quinta-feira, janeiro 26, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

VAI DAR OBAMA DUAS VEZES?
Enéas de Souza
28 02 2012




Anteontem à meia-noite, eram nove horas – nove horas nos Estados Unidos – e apareceu na tela, sorridente, “keep smiling”, Barak Obama, para discursar diante do Congresso Americano, na fala ao país chamada de “state of nation”, o estado da nação. Sim, Obama sorria plenamente, um modo cálido de entrar em contato com políticos, militares e convidados, beijando mulheres e cumprimentando homens. Estava plenamente no seu papel, no seu papel de centro do encontro. Um papel a ser representado diante da televisão. E aqui está a primeira chave de sua entrada esfuziante. Sim, Obama fez uma presidência medíocre, devorado pela sua ingenuidade e pela força impiedosa das finanças. Anteontem, no entanto, parecia ao contrário, parecia que tinha cumprido extremamente bem o seu mandato e que havia reconhecimento geral disso. Um político carrega, como um intérprete de uma peça, um personagem. Age, sobretudo, com a pele de um ator antigo, veste uma máscara que é a figura e a expressão do seu papel como autoridade. Na sociedade do espetáculo, a política culmina na construção de uma imagem. E foi em cima dela que Obama desenvolveu a sua apresentação. Talvez fosse melhor dizer, o seu espetáculo.

Anteontem, Obama sorria, demonstrando confiança, força, dando a impressão que a sua missão não tinha terminado, mas que tinha feito, no período atual da presidência, um desempenho se não excepcional, ao menos extremamente bom. Sua imagem queria dizer algo a mais; olhem para mim e vejam o que eu vou fazer no segundo mandato. Vocês podem acreditar no que digo. E, tudo porque Obama sabe que o seu melhor, ou pelo menos, um dos aspectos mais significantes de sua atuação, é a retórica, a capacidade que ele tem como orador de encantar as pessoas quer pela ênfase certa, quer pelo tom preciso, quer pelo adequado gesto.

E numa época da comunicação via TV, Obama tem certeza que o que importa neste jogo é a ficção dos planos médios e do grande plano. O principal é o rosto, os olhos, a voz, o movimento do braço, das mãos, no jogo mágico do visível e do sonoro. A composição de um personagem. E nisso convenhamos ele é mestre. Desenvolveu todo o seu arsenal de arte dramática tentando não se embrenhar em Shakespeare, mas quem sabe compondo um misto de personagens de Paul Auster, de Phillip Roth e de Don Melillo. Talvez até se achasse traços de uma ou outra figura dramática de Gore Vidal. Naturalmente, para fazer um discurso sublinhando os seus pequenos grandes êxitos. Um grande orador trabalha assim. E põe sutilmente uma emoção fascinante no discurso que está fazendo.

Disse ele, Obama, que estava vendo e enxergando o “american people” capturado pelos bancos e pela injustiça fiscal. Introduziu e projetou a recuperação da indústria americana e obviamente dos empregos. Insistiu, querendo dar um brilho de humanidade, no projeto de regularizar a questão da imigração. E, depois, desenhando o que já tinha desenhado logo início da sua presidência, tratou de espichar a esperança na construção de um futuro pleno de grandeza, de energia, de renovação tecnológica e de saída definitiva da crise. O frêmito começou com a ideia de retorno dos soldados do Afeganistão e do Iraque à América. Obama disse: eu trouxe a paz. E dilatou a sua palavra na hora de falar da volta dos empregos pelo retorno das indústrias aos Estados Unidos. Assim, no teatro da política ou na política da televisão, Obama apostou na construção de um personagem, de um homem, de um presidente, firme no desempenho de todo o seu mandato até agora. Postura que não transitou em julgado, transitou em imagem.

Conseguirá Obama, com essa oratória midiática, convencer os americanos a votarem nele - e não nos republicanos?

AS BASES DO ENRÊDO DE OBAMA II

A intriga da novela Obama II faz com que o personagem-título encare, com olhos estudiosos, a crise geopolítica e geoeconômica dos últimos tempos. São duas problemáticas distintas - pássaros de plumagens diferenciadas - mas, ao mesmo tempo unidas. Vejam só: para Obama, de um lado, é preciso sair da geopolítica do terrorismo, implantada por Bush e seu escudeiro Cheney, de caça da energia petrolífera sob o pretexto de combater o terror no Oriente Médio. E de outro, há que transformar o campo geoeconômico, superando o modelo instalado pelas finanças, que montou mercados financeiros especulativos em paralelo com uma produção de bens de capital, bens de consumo duráveis e não duráveis, e que se derramou para o exterior e atingiu a Ásia. A jogada financeira tinha como objetivo agregar a China na função de exportadora para o mercado americano, com a finalidade de baixar o custo de reprodução de mão de obra dos Estados Unidos. E claro fazer dos saldos comerciais resultantes - as reservas, enfim - recursos para amparar, via a aplicações em títulos do Tesouro, a dívida fiscal de Tio Sam. Contudo no desenvolvimento e no fim desse processo, a China, com estratégia lúcida e clara, acabou por se constituir numa grande potência produtiva. A questão que pairava sobre o discurso de terça-feira, 23 de janeiro, era: e agora, Estados Unidos? E agora, Obama?

Ora, a queda do modelo das finanças americanas, em 2007/08, desmanchou aquilo que foi o centro da geopolítica dos anos 90 e do início do século XXI, a hegemonia absoluta dos Estados Unidos. E desfez a trama desta unipolaridade indisfarçável, que levou ao insuperável Fukuyama dizer que a História tinha acabado. Só que o eixo americano que era único, tornou-se frágil e se partiu. De um lado ficou o que chamo de o eixo americano e do outro, o eixo chinês. Traduzindo: entramos numa nova fase da geopolítica e da geoconomia. Estados Unidos e China passarão a serem os polos antagônicos da nova tensão política e econômica. Vem na correnteza, como um barco em desalinho, a necessidade de reformular a economia mundial. Mudanças produtivas e financeiras que sejam capazes de recuperar e expandir inclusive o comércio planetário. Emerge no fundo do cenário a forma ainda difusa da dinâmica de um novo padrão de acumulação, que por enquanto é apenas uma ideia-norte. Ela coloca, como uma alavanca imaginária, no horizonte do longo prazo a transformação da sociedade capitalista. O que Obama encarou foi exatamente esse futuro. Um futuro para ele ainda não totalmente claro. Porém, foi certamente com um olhar pousado no porvir que discursou. E botou no coração da nação a indagação: o que é que nós americanos queremos?

COM QUEM VAI O ELEITORADO AMERICANO?

Conversando um desses dias com uma amiga que mora nos Estados Unidos, ela me disse: “Olha, Enéas, ninguém está gostando muito do Obama. Mas, acho que vai ganhar, porque ele é o menos ruim dos candidatos.” Fico, então, pensando sobre o discurso de anteontem do Obama. Sem dúvida, ao lançar pontos chamejantes para diversos campos da população, verdadeiras iscas de votos, contrastando suas posições com as dos republicanos, ele mostra que apesar do grande cerco que as finanças fizeram ao seu governo, ele continua ter clareza sobre a situação e sobre o futuro. E mais, falou enfático, cumpri pelo menos dois pontos decisivos para os Estados Unidos: a questão da paz e a questão da indústria. Neste último ponto pelo menos foi um primeiro passo, um bom recomeço, com a retomada da indústria automobilística e a recuperação de Detroit. Nas postulações que fez para a mudança das condições econômicas tratou dos impostos dos ricos, da justiça tributária, do incentivo aos pequenos empresários, da inovação tecnológica, da energia - e do grande lance feminista: a igualdade de salários para homens e mulheres pelo mesmo trabalho. Tudo isso tem o seu emblema visionário, tudo isso está ainda em estado de promessa.

Mas, recordando a imagem construída, a imagem produzida pela performance de Obama, fiquei pensando que a minha amiga talvez possa ter razão. O voto no menos pior, no menos ruim, num ambiente de descrença da política e do político, pode dar, pela produção da imagem de um presidente persistente e trabalhando para o Bem Comum, a vitória a Obama. Mesmo porque ele tem um discurso coerente e uma retórica perturbante. E diante da confusão e do lado tosco dos candidatos republicanos, o brilho de terça-feira permite o surgimento de uma pergunta que estala: vai dar Obama duas vezes?

quinta-feira, janeiro 19, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL


CADÊ A EUROPA
OU
A CANÇÃO DO TRIPLO A
Enéas de Souza
19/01/2012

1) A canção do triplo A é uma canção de ninar das finanças. Se uma Agência de Ratings canta a música, as entidades financeiras e os Estados adormecem, e viajam no mundo econômico na leveza da lucratividade do capital. Quando a melodia escasseia, as pausas e o silêncio do som acontecem. Meu Deus, o mundo vem abaixo. E a sociedade também.

2) As finanças são com as aranhas e soltam uma teia sobre os humanos e suas instituições. Primeiro ponto: desregulamentam a economia e retiram o Estado de possíveis e quaisquer controles. E elas chamam Estado mínimo a essa desregulamentação como chamam as negociações diárias dos mercados – que tendem muitas vezes à anarquia – de mercado livre, de “free market”. (Não há mercado que não sofra indefinidamente de desgaste e deformação, nem que seja isento de violência e de caos. Olhem a história de cada mercado, de cada produto. O de automóveis, por exemplo. Lembram-se das histórias do Ford? Pensem sobre o petróleo. Foi sempre um mercado puro?).

3) Pois não é que as finanças levaram o tombo avassalador de 2007/08 e até agora não tomaram jeito. Caíram, só que não foram derrotadas. E inventaram, via Estado, a sua salvação: dos Estados Unidos à Europa. Jogaram o filho que era delas – os ativos podres – para a entidade estatal: toma que o filho é teu. Conclusão: o Estado transformou e ampliou e fez – para gáudio e júbilo das finanças, e tristeza e infelicidade dos trabalhadores e da população – de uma crise financeira, uma crise fiscal também. E as finanças, que tinham armado o cassino especulativo com sucesso, quando deu a pane, correram para o Estado, clamando para que fosse protagonista do que os americanos chamam de “bailout”: a salvação das instituições financeiras. Mas, depois, Madalenas arrependidas, o que fizeram as finanças? Usaram os lobbies para impedir, nos Legislativos, qualquer busca de regulação do mercado financeiro e usaram as Agências de Ratings para chantagear os Estados e os títulos soberanos deles. Mas, paralelamente, atacaram igualmente os títulos privados de capitais mais fracos. Ou seja, duplo movimento: paralisar o Estado para impedir transformações sociais, e prosseguir, à custa do Estado e dos seus concorrentes, o processo de concentração e centralização de capital.

4) As finanças tem um projeto de mundo. E nele está uma visão de civilização, como está também uma visão de política econômica. Essa se resume nas seguintes etapas: (a) na fase de ascensão do ciclo, o que interessa é desregulamentação e Estado mínimo; (b) na fase do estouro da boiada, salvação do setor financeiro com endividamento do Estado (vejam só: com a parte saudável da própria finanças) instalando uma dupla crise: financeira e fiscal. É possível o desdobramento de uma terceira crise, a crise monetária dos países ou até, in extremis, da moeda mundial; (c) e na fase do descenso cíclico, as finanças são ditatoriais: controle da ação do Estado, controle de gastos, suspensão de investimento e de consumo, cortes de salários e de funcionários, de saúde e previdência – de aposentadorias, evidentemente – de educação e cultura. Nesse projeto itinerário, as finanças vão ao extremo, como nos Estados Unidos, onde chegam a paralisar o Estado com controle de gastos e teto do endividamento. Ou vão ao extremo, como na proposta da Alemanha: punição para quem avançar sobre o teto do déficit e se endividar mais do que um limite, ambos propostos como um percentual do PIB. E, se possível, inscritos na Constituição.

5) Obviamente, que tanta lucidez dá escuridão. Pena que não possamos usar a beleza da palavra inglesa, que Shakespeare usa iluminadamente, “darkness”. O resultado é um efeito dramático sobre o Estado, sobre a esfera produtiva, sobre a economia, sobre a sociedade. Logo, dá-se o efeito recessivo. E por que buscam elas a recessão? Porque as finanças só conseguem multiplicar o seu cabedal com estabilidade. E essa é alcançada através de um endividamento aceitável e de um gasto comprimido do Estado, que, ficando em ordem, permite uma economia sem regulação. Mas, as perguntas fatais vêm agora: e a produção durante esse tempo foi salva? Começou-se a fazer investimento e a dar empregos? A sociedade avançou, depois da salvação dos bancos, para novos patamares de bem estar? E os bancos podres foram eliminados? E o Bem Comum foi privilegiado todo esse tempo?

O povo pode até ser ingênuo e pode até ser enganado, mas não é burro.

6) É aí que entra a canção de ninar. Para fingir seriedade –quando é arma de chantagem – as finanças enjambraram um instrumento maravilhoso, as Agências de Ratings. Elas têm uma escala de notas que servem para classificar empresas, instituições financeiras e os Estados. E atenção: essas notas servem para balizar aplicações de entidades privadas e públicas. De um lado, podem permitir que no futuro se suspendam essas aplicações; ou que os banqueiros e os chamados “investidores” – na verdade, especuladores – aumentem as taxas de juros em seu benefício. E de outro lado, no campo macro, com repercussões em toda a economia, podem assegurar que aumentem desbragadamente o interdito, a proibição de empréstimos aos Estados absurdamente endividados (endividados, é claro, com a ajuda deles). E dependendo do tamanho do país, da potencialidade de sua economia, da capacidade de segurança dos pagamentos dessa nação, a ameaça é grave. E vejam, um escândalo, basta uma rebaixa da nota de uma agência apenas. Estamos no samba e nas finanças de uma nota só.

7) Qual é a estratégia das finanças? É impor, no mínimo, ao que eu chamo de “eixo econômico americano” da mundialização, uma ordem. Uma ordem que diz aos Estados Unidos: controle do orçamento, dos gastos e da dívida. No subtexto dizem: dêem dinheiro para nós via FED, que nós damos crédito para a sociedade. O que é uma mentira. Eles voltam a especular ou tentam se capitalizar. Na realidade, impõem uma contração ao resto dos agentes econômicos com a picante observação: não perturbem o saneamento do Estado e da economia (sic!). E para a Europa uma ordem semelhante, com uma ameaça nítida: vamos acabar com vocês porque vocês estão em nossas mãos. Façam a recessão ou nós acabamos com qualquer veleidade de Europa, seja ela a que for: seja a dos capitais, seja a da população.

8) Vamos olhar ainda mais de perto para a Europa. Primeiro: a Europa não tem um Estado, tem um Banco Central e um Fundo Financeiro. Segundo: o alvo das finanças é o mesmo da Alemanha. Controle de gastos, da dívida, nada de investimentos e preocupação com o emprego. Terceiro: constata-se que as finanças jogam no campo financeiro e a Alemanha atua no campo político. Quarto: desqualificar a França como interlocutora econômica e política. A perda do triplo A faz isso, anula a liderança política dos franceses. Logo, vitória para Alemanha. Quinto: percebe-se o pacto subterrâneo – a ação conjugada das finanças e da Alemanha – sobre o resto: as finanças rebaixando as notas de vários países, ameaçando rebaixar a nota do Fundo Financeiro Europeu e criando ameaça para os países e para os bancos desses países. E a Alemanha insistindo permanentemente numa política econômica de austeridade, batalhando para não quebrar e para ampliar as regras europeias de restrição, sendo uma delas a que impede que o Banco Central faça empréstimos diretos aos países. Vejam, são regras que favorecem aos bancos, que simplesmente tomam empréstimos a 1% do Banco Central europeu e emprestam a 3, 4, 5, 6, 20% à França, Espanha, Itália, Grécia, etc. É ou não é um esquema que favorece os bancos? São regras que quebram qualquer mobilidade ativa dos países e dos Estados.

9) Desçamos um pouco mais para o efeito do rebaixamento das notas, que funciona como um efeito cascata, uma cachoeira em cima dos países e de suas entidades econômicas e da sociedade como um todo. Pego, como exemplo, a França. O rebaixamento da sua nota afeta diretamente bancos, companhias públicas, companhias territoriais, companhias aéreas, etc., etc. O que se pode perceber é que esse ataque conjugado economicamente das finanças (via, sobretudo, Agência de Ratings) e político, via Alemanha, leva o jogo para um triunfo político e econômico da Alemanha e uma derrota monumental da França (e de Sarkozy, em particular). E, ao mesmo tempo, conduz a economia europeia para uma recessão prolongada.

10) Quais os efeitos geopolíticos dessa pausa que não refresca do ataque das finanças? O efeito global dos ataques são enquadrar o Estado americano e europeu aos desígnios financeiros, mantendo a desregulamentação; criar estabilidade para novas expansões especulativas; e desequilibrar o mercado em favor das finanças americanas, obviamente as mais fortes. Nos Estados Unidos, uma busca de ganho delas pela concentração e centralização de capital. Talvez por pressão social, e se Obama ganhar as eleições, ocorra uma busca de retomada produtiva via algum programa modesto de estímulo fiscal. Geopoliticamente, pode-se prever que os americanos vão incentivar a indústria bélica em função de sua nova política de estratégia militar e de cerco à China e ao Irã. Claro, decorrerá daí, dependendo da extensão dos conflitos, um avanço na indústria bélica, principalmente na tecnologia aeronáutica. Não se pode desconsiderar que essa estratégia militar vem condicionada por uma tentativa de bloquear a China militar e economicamente, principalmente pelo lado comercial. Daí que o cerco vai se expressar também no campo marítimo, dada a vantagem americana em porta-aviões. O conflito trará um capítulo centrado em combates localizados, com predominância estratégica da aeronáutica e da marinha.

11) Na Europa, a consequência é o apequenamento do continente, o triunfo da política econômica de austeridade da Alemanha, a decadência da França, a diminuição da finanças europeias (salvo, talvez, aquelas da Alemanha), uma queda da produção e da competição da Europa no mercado mundial. Conclusão: recessão comprida, com inclinação política para a direita (talvez escape a França, onde teríamos um governo socialista frágil). Na mexida geral, assusta os reposicionamentos claros da Grécia, de Portugal, da Espanha e da Itália e, inclusive, da França, no contexto europeu e mundial. O que vemos são políticas econômicas que não trarão nem investimentos, nem renovações tecnológicas e muito menos empregos. A boa notícia será a tentativa de reencontrar dentro da ainda hegemonia das finanças americanas (do eixo Wall Street–City, melhor dito), um novo lugar (e hierarquicamente inferior) para os setores financeiros e produtivos da Europa. E tudo isso, numa realidade que se torna voluptuosa, porque o reposicionamento começa pela disputa surda e aberta entre os Estados Unidos e a China nas múltiplas lideranças do mundo (industrial, agrícola, tecnológico, militar, cultural, social, ideológico, etc.). O movimento geral da dinâmica do capital financeiro desloca os atores dos seus lugares no jogo de cena mundial, enquanto ouve-se ao fundo a canção de ninar do triplo A.



CONTO FUTURISTA ATUAL

Estão no Juízo Final, Sarkozy, Angela Merkel e banqueiros europeus e americanos. Deus pergunta: “Cadê a Europa?” Ouve-se a canção de ninar do triplo A. E escuta-se, de modo sepulcral, um silêncio prolongado. Deus pergunta de novo: “Cadê a Europa?”. E aí, a turma da política e da economia, envergonhados, respondem em coro sussurrando: “As finanças comeram!”.

(A cortina do palco, ao contrário da alta velocidade das comunicações do sistema financeiro, fecha-se num ritmo lento e continuado.)

quarta-feira, janeiro 11, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

O MAR REVOLTO
DA TEORIA
E DA REALIDADE

Enéas de Souza
12/02/2012


Não quero transformar esta coluna em arena de discussão teórica. Neste último ano sempre emergiram pontos que gostaria de abordar e de fazer uma incursão no nível das idéias. Volta e meia, faço umas aventuras; e, tenho dado desta forma uma escapada da análise conjuntural e esticado umas braçadas na beira desta praia. Mas, foram ficando alguns temas de discussão, que mergulham na travessia explicativa das análises e da conjuntura. Nos últimos textos que escrevi exalaram perguntas amplas. Vou dizer alguma coisa sobre uma e outra questão, conversar um pouco sobre um e outro tema, assim como os músicos dialogam numa reunião deles. Talvez, melhor seria dizer: estamos afinando os instrumentos para futuros comentários.

O SONO EXCESSIVO DOS HOMENS

Meu amigo Paulo Timm já me colocou várias vezes a questão do capitalismo e da teoria do Estado. E acho que ele tem razão. É preciso tentar ver que a gente deve olhar maduramente para estes teores. Timm indaga das razões porque muitos ficam apegados às ideias de Marx do século XIX. Talvez a gente tenha que deslocar o caminho da pergunta. O importante é perceber que o mundo se movimenta e que a teoria também. O teórico em economia, olhando com atenção, é um caçador que colhe a trajetória da caça. O mundo não segue as ideias; são as ideias que seguem o mundo. E o que queremos entender é o que está aí e o que anda por aí; que se move e que avança. Acho que temos que entender que o capitalismo é uma estrutura dinâmica e não estática. Trata-se de uma estrutura onde os seus elementos se modificam alterando as suas relações. Mas sempre continua como uma estrutura, só que é uma estrutura na qual o capitalismo põe um vestido novo.

Mas, o homem tem um sono muitas vezes excessivo. E este sono o leva a deixar de lado o que está acontecendo. Dorme. Assim é mais fácil achar que Marx tem razão e pronto. Ponto final. Nada mais equivocado, porém. Porque a estrutura que deu origem a “O Capital” já se transformou. Seguramente, carrega no seu DNA aquela estrutura, mas o mundo agora tem cara diferente, cospe fogo de canhões de outra potência.

A ESTRUTURA É UM NAVIO QUE NÃO PÁRA NO CAIS

Se a gente ler o livro III de “O Capital” de Marx, editado por Engels, a gente percebe o método dele: acompanhamento detalhado dos fatos empíricos; e ao mesmo tempo, uma exposição de dados e de acontecimentos que se organiza a partir de uma teoria que vai se fazendo na sequência da lógica do capital - que é a teoria desta estrutura dinâmica. Daí que o fundamental é seguir esta lógica que se altera e se transforma à medida que a história se modifica. As categorias desta lógica têm origem na própria realidade, mas são desenvolvidas conceitual e articuladamente, numa unidade e uma ordenação própria da teoria. É esta que dá sentido ao que está acontecendo.

A DANÇA DOS DIÁLOGOS POSSÍVEIS E IMPOSSÍVEIS

E nenhuma teoria se faz sem a conversa cruzada. O diálogo com autores economistas, marxistas e não marxistas, como Keynes, Schumpeter, Minsky, ou mesmo contemporâneos como Krugmann, Stieglitz, Borio, Aglietta, Orléan, Chesnais, Harvey, Carlota Perez, etc. valem a pena. Ouvir um pouco de política vinda de Agamben, Rancière, Hannah Arendt, ou mesmo Carl Schmidtt, e tantos outros de outras áreas como Eric Hobsbawn, como Guy Debord, como Claude Lefort, etc. etc., não faz mal a ninguém. E a maioria destes autores, acredite o leitor, são descartados. E isso sem considerar os “diálogos impossíveis” com Max Weber, Durkheim, Freud e Lacan por exemplo. E sempre nos perguntamos: que tal escutar a literatura, ler o cinema e ver a filosofia contemporânea? Nunca esquecer que Marx achava que Balzac tinha dado uma contribuição fundamental para a compreensão do capitalismo. Pensá-lo, é, portanto, pensá-lo junto com.

QUAL É O RITMO QUE TOCA O CAPITAL?

Assim, os temas do capitalismo financeiro e o avanço do capital pelas órbitas financeiras e produtivas são fundamentais. Também, a Maria da Conceição já tinha alertado que a dinâmica do capital passa pelas áreas do comércio e dos serviços. Aonde tiver uma trilha, uma trama, uma possibilidade (vejam a indústria da comunicação, da imprensa à TV) o capital está presente, funcionando como verdadeira caixa de bondade ou de maldades do mundo contemporâneo. Constrói e avança, mas destrói e inunda. E a sociedade liderada por ele e que tenta organizar a vida econômica, política, social e cultural, merece a nossa consideração. Porque vivemos a civilização (e a barbárie) do referido capital. E para criticá-la com rigor cabe saber como este personagem se movimenta. Daí neste momento a questão imprescindível do Estado. Como este se constitui, como se organiza, como se desintegra, como se une e se reúne, como é múltiplo e como é unitário, como é força e como é .... etc.

De qualquer forma, me parece que é preciso fazer um duplo movimento: ser o mais exaustivo possível na descrição do que está acontecendo e tentar uma interpretação que atenda a lógica do capital no seu movimento. E nesta lógica é obvio ver como os grupos sociais a encaram. No caso, o velho Marx tinha uma postura vigorosa: tratar das relações sociais de produção em face do desenvolvimento das forças produtivas. Em resumo: observar, tanto quanto puder o olho e a inteligência, como os homens brigam no dia a dia nas suas múltiplas atividades; e ver como isso rebate sobre as transformações das bases tecnológicas da história de agora. Pois é isso que está em questão: como o capitalismo vai se desdobrar em suas dimensões econômicas, políticas, sociais e ideológicas nesta necessidade de ir adiante? E ele só vai adiante se revolucionar a sua indispensável tecnologia. Quem vai ganhar, quem vai perder, como a sociedade vai se conduzir, como o Estado vai liderar - sim, está aí o ritmo do capital. Um ritmo de jazz e de tango.

CAPITALISMO DE ESTADO NO MICROSCÓPIO DA POLÍTICA

Tenho tentado mostrar que na fase atual a grande questão é como o capitalismo vai avançar. E o que tenho tentado dizer é que o impasse deste capitalismo gerido pelas finanças, dado o bloqueio do avanço das forças produtivas, vai sair do domínio do Estado. Pois, pode-se constar que o Estado está em pauta por toda a parte. Mais para um lado mais para outro. As finanças procurando manter o Estado subordinado a elas, a produção tentando descobrir um jeito de incliná-lo a seu destino. E as classes subalternas, com suas manifestações diversas, tem conseguido alcançar muito pouco da mudança. Contudo se manifestam, seja com as greves da Europa, seja com o movimento “Occupy Wall Street, seja com “a primavera árabe”, etc. Mas, nada é como Toni Negri pensava; que todo e qualquer movimento já é uma ameaça ao capitalismo.

Minha amiga Tania Faillace me escreveu dizendo que estou previlegiando o capitalismo de Estado. Estou sim. Mas, vamos ver as nuances. Há uma retomada do Estado em todo o mundo. Porque é a única forma de combater as finanças, que desregulamentou tudo, e deixou as funções sociais (saúde, educação, previdência e cultura) como fronteira de expansão do capital, diminuindo fortemente os investimentos e a expansão do emprego. O que teve como consequência, desde 2007/2008, uma paralisia da expansão da economia. O que coloca na frente do palco a luta aberta de todos os grupos sociais. Na minha visão, o único grupo que pode reunir tudo neste avanço é o capital produtivo. Só que ele tem que conquistar o Estado. Mas, o desenvolvimento geoeconômico não se dá sem o espaço geopolítico. E neste sentido, já existe um setor que tem o Estado no seu horizonte, que é o capital produtivo da China. Porque nela o Estado por visão política desenvolve a produção como um passo prioritário. E subordina, no avanço geopolítico, as finanças, que estão submetidas à estratégia do Estado.

É natural, nos dias de hoje, que se pense em apoiar o Estado. E pergunta-se: o Estado só sobrevive como capitalismo de Estado? Não, claro que não. O que estou dizendo é que o capitalismo de Estado chinês é o ponto do jogo econômico onde a unidade do Estado foi mais longe. E, como fruto disso, conseguiu dominar pelo menos, por enquanto, as finanças, colocando-a no rastro do setor produtivo. Mais do que isso: como instrumento do projeto estratégico chinês. Na China, a política está definindo a economia, e, por essa razão, é o polo mais ativo da economia mundial na realidade que corre.

O que não quer dizer que eu defenda o capitalismo de Estado, apenas estou salientando que na necessidade do capitalismo avançar partindo do Estado, o capitalismo de Estado chinês saiu na frente. E naturalmente, Tanya, numa dimensão, e meu amigo Fernando Saraiva, noutra, colocam a questão: quem mais atende ao bem comum? Certamente, não é o capitalismo de Estado. O mais importante no momento, a meu ver, com ou sem capitalismo de Estado, é a democracia, porque é ela que sacode o Estado quando ele é autoritário e pode afastá-lo do totalitarismo.

E o capitalismo de Estado pode ser uma tentação muito forte neste momento. Mas, contém um ponto fraco: o Estado sem o contrapeso da sociedade torna-se um poder abusivo, quem sabe incontrolável. A tentação do autoritarismo vai ser forte no próximo passo, pode inclusive vir junto com toda essa tecnologia de comunicação e informação. Basta só ver a discussão do futuro da internet, onde alguns governos, o poder econômico e as forças militares, etc. projetam em açambarcar e controlar o setor. Portanto, é um tema agudo.

A SINOPSE DA ÓPERA DO CAPITALISMO ATUAL

Passando decisivamente da teoria e das especulações à realidade, o que tentei colocar se encaminha na seguinte direção:

1) As finanças só serão derrotadas ou atuarão para a sociedade somente se o Estado for transformado numa entidade que beneficie e apoie a produção, o investimento e o emprego;

2) o capitalismo de Estado chinês está impondo à dinâmica geopolítica e geoconômica mundial a sua marca, inclusive por favorecer à produção e não necessariamente às finanças, em função de uma estratégia nacional bem concertada. Para o bem ou para o mal, a China é um exemplo;

3) para fazer frente ao capitalismo chinês só um fortalecimento da área produtiva dos demais países, principalmente dos Estados Unidos. Mas, é preciso transformar neles o papel do Estado, enfatizando o investimento e o emprego, e adequando o financeiro à produção;

4) toda a dinâmica econômica e política do mundo vai girar, então, em torno desse capitalismo de Estado e do papel do Estado nos demais países. E da passagem ou não da liderança econômica para o setor produtivo. E isto vai levar tempo. Precisa, no mínimo, reorganizar a estrutura da produção ao redor de um novo padrão de acumulação centrado nas tecnologias de comunicação e informação, nos novos materiais, na biotecnologia, etc;

5) não se pode descartar uma formidável resistência das finanças inclinando-se para um engessamento da economia e forçando uma gestão de política econômica obscurantistamente recessiva dos Estados Unidos e da Europa. E tendo ainda como meta atingir - e quem sabe alcançando - à China e os emergentes, usando inclusive elementos bélicos, para desorganizar por tempo indeterminado o sistema com o objetivo de triunfo do financeiro;

6) a questão política central é o tema da democracia, entendida não apenas como eleições livres, mas como a construção do bem comum, onde entram os temas da produção, da distribuição da renda, das políticas sociais, da retomada da cultura como uma forma de defender uma mudança, tão revolucionário quanto possível, do padrão de civilização do capitalismo. Este padrão atual, de corte financeiro, além de todos os problemas econômicos, políticos e sociais que estamos falando, ele é fulminantemente anticultural, antiartístico, antipensamento e antiético. Engana a população com um falso hedonismo e com os malabarismos do cálculo.

Assim, é preciso pensar o capitalismo para frente, observando que há dois adversários fundamentais para a sociedade: primeiro: a vitória indefinida das finanças; segundo, as formas não democráticas de gestão do Estado. Cabe, então, reativar fundamentalmente a democracia como ponto de resistência a natural selvageria do sistema. E claro, a democracia não é propriedade de ninguém, mas sim construção da maioria - e extensiva a todos. E é, irreversivelmente, uma conquista diária.





quarta-feira, janeiro 04, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A CARA VISÍVEL
DO ANO NOVO
Enéas de Souza
05 01 2012


Um analista de conjuntura tem que ter, como os antigos adivinhos, uma arte especial, o dom de ler as tendências que já estão presentes. Ou os signos da realidade, diria Nietzsche. Calcas da Ilíada, “ótimo augure de pássaros”, Tirésias que, no Édipo de Sófocles, por causa da sua cegueira, descobre os indícios e as informações ocultas que lhe chegavam ou possuía. Pois o analista de conjuntura tem um pouco de Calcas e de Tirésias, mas também tem um pouco de Lênin, quando chega à Rússia e lança as “Teses de Abril”; e tem um pouco de Keynes tentando propor o Bankor para organizar o capitalismo e salvar a Inglaterra. E todos – todos! – na razão ou no desespero, lemos a conjuntura. O problema é conseguir captar a abertura que os seus sinais nos dão. Hoje, se temos o entendimento adequado, eles nos revelam o movimento, o sentido e a direção do capital. Se não, somos como os pilotos de Fórmula 1, o pára-brisa é a nossa interpretação; se o carro bate, as nossas ideias voam aos pedaços.

2012 é um ano complexo, deve ser um ano de inflexão. Primeiro, porque no contexto do conflito entre os eixos americano e chinês, o elemento dinâmico do sistema é esse último. A China está se preparando economicamente para dominar o mundo a médio prazo. (Mas também se condiciona, a mais longo prazo, no lado militar, para encarar os americanos). Na economia, sua manufatura está sobrando, sua competitividade aumenta, talvez – e aqui está o decisivo – comece a entrar nas tecnologias de ponta. Monetariamente prepara o Yuan para ser moeda de reserva, a partir de acordos bilaterais com diversos países, para, logo adiante, torná-lo reserva de valor. A China vai ter que arranjar um modo de sua moeda ser aceita de uma maneira generalizada sem que suas manipulações sejam consideradas abusivas. (Atenção: não vamos entrar na ideologia americana de que o fluxo livre do dólar não é manejado, nem manipulado, por favor!! É só ver o que o FED andou fazendo e faz, ou o que os oligopólios financeiros fazem com as moedas. Livre mercado? Argh!).

Voltando à China. Com o processo de protecionismo agora avançando fortemente no mundo, ela vai ficar bem posicionada no mercado externo, com a hegemonia sobretudo na Ásia, e tentando destruir seus competidores – o Brasil que se proteja. E, ao mesmo tempo, vai voltar-se cada vez mais para o mercado interno. E a China tem estratégia nacional e tem uma postura de liberdade na política econômica para efetuar tal atuação. Tudo porque a China tem um Estado unitário. (Vejam bem, amados e contrastantes leitores: não estou defendendo a China e suas soluções, estou mostrando como as soluções que eles acharam estão incidindo sobre a realidade! É mais que evidente que há uma questão de fundo na realidade contemporânea, valendo integralmente nesta mundialização: qual é o Estado que servirá ao bem comum?)

O adversário imediato, o rival mimético, como falaria René Girard, é os Estados Unidos. Só que aqui a coisa está muito complicada. A classe dominante está dividida, até mesmo os financistas estão em disputa, o processo de concentração e centralização de capital continua, e mesmo se as finanças e as empresas crescem, a economia patina, porque uma economia só é de vanguarda e forte se o emprego cresce e transborda. No auge dos anos 90 do século passado, os Estados Unidos tinham 4% de desemprego, considerada uma taxa de pleno emprego. Hoje, a verdadeira taxa é de 16%. Bom, e não se conta o emprego clandestino que existia naqueles anos, quando mexicanos, brasileiros, europeus do leste, asiáticos e africanos estavam empregados, mas não entravam nas estatísticas. Hoje, esse pessoal emigra para outros lugares. Para o Brasil, inclusive.

Politicamente, os americanos estão, por consequência, divididos. O Estado está paralisado pelas resoluções dos deputados sobre o limite da divida e o controle os gastos. E o Fed continua mandando a serviço das finanças. E as agências de ratings – expressão do capital financeiro – estão entrando na linha de suicídio, jogando contra o Estado americano e contra os estados europeus. 2012 vai ser mais um ano de paralisia ou de lento crescimento nos “States”. E vejam, o problema da economia americana, que é uma economia líder, não é só crescer. É crescer para ampliar a sua liderança. Como? Construindo um conjunto de novas indústrias com novas tecnologias para comandar a arquitetura de um novo padrão de acumulação. Aqui é que está o ponto: os americanos têm política econômica para tal? Não! Por quê? Porque as finanças não cedem. E nem pensam e nem compreendem o seu novo papel neste padrão. E a atividade produtiva – dada a sua estrutura financeirizada, através da corporate governance (governança corporativa) – não tem bala para bater as finanças. Os lucros das grandes empresas ainda têm um componente financeiro elevado. Falta, então, a reorganização da economia, do planejamento, do financiamento, ou, no mínimo, de uma programação do investimento de natureza estatal em diálogo com as multinacionais, o que depende da política. E enquanto isso não ocorrer, a tentação bélica pode se antecipar, pois como o poder estatal do país está cindido, o gesto das armas pode ocorrer. (Olha o Irã e o estreito de Ormuz!)

A Europa, graças à vocação financeira dos seus países, está sendo empurrada para o fundo do poço de uma maneira grave, porque não só vai perder posição no contexto das economias (para Brasil, Rússia e Índia), como vai dilapidar sua socialização, vai incrementar a luta de classes através de uma direitização absolutamente visível – de Portugal à Alemanha. Não vai ser fácil os socialistas ganharem na França. E a política das finanças é corte de gastos, limitação do déficit e da dívida pública, corte de funcionários, corte de salários, diminuição dos gastos sociais, etc. Tudo aquilo que uma recessão/depressão gosta: a espiral do suicídio. Dessa forma, não há investimento autônomo do Estado e muito menos do setor privado. E claro, não teremos consumo e nem investimento derivado desse. Logo, o desemprego vai ficar mais sombrio. Pobre população desta Europa das Finanças, que não pensa sequer num Estado político europeu!

Já o Brasil está numa situação aparentemente boa. Primeiro, estamos já inseridos na nova mundialização através do petróleo, da produção de alimentos e dos minerais. O nosso desafio é não ficar estourando de felicidade por estarmos bem. Precisamos reposicionar a nossa indústria, seja para a competição internacional, seja para o retorno à expansão do mercado interno. A dificuldade maior será articular a relação de força dos grupos sociais que desequilibre a atual posição das finanças (bancos nacionais e instituições financeiras internacionais) em favor da indústria e dos trabalhadores. E ainda, na dimensão ideológica, que rompa com a possível direitização das classes médias ascendentes, que adoram o governo, mas que a qualquer solavanco maior da economia estarão brigando contra ele. E com um problema mais complexo. Como articular o desenvolvimento dessa relação de grupos sociais com a composição política partidária e a reforma política encravada em dúvidas, visando um poder maior do país?

Dessa maneira, o que se pode ver neste início de 2012 é o eixo econômico chinês – composto da Ásia, da América Latina (Brasil, incluído), África – se mexendo para um movimento dinâmico, obviamente com a China correndo a maratona, e os demais, corridas de média e curta distância. E o eixo americano, senão parando, pelo menos mais lento, com os Estados Unidos bloqueado por lutas internas, a Inglaterra no meio do barulho americano e europeu, e a Europa, talvez passando sem pudor, do purgatório da economia e da política para a sem esperança do Inferno. (É o que diria o nosso amigo Dante: “Lasciate ogne speranza voi ch´intrate”). E, quem sabe, nessa passagem é que pode estar a grande ameaça do conflito bélico, talvez algum Napoleão europeu tente puxar a espada da guerra contra o Irã, numa busca de votos e dominância geopolítica de desespero, antecipando o desejo militar americano.

Esso é o sentimento que aparece agora, na virada do ano, quando a maré está enchendo. Mas, no preamar, o medo da ressaca existe. E, portanto, a pergunta assustadora: se a maré alta se expandir mais longe do que devia, haverá uma certa devastação no mundo, como a voluptuosidade que Capitu fez no coração de Bentinho, no romance “Don Casmurro” de Machado de Assis?