaterra, por exemplo. O que está acontecendo é uma crise da dinâmica do capital, levando suas instituições ao limite. Tínhamos, até 2007/08, um único eixo econômico, cujo pólo dominante era os Estados Unidos e que enlaçava todo o mundo. Seu ponto culminante, sua pedra preciosa, seu toque de gênio foi capturar a China para a realimentação do seu capital. E duas foram as conexões: o deslocamento das indústrias americanas para a produção de suas mercadorias, a preços mais baixos, na China e a atração dos saldos do comércio externo dessa para serem aplicados como reservas chinesas nos títulos do Tesouro Americano. Faziam essas operações parte da dinâmica expansiva do capital com a hegemonia financeira dos Estados Unidos, que se articulava e se expandia por todo o mundo. Esse processo tem o nome de globalização financeira, mas que não é apenas financeira, pois esse movimento reorganizava também o espaço da produção das multinacionais. As finanças iam à frente, puxando o barco produtivo. Ou seja, o capitalismo sempre teve uma pretensão de universalidade, sempre buscou ir além das fronteiras nacionais. Um economista chegou a dizer que o capital é sem pátria. Tivemos nesses últimos tempos, então, um capitalismo que buscava se expandir por um espaço extra-nacional e que passava por dentro de múltiplos países. Ele tinha, além de uma faixa de acumulação mundial, uma zona de acumulação restrita, pois penetrava no interior de uma nação. Era como uma centopéia, um corpo amplo unindo vários pés. Logo, esse capitalismo, com fortes movimentos multinacionais, com um espaço de acumulação mais amplo que o território das nações, estava inscrito tendencialmente a absorver ou a se confrontar com os Estados nacionais. Árvore frutífera que, gerada num quintal, dá galhos e frutos no terreno ao lado.


2) A crise de 2007/08 colocou em cheque brutalmente a liderança financeira americana. E pode-se ver a passagem – e isso vem se consolidando desde aí – de um eixo único mundial para a constituição de dois eixos, um que é o eixo Estados Unidos-Inglaterra-Europa, que está em turbulência, e um segundo eixo, cujo dinamismo parte da China, agrega Ásia, África e engata também na América Latina, sobretudo com o Brasil. Só que o Brasil, como o resto desta América, sempre esteve e ainda está no eixo americano, digamos assim, por simplificação. Mas, dizendo melhor, estamos na conexão, estamos entre os dois eixos, fato que tem conotações econômicas e políticas Significa que estamos hoje mais vinculados produtivamente à China, mais financeiramente aos Estados Unidos e mais politicamente ligados ao Ocidente. Contudo, saímos pelas reuniões dos Gs, pelos fóruns e pelos congressos um tanto companheiros dos BRICS.


3) Fiquemos então com a análise da turbulência. A crise de 2007/08 deu uma explosão no eixo único, partindo-o em dois, e restringindo o fulgor dela ao eixo USA-UK-EU, mas com efeitos bem menos potentes sobre o outro pólo liderado pela China. O tumulto não deixou de afligir, inclusive, os países que estão na conexão dos dois eixos. Tornou-se evidente que a dinâmica financeira mundial havia se rompido, pois o vulcão americano teve que lidar com a falência e o rearranjo dela. Enquanto que, do lado da China, a dinâmica do capital foi hegemonizado pelo Estado, que passou a comandar as peças financeiras, produtivas, comerciais e de serviço do capital, encadeando e rearranjando as articulações com a Ásia: Hong-Kong, Coréia, Singapura, e até ao Japão. Já a Índia e o Brasil, por exemplo, ficaram na ligação vacilante entre os dois eixos. Essa dinâmica econômica global, em processo de fracionamento, ia também construindo no plano político a passagem da unipolaridade americana para uma possível bipolaridade Estados Unidos-China. E com essa descrição já podemos constatar alguns efeitos: I) a fragmentação da economia universal liderada pelos Estados Unidos; II) a constituição de dois eixos dinâmicos baseados nos Estados Unidos e na China; III) a reformulação do novo eixo americano com uma recomposição de cada um dos seus integrantes, afetados com as crises nomeadas americana, inglesa e européia; IV) e os desafios múltiplos infligidos às economias que estão na conexão: Brasil, Índia, Rússia, por exemplo. Fica, então, a sinopse da peça: a crise pegou todo mundo e ela é inexoravelmente mundial.


ESTAMOS NA ÚLTIMA ESTRADA DA PRAIA DO NOVO PADRÃO


Agora, amigo leitor, mais outro passo. Existe no capitalismo um processo de longa duração que se desdobra em vários ciclos econômicos, caracterizados pela constituição de padrões de acumulação produtiva animados por indústrias que puxam a economia como um todo. E que, de tempos em tempos, entram em crise e dão nascimento a outro padrão. É o caso agora: estamos saindo de um baseado no petróleo e no automóvel e que possibilitou a criação de várias indústrias de produção em massa. Tendo chegado ao seu final, se dirige, meio tumultuadamente, para um outro patamar, que vai se organizar ao redor das indústrias de comunicação e informação. Mas tenhamos em mente que essas indústrias que vão passar a liderar já estavam no padrão que termina, pois a presença da eletrônica e da informática veio dando alento final a ele, através da modificação da tecnologia no setor de bens de capital com a mecatrônica; através da transformação na comunicação de dados no setor das instituições financeiras; e através da transformação da mídia, inclusive com a presença irreversível da internet, etc. Estamos, portanto, rumando na direção de um outro oceano. E para lá chegar, a transição não é automática; o capitalismo não se faz sem obstáculos, sem resistências, sem crises, sem rupturas, sem violência, já que a trama do real é caracterizada por agrestes e selvagens conflitos. A hora é essa: o passado está chegando e o futuro ainda não é presente.


A AUTO-IMPLOSÃO DO EIXO AMERICANO


1) O nosso objetivo, portanto, é examinar os eventos dramáticos que ocorreram nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Europa. Vamos situar o episódio do rebaixamento da nota dos Estados Unidos, os inúmeros distúrbios na Inglaterra, o surpreendente rumor da ameaça de rebaixamento da nota da França e os ataques especulativos contra bancos franceses de importância. É claro, para quem lê esta coluna, que essa não é uma nova crise, como muitos economistas e a grande parte da mídia estão afirmando. Na verdade, é o prosseguimento da crise do neoliberalismo de 2007/08 que está se revelando uma crise da economia capitalista. E os desdobramentos de agora são os conseqüências daqueles momentos. Por isso que a crise financeira nos Estados Unidos se espalhou por todo o eixo, incendiando a Inglaterra e a Europa, e deixando problemas que eclodiram nesses tempos soturnos, mas cômicos, de forma diferente e em pontos distintos, evidenciando questões políticas, econômicas ou sociais. A lógica dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Europa fez a sua parte, naturalmente que dentro de uma espécie de sistema, um sistema de vasos comunicantes, pois o que ocorre num lugar pode contagiar outro, seja num plano ou noutro.


2) A crise financeira levou a três situações distintas no eixo americano. Nos Estados Unidos, a situação recente era a incapacidade do Estado de regulamentar as finanças. A hegemonia desse setor era de tal ordem que houve dois salvamentos públicos, inúmeros programas do FED para dar liquidez e solvabilidade aos bancos, o que terminou por fazer com que esses, novamente robustos (embora com a queda de seus mercados e com a liquidação de alguns produtos e a reduzida inovação de outros), se impusessem novamente como líderes do processo. E, com garra renovada, atacaram o Estado com a sua velha proposição de cortes de gastos. Pois essa ação estava dentro do desejo do setor financeiro, que, podemos assinalar, é de (I) acabar com o controle público de suas atividades, ou seja, eliminar os pequenos controles que passaram a existir depois da anêmica reforma bancária do Congresso em 2009, sendo o alvo único e obsessivo o retorno à plena auto-regulação; (II) manter a dinâmica financeira livre, usando o crédito para especulação e sendo o crescimento econômico a conseqüência de um efeito derivado, a retomada do consumo tão rápida quando possível; (III) subordinar o Estado nacional através do domínio de FED, do Tesouro, de agências reguladoras de áreas da economia e do próprio Legislativo, esse por intermédio de lobbies; (IV) cortar gastos para que os Estados possam pagar belos juros pela compra de títulos públicos e para que possam usar a dívida pública com a finalidade de cumprir uma função financeira do Estado: a de emprestador em última instância – uma função salientada por Hyman Minsky.


3) Pois como conseqüência de endividamentos anteriores e do endividamento durante a crise, a dívida americana tinha chegado ao limite de um teto fixado pelo Congresso em 14,3 trilhões de dólares. Claro que a solução para o problema era aumentar o referido limite e, ao mesmo tempo, exigir corte de gastos e/ou aumentar impostos. Mas, a sociedade pós-crise não é nada fácil, diversos problemas continuam se impondo: empobrecimento da população, perda de emprego, baixa do consumo, perda de residências, assistência pública diversificada, etc. E entre os grupos sociais existem muitos pensamentos sobre as causas e diversas propostas de solução para a presente crise. Pensamentos e soluções geralmente encharcados de ideologia. E no bojo do processo americano surgiu uma proposta contundente para a crise da dívida. Uma proposta mais à direita, fogosamente reacionária, e, portanto, mais à direita do que a da própria direita. Não só cortar gastos, mas forçar o governo de Obama a só gastar o que arrecadasse. E com um propósito maligno: cortar na pele do social. Essa lava de vulcão veio da extrema direita, de um grupo do Tea Party. Uma beleza de concepção fiscal!


4) Lançaram o bode na sala. O Tea Party forçou, batalhou, conspirou e constrangeu a sociedade a ir mais para a direita, quase arrastando para o abismo o Partido Republicano e uma parte dos democratas. O resultado final foi o aumento controlado e escalonado da dívida e o estabelecimento de cortes nos gastos. E a perfídia do controle: a aprovação de uma comissão parlamentar para definir quais cortes efetuar. Ou seja, foram derrotados Obama, o Partido Democrata, o Partido Republicano, as finanças e a sociedade pobre. Mexeram na colméia, todos queriam o mel e emergiu um bando furioso de abelhas, picando para todo o lado. E foi por esse bloqueio que uma fração das finanças, sentindo-se abandonada e criticando os partidos políticos, partiu para tocar fogo na aldeia. A Standard and Poor´s, uma agência de rating, acabou por rebaixar a classificação e a nota dos Estados Unidos (triple AAA), após o fechamento da Bolsa de sexta-feira, dia 5 de agosto. E essa atitude instalou um pânico especulativo que sacudiu o mundo, dando origem a um medo que se espalhou pela sociedade planetária. Um revival piorado de 2007/08


5) Que fatos importantes ocorreram aí? A par da paralisia e limitação objetiva do governo Obama, evidenciou-se um limite da democracia. Como é que um Estado poderoso é capaz de ser derrubado por uma agência de rating, onde meia dúzia de técnicos funcionários tem a petulância de fazer uma avaliação e uma análise fuleira, com erros de cálculos de 2 trilhões de dólares? Como é que essa mesma agência é também capaz de fazer julgamentos sobre o comportamento de partidos, pondo os Estados Unidos e o tão santificado mercado e o mundo à beira do abismo?


6) Mas não foi somente nesse ponto que o limite foi alcançado. Existe um outro e aconteceu na esfera política. Como é que um grupelho de parlamentares – deputados – pôde jogar o governo numa situação de aprisionamento, sob certa forma com a conivência moderada de outros parlamentares? E, dessa maneira, pôde-se constatar que, politicamente, os americanos começaram a traçar um caminho muito forte com o Tea Party para a direita e para o fascismo. E não se viu nenhuma resistência maior a essa energia direitista. Imaginem então se ocorrer uma aglutinação de finanças, Pentágono, mídia conservadora e Tea Party. Já do ponto de vista econômico, abriu-se, com essas medidas, uma crise fiscal que embaralha mais ainda as possibilidades da retomada do crescimento. Não fica no horizonte nenhuma possibilidade de investimento e da criação de empregos. Por outro lado, a decisão do FED de não aumentar a taxa de juros, por um período de dois anos, até 2013, teve o poder de parar, na terça feira, dia 9, o movimento depressivo da Bolsa de Valores. Pois tal medida instala alguma certeza, favorecendo, meio que esfarrapadamente, a liquidez, o que tende a trazer o retorno da manivela e o círculo vicioso da especulação.


Que notícias péssimas para a democracia e para a economia americana.


O INTERVALO INGLÊS: A PAUSA QUE NÃO REFRESCA


Não podemos esquecer, então, os distúrbios da Inglaterra. Esse país foi a primeiro que salvou aos bancos e fez uma meia sola na direção financeira deles, mas tudo retornou à felicidade dos bônus. De outra parte, o Governo inglês instalou um processo contracionista, reduzindo salários e custos sociais, o que, na prática, levou muitos ao desemprego. E o resultado foi escandalosamente claro: baderna e saques na rua, dos jovens sem trabalho, dos injustiçados, etc. Foi assim como em outras partes da Europa. E não se pode olvidar o ato direitista do fuzilamento de pessoas na Noruega. Enfim, ligando o Tea Party, com as desordens das cidades inglesas, com os movimentos de Madrid, as revoltas na Grécia, etc., etc., movimentos das mais diversas orientações políticas e sociais, uma coisa é clara: a direita se organiza, tem apelo social pela exclusão que propõe, requer sempre forças repressivas para buscar uma ordem não democrática. Age contra o medo com o medo da força. O que vai deter esses atores? E mais profundamente: qual é o movimento que a esquerda e as forças da liberdade propõem?


A QUARTA FEIRA DA BOMBA EUROPÉIA


1) A crise nos Estados Unidos é uma crise política e social grave e uma crise fiscal controlável no interior de uma crise econômica sem perspectivas de retomada do crescimento. Estamos na véspera e na linha de tiro de um fuzil recessivo. É verdade que o sistema bancário está ainda parcialmente controlando o seu colapso, mas a moldura dessa pintura é o avanço da crise do capitalismo. Já a face européia é uma crise política extremamente grave, uma crise econômica ampla, uma crise eminente do sistema bancário e uma crise fiscal poderosa. E tudo tomou um caminho sinistro por causa do rumor de que a França, dado sua situação fiscal e, inclusive, a fragilidade dos seus bancos (Société Générale, BNP Paribas), iria sofrer um rebaixamento de nota como o dos Estados Unidos. Depois, ficou constatado que a França tem uma dívida de 85,4 % do seu PIB, (contra 102,4% dos Estados Unidos) e um déficit que está em 5,7% embora tivesse chegado a 7,1% (versus 11% dos americanos). E a comicidade chegou ao climax quando a inefável Standard and Poor´s acabou por declarar que a situação francesa era melhor do que a dos Estados Unidos, sobretudo porque o pessoal do vinho e do queijo controlava melhor a execução orçamentária. A conclusão depois dessas trapalhadas e da especulação que se deu em cima, principalmente, dos bancos franceses é que o capital financeiro está em desespero e relativamente desarticulado e não está enxergando uma trajetória a seguir. Vamos então à depredação do patrimônio: os mercados financeiros estão caindo; as moedas (dólar e euro) estão balançando, balançando; e os Estados europeus estão quase preparados para uma queda em dominó: Irlanda, Grécia, Portugal... Espanha...Itália, e hoje...França (escrevo quarta-feira, dia 10).


Ah! O ouro chegou a 1.800 dólares.


2) A saída da Europa é política e tem de haver um movimento em direção a um Tesouro europeu, agora, já! E preparar uma agenda onde se estabeleça um projeto de constituição de um Estado. Faço, então, as indagações indispensáveis: querem isso os países da região, os políticos e os povos europeus? Querem isso Sarkozy e Ângela Merkel? Veja-se a Alemanha, sua população está rejeitando qualquer movimento de aportar recursos. É certo que a Alemanha vai ganhar, mas como diz meu colega André: “vai perder, porque vai pagar a conta”. Na Europa, temos o exemplo frontal de que, nos últimos tempos, os capitais foram na frente, varando tudo o que encontravam na estrada, até que a crise de 2007/08 deu uma porretada neles. E depois, logo em seguida, ampliaram e se enredaram mais ainda nos empréstimos aos Estados da mesma zona, empréstimos impagáveis, como o que acontecerá com a Grécia. Ou seja, na Europa, parece que, se houver uma crise bancária, ela se tornará igualmente uma crise de Estado. E se, ao contrário, a crise vier do Estado, ela se transformará imediatamente em crise bancária. Portugal mostrou isso exemplarmente. Por isso que todas as ajudas aos países têm que resolver tanto o endividamento estatal como o fortalecimento dos bancos. E olhem que nem estamos falando no crescimento da economia e no aumento do emprego.


FÁCIL DE NOMEAR


Retornamos ao ponto fundamental. Olhe-se por onde se olhar, esmiúce o que tiver que ser esmiuçado, estamos numa crise do capitalismo, uma crise que não é uma crise da longa duração, mas sim uma crise do longo prazo, na verdade um crise cíclica, uma crise de um padrão de acumulação em transição para outro. Fácil de nomear, difícil de chegar ao outro lado do rio. É preciso aprender a nadar.


 

quinta-feira, agosto 04, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
04 de agosto de 2011
Coluna das quintas

A DÍVIDA BANDIDA
Por Enéas de Souza

A crise americana tem que ser vista na articulação do curto com o longo prazo, tanto no campo geoeconômico quanto no plano geopolítico. O que faz com que a questão da dívida seja algo que tenha aspectos superficiais e imediatos, claro que importantes, mas que atravesse a lâmina da atualidade em direção à trajetória futura. De um modo geral, a História vai se fazendo sem que os atores tenham muita consciência do que estava e está acontecendo. A tensão midiática dos últimos dias foi talvez por temas menores, mais fáceis de serem consumidos pelo público, principalmente porque a mídia tem uma vocação melodramática - e subterraneamente cômica. No caso americano atual a épica foi descartada. Ninguém é um herói de algo que não existe: a epopéia da dívida. Sem maiores análises, a dívida traz personagens do mal, personagens do bem, vilões, farsantes e crápulas, samaritanos e vigaristas, bandidos e fanáticos. São tantas e tais personificações de realidades concretas que a crise pode terminar numa feira de seres exóticos. Mas, se a dívida em si, para quem estava em contato com a política e a economia, era um tema relativamente ridículo. para os Estados Unidos, no entanto, se vistos na correta perspectiva, a partir do longo prazo, ela poderá revelar algo. E é este algo que tentaremos ver.

A DANÇA DA DESORDEM DO CURTO PRAZO



1) Primeiro vejamos a questão do curto prazo. O que estava em jogo aqui era mais uma problemática política do que econômica. Para a economia americana, embora a dívida fosse alta, ela era manejável e os Estados Unidos não iriam entrar em default. O default veio pela questão do teto, que é uma questão política e econômica do Congresso, que estabelece, periodicamente, um limite para o país se endividar. Ou seja, economicamente a dívida não seria problema. E nem seria se, por acaso, ela aumentasse e crescesse e ampliasse, e se alargasse, os Estados Unidos não iriam sofrer qualquer problema na questão do crédito, na questão dos juros, na questão de prazos; as coisas correriam normalmente, se os republicanos não pusessem a sua garra política.



2) E olhado o panorama, visto de qualquer ponto, a gente podia constatar: o governo tinha boa postura, estava examinando cortes de gastos, mas também e principalmente aumento de impostos, num país de pouca carga fiscal, ao redor de 26%. Normalmente estava também cogitando, como todos os governos do mundo, da feitura de novos empréstimos. Claro, para um tomador com triple AAA, portanto com crédito lá em cima, pagador pontual, com uma moeda passando alguma dificuldade, mas uma moeda de alcance universal, a dívida não seria nenhum problema. Então, a crise econômica não dançou pelo lado econômico, encrespou-se pela face e atmosfera política. A intenção desastrosa de cortar gastos e manter o teto da dívida em rédea curta, oriunda do partido republicano – e da Tea Party, sua banda ultra-direitosa – vai trazer, querendo ou não querendo, repercussões econômicas. Porque com o resultado da votação e da birra política contra Obama, a posição majoritária negociada no Congresso carrega na ponta de seus votos uma contração econômica potencial. Os americanos e o mundo vão ver; logo, logo.



3) A questão foi uma questão política com uma forte tonalidade ideológica. E a questão política cozinhava um objetivo claro: fustigar e desgastar o presidente Obama. A derrota deste nas eleições parlamentares de novembro foi terrível, porque os republicanos alcançaram maioria na câmara dos deputados, e passaram, com certa raiva e fúria, a ameaçá-lo e mira-lo com um fuzil preciso: disparar contra sua re-eleição. Armava-se, então, nesta jogada da dívida, um ataque cerrado, buscando a paralisia do governo. Uma paralisia para liquidar com a imagem do presidente. E o lance do teto era uma meta para atingir o ponto de inversão da vitória de Obama nas eleições de 2008. E conseguir, com o desgaste do democrata, o retorno dos republicanos ao poder na eleição presidencial do ano que vem.



4) E como se deu o passa-pé político? Ora, após a explosão financeira de 2007/08, começando no termino do governo Bush e continuando no início da administração Obama, o Estado teve que se endividar, aumentando a mal falada dívida pública. Esta que agora estava na marca do penalty. A verdade é que Busch assoprou sem temores, na onda patriótica do 11 de setembro, a inflação da dívida, por causa da guerra do Iraque e do Afeganistão e do primeiro pacote da salvação dos bancos. E como um esperto da direita, para bloquear a crise econômica, fez uma manobra contundente, deu uma forte isenção de impostos, sobretudo para os ricos. Isenção que chega até o governo atual, afetando o lado da receita desde então. Por isso, Obama queria aumentar os tributos para recuperar a arrecadação perdida.



5) E por causa da incrível e da progressiva política de desregulamentação financeira - começada com Clinton e ampliada por Bush e encabeçada nos últimos tempos deste, pela política do Tesouro de Paulson – emergiu, com espalhafato, o grande escorregão das finanças. Dele, pelo risco sistêmico, eminente e iminente, saiu sem dor para elas, a participação do Estado na salvação das instituições financeiras. Tendo como nome mais expressivo o Lehman Brothers, a conta vazou para o governo Obama, que teve que praticar um segundo pacote, o segundo “bailouts” dos bancos. Eles receberam 1,75 tri de Bush; 1,75 tri de Obama. E note-se: com aprovação do Congresso. O mesmo que atira agora a pedra na vidraça da dívida.



6) Se a gente examinar quem fez a dívida do governo americano, os registros indicam: dos 14,3 trilhões a pagar, 6,1 são do governo Bush; 2,4 do Obama, e 5,2 das administrações anteriores a Bush (Clinton, Bush pai, Reagan e de administrações anteriores ao ator presidente). As perguntas geram as inquietações: não foi um pouco de safadeza política a jogada dos republicanos? Política é isso: era uma vez o Oeste?



7) Mostro esta moldura financeira para desenhar o rabo de foguete e o engarrafamento de fim de tarde que pegou Obama. E o resultado foi demolidor. Só que foi demolidor para todo mundo. Os republicanos viram a sua maioria se dividir (dêem uma olhada no quadro de votações), por causa de um grupo partidário rebelde e fanático como o Tea Party. Estes não trouxeram contribuição inovadora nenhuma, suas propostas eram fortemente neoliberais e reacionárias. As primeiras envolviam corte de gastos e bloqueio do aumento de impostos. E as reacionárias propunham: só gastar o que for arrecadado. O que é um absurdo ideológico na política econômica porque desconhece não só as funções do Estado como iguala do ponto de vista macro este a um indivíduo. Simplesmente ignorando que o primeiro não quebra e o segundo tem um limite de endividamento muito curto.



8) Ora, a questão da dívida foi um mel, foi um quindim, foi um molho de baunilha para os republicanos. Ganhavam apoio do público seja por causa da busca de cortes (“o governo gasta demais”), seja porque todo mundo paga imposto em excesso (ocultando que os ricos foram isentos pelo Bush) seja por causa da idéia maluca que as pessoas têm que a administração do governo é como a da sua casa. Olhemos, agora, um pouco para o montante adequado de uma dívida pública. A Comunidade Européia estabeleceu, no tratado de Maastrich, um limite razoável para o endividamento dos seus membros, algo em torno de 60% do PIB. Deve-se levar em conta que os Estados Unidos estavam próximos dos 100%. o que é um tanto alto. Só que para a maior potência do mundo é pouco. Não há quem não queira emprestar para eles. Vejam a China tem 1 trilhão e 300 bi de dólares aplicados em títulos do Tesouro americano. O Brasil tem 220. Todavia, a idéia de calote nunca esteve no horizonte do governo Obama. A má-fé dos republicanos jogou a víbora no pescoço dele.



9) Como disse: todos perderam. Os democratas tiveram uma derrota incrível, porque se partiram ao meio na Câmara dos Deputados, metade a favor, metade contra. A esquerda do partido se rebelou e pôs a nu a frágil liderança de Obama. Todo mundo está dizendo que ele perdeu. Mas, não sei não. Sim, sim, imediatamente, sim. Mas, Obama, que tinha sido eleito por uma massa de centro-esquerda, foi lentamente, dado uma Câmara profundamente adversa, e manobrada por lobbies financeiros e por republicanos de direita e de ultra-direita, escorregando exatamente para este lado, para a centro direita. E daí fica evidenciado o seu jogo. Ele funciona como Ulysses Guimarães funcionava no Brasil, sempre procurando o meio, sempre procurando o centro. Obama saiu da centro esquerda e deslizou para a centro direita. E tudo porque, a meu ver, há um cálculo político eleitoral. Ganhar o centro, embora perdendo a esquerda e conseguindo bloquear a ultra-direta do Tea Party, para nesta aposta, arriscada aposta, ganhar em 2012, mantendo inclusive um leve discurso à esquerda. Será isso?



O DILEMA DA TRAVESSIA AMERICANA



1) Mas, o que está em jogo, mais profundamente, nesta luta? Antes de qualquer coisa, aquilo que José Luís Fiori disse recentemente: o futuro dos Estados Unidos. E, a meu ver, estamos percebendo um bloco de poder se desmanchar na nossa frente. Um bloco neoliberal, que no limite, ainda está com poder e tenta manter os anéis, depois da saída de Bush, humilhado com o fracasso da guerra e da economia. Este grupo, que vai se derretendo, constitui-se numa expressão política – não direta e mecanicamente, é claro - de um bloco econômico onde se aglutinaram indústria bélica, finanças, mídia conservadora, indústria de automóveis, construção civil ligada à guerra. Bloco que sustentava as instituições neoliberais (deregulamentação das finanças, saída do Estado da economia, agências estatais dirigidas pelos capitais, etc.) e a política da unilateralidade americana (baseada na luta contra o eixo do mal e da intervenção militar do império onde necessário fosse). Duas sementes que não dão mais as mesmas árvores.



2) Este bloco é que nem cachorro baleado; gane, gane, e tenta manter-se de pé. E o desespero contra Obama é porque este representou uma leve transição. Na verdade, um anúncio de uma transição. Pois para que ocorra uma transição efetiva é indispensável que haja uma nova configuração econômica e uma outra realidade política. E por incrível que pareça pode-se até vislumbrar a trajetória dessa passagem. Contudo, o leitor, sabe bem, quem está no poder; mesmo caindo resiste até as últimas balas, emprega os seus derradeiros punhais. O neoliberalismo está batendo pé: não quer que a sociedade se transforme, parece a Nora Ney cantando “Meu mundo caiu”. Por essa razão, segurando as entranhas em sangue, como um personagem patético, os Estados Unidos estão diante de um dilema: ou a próxima eleição será o momento da restauração neoliberal ou a passagem para um outro mundo começará a se fazer.



O FUTURO COMEÇA A ENSAIAR A SUA CENA



1) As tarefas dos Estados Unidos são árduas e inadiáveis. É preciso que tenham uma posição clara na geopolítica. Há todo um movimento de reformulação que está sendo feito e que envolve um reposicionamento com a Europa (e nela, com a Alemanha), uma reaproximação com a Rússia em busca de retomada de territórios e prestígio; uma tentativa de manutenção e reformulação do Oriente Médio; uma ação atrasada e meio precária para não perder a África, e uma busca de revisão com a América Latina, principalmente com o Brasil. O jogo maior e certeiro é para bloquear e cercar a China, que visivelmente está em tremendo avanço, e com uma substância altamente explosiva para o mundo neoliberal. Talvez a maior carta chinesa seja o Estado, Melhor: a forma como ele está organizado. Porque o Estado chinês tem o domínio da política, da produção, das finanças, do comércio externo, o que proporciona a possibilidade de focar a construção de um novo modelo de acumulação de capital centrado na produção e com apoio do sistema financeiro. A China tem, em desdobramento desta arquitetura econômica, um projeto de fazer da geopolítica mundial a construção de um duo entre ela e os Estados Unidos. E nesse momento, para agravar a crise deste último país, os asiáticos estão impondo o seu jogo aos adversários. Mas que ninguém se engane: toda esta crise americana é uma crise de transição do Ocidente para um novo processo de acumulação que passará das finanças para a produção. E embora a China progrida velozmente no plano produtivo, a liderança das altas tecnologias ainda permanecem com os americanos. Por isso, avaliando tudo, está tão difícil a transito, porque na terra de Tio Sam as finanças e o neoliberalismo resistem o que podem a qualquer alteração, política e economicamente.



2) Portanto, a crise do teto da dívida americana é um episódio de superfície, que indica a vinda de transformações profundas na sociedade planetária. Elas ocorrerão em todas as dimensões. Na política, na economia produtiva, na economia financeira, na disputa militar, na produção cultural, etc. O que indica que o neoliberalismo como expressão da hegemonia financeira-militar dos Estados Unidos, com a dupla ideológica “livre comércio e democracia” atravessam um estado de pneumonia aguda. Resiste fortemente às mudanças, pois são privilégios que saem em troca de privilégios que entram. Só que a força e a energia que estão sendo contidas pressionam, enquanto que as forças, outrora dominantes, se seguram como podem e procuram com a algazarra ideológica deter - para usar na política uma expressão que Schumpeter usou na economia – a destruição criadora que virá. E para o leitor e para o analista, a pergunta final: onde está a ênfase dos próximos tempos: na destruição ou na criação?