quarta-feira, abril 25, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A FRANÇA NA HORA
DO LANCE DE DADOS

Enéas de Souza
26 04 2012



DA EUROPA DOS CAPITAIS A EUROPA DOS CIDADÃOS

Não é cara ou coroa, mas é um momento decisivo para a França. E um momento importante para a Europa. E um momento importante para a mundialização. Não que François Hollande seja um esquerdista furioso. Não. François Hollande não é o candidato dos sonhos de alguém que é de esquerda. Mas, é um político que tem sensibilidade em relação ao destino da França no mundo, que tem sensibilidade em relação à situação do Estado de Bem-Estar, que tem sensibilidade quanto ao papel do próprio Estado no mundo presente. Ele é um cara que percebe que a França está cercada à direita, por todos os conservadores, da Alemanha a Itália, da Inglaterra a Espanha. E, sobretudo, sabe que a França foi envolvida pela Alemanha no jogo geopolítico mundial e europeu. Nenhum desses governos quis receber Hollande antes das eleições. Merkel fez campanha aberta para Sarkozy. A Europa dos capitais não quer nada com Hollande. Não é o demônio, mas será a resistência. A Europa dos cidadãos está se movendo.

SARKOZY, O ESPALHA ÁGUA

Sarkozy é o candidato dos ricos. Um tipo esperto, midiático, o logro – tanto no sentido de engano como de êxito – é o seu permanente objetivo. Está há muito acostumado ao poder. E o tem usado muito. Sua força é o denodo, a resposta imediata, o lance sempre oportuno. Um homem para os tempos das finanças. O problema apareceu, ele agiu. Não importa se bem, importa que responde. Tenta fazer do esquecimento a sua arma. Por exemplo: domingo houve uma ligeira rejeição de sua figura. É o primeiro presidente da quinta república francesa que na re-eleição perde o primeiro turno. É uma pequena rejeição. Só que Sarkozy, no dia seguinte, já saiu falando mal dos socialistas de Hollande e que ele estava disposto a abrigar os socialistas que eram favoráveis a Strauss-Kahn, aquele que foi defenestrado do FMI. E que foi indicado ao posto por ele, Sarkozy. Já perceberam? Não importa o problema, o negócio é sair do inferno a qualquer custo. É o espalha água.

MARINE NA COLA DE SARKOZY

1) Os estilos de política são diferentes, portanto. Hollande parecia inerte, agora a população acha que ele é calmo e ponderado. Sarkozy está sempre em atividade, nervoso, elétrico, tentando mostrar uma face americana que gosta tanto, o pistoleiro que sai atirando para todos os lados. Agora, está parecendo um pouco desgovernado. E não é por acaso: tem na sua cola, além da derrota no primeiro turno, a voluntariosa Marine Le Pen. E essa talvez seja a questão mais importante para ele. Marine Le Pen é o espinho da ultradireita, que acompanha a rosa socialista.

2) Na França, embora haja cada vez menos separação entre a direita e a ultradireita, ela ainda está presente. Sarkô é a direita internacionalista, representante das grandes empresas e das grandes fortunas, cujo objetivo é ocupar o espaço da mundialização. Por isso, Sarkozy quer fazer um Estado francês para essa fração social. Só que tem que desmontá-lo em todos os campos, sobretudo na previdência, na proteção social, na cultura. E sua política é uma política em direção aos capitais europeus. Faz, contudo, o discurso para um lado e age para outro. Exemplo: apoia a Alemanha na política da austeridade: controle do orçamento, controle dos gastos públicos, controle da dívida. Mas, joga no limite com o déficit e a dívida do país. E a França foi reprovada por uma agência de rating. Sarkozy é um trapezista audacioso, está sempre num equilíbrio instável. E para não perder a ultradireita, ataca os imigrantes ilegais, é duro com os operários, embora sempre tente aparecer como defensor dessa classe social e de todos os franceses.

MARINE CONTRA A TRAIÇÃO

Já Marine é o contrário. É a ultradireita nacionalista, xenófoba, moralista, vigorosa. Sua mensagem é a retirada da França da Comunidade Européia, a saída do euro, o controle da imigração, etc. Portanto, uma direita nacionalista. E daí que, aos olhos dos integrantes da Frente Nacional, Sarkozy é “a traição”, como disse, no domingo, um militante da Frente Nacional. É preciso notar que a FN tem avançado socialmente muito, sobretudo à medida que a França vem caindo. E Marine introduziu uma novidade na imagem pública da candidatura da ultradireita. Seu pai era um velho rançoso, mal humorado, com respostas contundentes e muito limitadas. Marine, não. Não chega a ser uma mulher bonita; se não é simpática, esbanja vitalidade e força. E suas mensagens são as mesmas, porém com melhor papel para embrulhá-las. Papel mais colorido, deixando de lado a poeira do seu pai. Os resultados de domingo evidenciaram que a FN conseguiu atrair os jovens, que vieram porque a França mudou. Marine tenta ultrapassar a antiga oposição direita-esquerda do acordo capital-trabalho do pós-guerra. Marine é o novo da direita. Melhor, da ultradireita. É a festa de um nacionalismo anti-mundialização.

TEM DIFERENÇA, SIM, ENTRE A DIREITA E A ULTRADIREITA

E o leitor já viu. Há dois caminhos para a direita largo senso: o internacionalismo e o nacionalismo. São caminhos divergentes e são ainda e claramente duas direitas. Mas, agora, Sarkozy vai ter um sério problema. Domingo, com o grande crescimento social da FN, a loira candidata de sorriso fácil percebeu que Sarkozy está num mau momento. E ela está se lançando como o futuro da oposição na França, porque junto com a queda do presidente, há também uma certa recuperação da esquerda. Hollande, ao contrário de Segolène Royal na eleição de 2007, conseguiu aglutinar não só os socialistas como também negociou bem com os demais partidos de “gauche”. As sondagens dão a vitória a Hollande. Pois Marine já começa a radicalizar a oposição direita-esquerda, forçando as suas mensagens, não apoiando – ao menos, até agora – a Sarkozy. E sua meta são as eleições parlamentares de junho. Na sua visão, o seu objetivo é se colocar como a verdadeira oposição ao possível triunfo socialista. Com isso, não só ela não vai fazer campanha por Sarkô, como também não vai apoiá-lo por baixo dos panos. Objetivamente, ela está ajudando François Hollande. A questão é: a ultradireita tem os votos que o presidente – ex-presidente? – precisa? Como que Sarkozy vai vencer essa barreira política? Conseguirá passar por cima de Marine?

HOLLANDE FECHOU COM TODA A ESQUERDA

O caminho de Hollande parece mais fácil. Mélenchon, que fez bela campanha e aglutinou muita gente em torno de si, já deu apoio total ao candidato do PS. Seus comícios empolgaram, embora não se traduzissem em votos porque a França também tem voto útil. E só por isso Mélenchon não chegou ao nível de Marine. E os verdes, que fizeram dois e alguma coisa, também anunciaram o seu apoio. Ou seja, Hollande já fechou com a esquerda da sua esquerda. E agora vai fortemente em direção ao centro, ao centro de Bayrou, que, como todo centro, tem votante que pende para a esquerda e tem votante que puxa para a direita. As análises dos que trabalham em sondagem afirmam que o partido de Bayrou se dividirá em 1/3 para Hollande e 1/3 para Sarkozy, e 1/3 não irá votar ou se absterá de escolher candidato. No quesito centro, o jogo está empate.

O QUE VEM COM A VITÓRIA DE HOLLANDE

Assim, as sondagens indicam uma leve superioridade de Hollande (54 a 46), mas, na verdade, a coisa está apertada, a disputa vai ser intensa. E as consequências serão muito fortes. Então, o que representa a vitória de Hollande? Em primeiro lugar, a interrupção do triunfo neoliberal conservador de Sarkozy. Em segundo lugar, uma transformação da política econômica na busca de um Estado novamente com preocupações sociais, na recuperação do controle fiscal, e na tentativa de retorno do crescimento econômico. Em terceiro lugar, a recuperação de um projeto francês de uma Europa dos cidadãos, com uma política externa europeia independente tentando ligar-se aos BRICS. O projeto é transformar a França, transformando a Europa, caminhando para os BRICS, e trabalhando para uma governança pós-crise. Em quarto, uma mudança estratégica para a França, para a Europa e para o mundo. Essa mudança vai passar pelas organizações paranacionais, como a OTAN (para bloquear a influência americana), como a ONU (mudança no Conselho de Segurança), como o FMI (alteração no estatuto do Fundo), etc. Cabe esclarecer que muitos desses aspectos não estão sendo discutidos na campanha, mas são parte do projeto global de François Hollande.

HOLLANDE/OBAMA VERSUS SARKOZY/MITT ROMNEY

Nesse sentido, visto dento do eixo americano como falamos acima, a vitória de Hollande – se for seguida de uma vitória de Obama nos Estados Unidos – pode preparar um itinerário para a recuperação econômica, social e política do referido eixo. Se ganharem, ao contrário, Sarkozy e Mitt Romney, a trajetória será mais contracionista, mais protecionista, aguçando poderosamente os problemas de distribuição da renda, trazendo mais problemas sociais, e uma mais lenta senão uma postergação indefinida da recuperação econômica e social desse eixo americano. Como se vê, a eleição da França está, no domingo, dia 6 de maio, como o título de um poema de Mallarmé: por “Um lance de dados”.



PS – Leitores desta coluna: entro em férias em maio, volto em junho.



quinta-feira, abril 19, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL


DILMA E LULA.
ESTRATÉGIA DO BRASIL
E A QUEDA DOS JUROS

Enéas de Souza
19 04 2012




1) Dilma tem a qualidade mineira e a qualidade gaúcha para a política. Como mineira, ela joga em silêncio, trazendo a arte de esculpir o ouro, porque de ouro, já se sabe, é o silêncio. Essa era a grande arte do PSD de Minas. E com uma longa vida no Rio Grande, tem a arte gaúcha de deixar o tempo passar e colher, no momento efetivo, o crescimento do rebanho e da terra. A grande arte que veio do velho Getúlio Vargas. E de ambas as heranças, Dilma recebeu a qualidade do lance exato, a audácia da hora do corte. Ela tem o senso daquilo que os gregos chamavam de kairós, o momento oportuno, que o PSD e o Getúlio tinham nos seus mais ambiciosos gestos. Mas Dilma traz também o pensamento treinado para compreender a sociedade e a economia na sua totalidade, uma totalidade que está em movimento, que muda com o processo dos atores e das estruturas.

2) E se você, leitor, que é um apaixonado de política, tem notado, tem discutido, tem apreciado, tem conjeturado o que está acontecendo no nosso país, você pode ver que há sempre na presidente a articulação da grande e da pequena política, dos lances fundamentais da estratégia aos pequenos problemas do dia a dia. A Dilma parece durona – e é; ela tem uma irritação bíblica ou divina. Tem. Mas, atrás da dureza, tem também o refinamento da elegância e o humor secreto da cortesia. Vide como ela tratou certos proprietários da mídia e o adversário FHC. Sim, porque a política não é guerra todos os minutos, nem fúria santa sem descanso; as pessoas têm também encontros de saber fazer e de viver em sociedade. O mau humor da Dilma se dá no operacional e quando há o mal feito ou a traição ou a falta de inteligência, mas a generosidade emerge quando brilha a confiança ou a realidade requer civilização.

O LANCE DA TOTALIDADE E O PRINCÍPIO DE NELSON RODRIGUES

1) O refinamento político de Dilma começa por definir que o líder político do Brasil é Lula, e que ela, Dilma, é a líder do governo, a chefe de Estado. E foi aí onde ela encontrou a sua ferida, porque o imprevisto, o acaso, o passa pé da vida, derrubou Lula, jogando-o, sem piedade, no canto do corner da luta política. E logo no começo de tudo. Ou seja, não apenas a liderança, mas o jogo político foi desfeito pelo assédio da doença. Dilma ficou sozinha. Sozinha, não nos conselhos, mas no trato dos negócios do governo. E foi aí que ela concentrou mais as suas forças para definir a energia, a aptidão, a capacidade de responder aos desafios da política mundial e brasileira.

2) Dilma olhou a totalidade em movimento, uma totalidade que, a cada momento, tem outro desenho e outra figura. E verificou que o país avançou muito. Lula colocou o Brasil prá cima, como um dos participantes do jogo político mundial, como um jogador médio, como um coadjuvante. Contudo insistente, ligeiramente insinuante e claramente vivo. Uma nação audaciosa – desde que deixou o princípio de Nelson Rodrigues de lado: o complexo de vira-lata, que Lula sempre tinha em mente. Dilma compreendeu que, no lance da totalidade, era possível organizar o Brasil, dar mais sentido ao projeto nacional.

DE ONDE SAI A CARTA DO FUTURO

1) Então, Dilma percebeu – já tinha percebido, fazia tempo – onde está o rastro da bruxa. E tira a carta do futuro. Há uma nova economia que está se fazendo no subterrâneo visível da presença das novas tecnologias. Elas vão constituir os pilares da arquitetura de um novo padrão, ou, como pensa a economista Carlota Pérez, de Sussex, uma mudança de paradigma, uma revolução tecnológica em andamento. Está se armando um novo padrão de acumulação. Na ponta dinâmica dele estão as altas tecnologias. Temos, então, uma nova organização que vem com as adventícias lideranças tecnológica e produtiva. E revolucionariamente, podemos salientar, farão a função de puxar o conjunto, numa nova ordem que reformula e reposiciona as antigas tecnologias líderes. Pois, foi isso que Dilma viu. E percebeu. E logo se deu conta que o setor energético é uma das joias raras do novo jardim. E ele está também conosco. A mineração e os produtos agrícolas batem estrada por nós. E, para a felicidade da ocasião, temos a Petrobrás, que é a multinacional do Estado brasileiro, que vai cumprir função na economia mundial e que pode encadear uma renovação da economia industrial do país.

2) Veja o leitor, falo em parêntese. Não se pode pensar numa economia industrial brasileira por setores, quando o que comanda o espaço econômico produtivo é a economia mundializada. O que é prioritário é a dinâmica planetária do capital. E dela provém os encadeamentos que os capitais exibem na sua cadeia produtiva. A renovação industrial vem daí. Portanto, não basta dar apoio simplesmente às empresas setoriais. O que não exclui a posição correta: um país só será soberano se tiver uma indústria forte. Mas, indústria forte não é apenas indústria apoiada pelo governo, mas também indústria que introduz tecnologia, inovação, competitividade, política adequada de salários, manejo adequado da sua tesouraria para competir no arco completo do capitalismo financeiro, etc., etc.

Então, a partir dessa visão do novo padrão de acumulação mundializado, Dilma e o Brasil equacionaram o bilhete de entrada do teatro econômico do século XXI. E por isso, o Brasil é tão respeitado. E foi Dilma, junto com Lula, que estabeleceram essa estratégia. E a eleição dela foi uma expressão dessa configuração

MUDA O CENÁRIO, MAS CONTINUA A LIDERANÇA

1) Lula tinha posto o Brasil no colégio dos líderes. Um político inventivo, alegre, sério, colorido na imaginação, ousado no gesto, deu a linha para os políticos do mundo. O estágio atual é, no nível mais profundo, fazer uma combinação política e econômica da classe financeira com operários, trabalhadores e miseráveis, passando pela atração, mesmo que momentânea, dos integrantes da área produtiva. Lula nunca teve a ilusão que os bancos iam salvar o mundo. Um pouco o que Obama acreditava, o que a Merkel praticava e que Sarkozy adorava. Só Jinbao sabia que mandava nos bancos. Mas, a China é outro papo. E Lula, na crise financeira, soube responder keynesianamente – o que eu chamei keynesianismo por dentro – para conter o grande impacto do desabar das finanças. Aliou-se à produção.

2) Quando Dilma chegou à presidência, o mundo estava em decomposição. Crise financeira americana se estendendo feito a Restinga da Marambaia, e a Europa na sua crise hamletiana: ser ou não ser. Primeira medida: não sair mais, como o Lula, pelo mundo afora. A cena tinha mudado. Lula tinha aproveitado sua hora, mas para Dilma esse momento tinha terminado. Dilma não poderia jogar pesado, porque o Brasil não tem bala para mandar no mundo. Mas, ela foi firme: falou dos problemas dos desenvolvidos face aos emergentes na China, na Alemanha e, agora, nos Estados Unidos – e ontem na visita da Hillary Clinton. Ou seja, o Brasil continua tendo liderança; no mínimo, voz.

DE ONDE SAIU O LANCE DO SEGUNDO PÓLO

Mas, houve um lance de Lula ainda pouco compreendido. O da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Há o lado esportivo, há o lado político. Os eventos da bola e dos esportes vão dar projeção ao Brasil, seja no acontecimento dos jogos, seja na promoção política do país. No entanto, tem o lado das fraudes, dos orçamentos, das vigarices que estão todo o tempo na mídia. Mas há também o lado macroeconômico. E é desse que quero escrever. Só que chamo a atenção para ser olhado pela lente da dinâmica industrial. Nesse quesito, Dilma vai consolidar um outro pólo no movimento do capital. Esse segundo pólo vai se dar em torno da construção civil, desde a infraestrutura logística à produção até a infraestrutura urbana. Coloca-se assim, junto com aquele que se organiza em torno da Petrobrás, um pólo que já estava em andamento com “Minha Casa, Minha Vida” e com obras do PAC. E, unindo todo esse conjunto de obras, temos a marca de uma segunda frente dinâmica da economia brasileira. Daí que o Brasil do futuro é este que começa aqui com energia e construção civil.

O QUE FALTA?

Falta todo um esforço para resolver os dois pontos da indústria, o mais avançado, as novas tecnologias de ponta, e o mais tradicional: calçados, móveis, têxteis. Aí temos, no primeiro aspecto, os mais variados incentivos: envio em massa de estudantes brasileiros ao exterior, pesquisa em conjunto com China e Estados Unidos, etc. E no segundo, a necessidade de fazer uma programação de medidas cambiais, fiscais, aduaneiras, tecnológicas, financeiras, etc., que venham a sustentar os ditos setores. O que a gente percebe aqui é uma questão de hierarquia. Primeiro, é aportar ou aterrissar no novo padrão; segundo, é reconstruir a infra-estrutura do país. E, seguindo nessa ordem, há que preparar e fazer o indispensável terceiro: desenvolver uma indústria forte nos mais diversos setores. Questão de estratégia e de recursos.

NADA ALÉM DE UMA ILUSÃO

O título do samba de Custódio Mesquita permite perceber que o que está em jogo é a reunificação do Estado. E Dilma está com muita dificuldade para trabalhar nessa operação. De um lado, o seu primeiro ponto foi exitoso: organizar, a partir da Presidência da República, tanto a unificação do Estado, quanto o planejamento da Economia.

A unificação do Estado é um processo longo. Porque, antes de mais nada, Dilma teve que partir da ideia de que tudo começa na Presidência da República. Ali se faz a concepção da estratégia nacional, ali se faz a reunificação do Estado, ali se faz a concepção e a unidade da política econômica. Uma espécie de 3 em 1. Isso significa a consciência de algo fundamental: o Estado brasileiro estava tão deteriorado pelo neoliberalismo anterior a Lula, que era preciso concentrar na Presidência da República, com a força das urnas e do poder político e econômico, a unidade do Estado Nacional, colocando ali não apenas o centro político como o centro econômico do país. E foi isso que permitiu que Dilma conservasse junto da Presidência, o Ministério da Fazenda, e incorporasse na sua atividade, o Banco Central, formando o núcleo desse poder político e econômico do governo.

COMO SUSTENTAR O ESTADO COM A GELÉIA POLÍTICA

1) Então Dilma, como qualquer artista, tenta construir o mundo. Fez, como falamos acima, a base do comando. Mas, para fazer o resto, vai precisar um monstruoso esforço. Tem que reconstruir a burocracia, tem que redefinir o Estado. O liberalismo trocou a velha postura – que era nacionalista – por uma alegre visão financeira. O que significou a dominância do Estado pelas finanças e, ao mesmo tempo, um movimento político agudo de esquartejamento do Estado, que acabou fragmentado e feito em pedaços. E aí o incrível: para recompor o que está destruído, impossível, porque os tempos são outros. Tem que refazer sim, mas construindo outra arquitetura. Há que fazer uma química entre o Estado e a formação de capital e as classes populares.

2) Mas, o que acontece é que o Brasil é um pais organizado para a política cotidiana, para a política do varejo. Um presidente para ser eleito tem que fazer uma concertação política. E na hora da vitória, todos querem, com justa razão, o seu naco de poder, a sua fatia de ação, o seu quintal de domínio. E vejam o que acontece: o Estado fragmentado é ocupado pela política de conciliação, onde cada um fica com o seu pedaço, com o seu terreiro. E tenta fazer, em muitos casos, a sua pequena política.

3) E como o Estado é fragmentado, ele não flui internamente, nem se aglutina de modo orgânico. A cabeça vai para um lado, o braço para outro, o tórax para um terceiro lugar e o corpo fica desconjuntado. Assim, os partidos ganham, de fato, territórios, que tratam de articular os grupos sociais a seu redor. A verdade é que o Estado fica, então, dividido, sem conexões profundas entre os ministérios, atuando isolada e atomicamente. E aí vem a ideologia neoliberal e os seus pequenos demiurgos, com suas ideias medíocres de concepções de gestão, eficiência, etc. Há que ter gestão sim, há que ter eficiência, também. Mas, dentro de uma visão estratégica, pronto para unificar e dinamizar e energizar e potencializar o Estado. A fragmentação retira a dinâmica da unidade, fratura o poder, abre o espaço estatal para a ocupação particular, e favorece a corrupção e a ausência de controle.

4) Pois, o fantástico de Dilma é isso: une o Estado no seu núcleo econômico e político, tenta esvaziar as ocupações sorrateiras, joga uma organização por fora da ordenação trivial, tenta desativar esse jogo de compensação de apoios políticos, com ministérios que sejam territórios que têm donos. É uma tentativa de sair de uma prática comum, jogando o jogo “o peixe morre pela boca”, para ver se o vaso do Ministério ou do órgão fechado quebra por si mesmo. E aí endurece a negociação. Há uma revolta de frações partidárias com a formulação e a prática dessa nova política, mas a população gosta, adere, apoia: mais de 70% de aceitação. Alguns baluartes caem. Mas a questão continua candente: a corrupção está acabando?

AGORA O LANCE DO MOMENTO

Desde os anos 90 que os bancos vêm, gostosamente, dominando ou balizando o comportamento, não só do Estado, mas sobretudo daquilo que os interessa: a política econômica. E, na política econômica, chegaram a fazer da política monetária, cambial, financeira e fiscal, o quarteto do apocalipse. Pois, exatamente, neste ponto se mostra a fina política da presidente. Ao mesmo tempo que começou o processo de reconstrução da unidade do Estado, esperou tempos e tempos até que o momento de ataque aos juros fosse propício. Num ambiente de crise econômica mundial e num momento estratégico de colher frutos, a Dilma junto com Mantega atacam de frente o setor bancário.

Primeira medida: tornar mais caro as alavancagens externas dos bancos. Segunda: trazer o Banco Central para a ação de desmontar as falsas teorias inflacionárias e diminuir os juros, além de fazer controles monetários convencionais. Terceira: combater de frente a ideologia, a teoria, e a prática dos bancos nos juros, trabalhando por taxas mais baixas. (“Por que os juros no Brasil são tão altos?”). Quarta: tomar a decisão de política econômica de intervenção dos bancos públicos no mercado financeiro para baixar, fortemente, as taxas dos diversos segmentos. Quinta, ter clareza que esse conjunto de atos faz parte do processo de desmontagem do modelo financeiro de acumulação de capital na direção da passagem para um modelo de acumulação produtiva. Sexta: atacar de frente, como presidente da República, o setor bancário, reclamando publicamente das altas taxas praticadas pelos bancos.

Dilma está avisando que o ponto de política econômica decisivo é o investimento e não a especulação financeira. Não é por nada que o FMI diz que o Brasil não precisa mais baixar a taxa de juros. Mas, o curioso que os bancos são como bêbados, diria Machado de Assis. Vão caindo para a direita; se sacodem à esquerda; vacilam na diagonal, para um e para outro lado; fazem curvas no espaço; tropeçam e quase caem quando avançam; e quando recuam, quase desmaiam de costas. Mas, continuam de pé. Gritam contra a inadimplência, contra os impostos e não sei o que mais. E continuam a dar 100% de lucro – que reaparece a cada novo ano e se distribui aos seus acionistas e gestores a todo ano velho.

Um banqueiro me disse há muito tempo atrás: você sabe qual é o melhor negócio do mundo? É um banco bem administrado. E qual é o segundo melhor negócio do mundo? Um banco mais ou menos bem administrado. E qual é o terceiro melhor negócio do mundo? É um banco mal administrado.

Como ri a juventude: eh eh eh eh...

Claro, a ação de Dilma está apoiada numa estratégia, na confiança da população e, na sua outra face, no seu capital político. Mas, não pensem que os bancos estão mortos. Vão reagir no combate do mercado, e, quem sabe, nas manobras silenciosas. Eles, como Dilma, também jogam em silêncio. Todavia, a estrutura do capitalismo se desloca, o investimento e a produção caminham para um protagonismo. Contudo, a economia não é uma reta, os caminhos são desnivelados e provocam solavancos.

Resta a pergunta essencial: continuará Dilma com intimidade do kairós, ou seja, agindo no momento oportuno?

Porque estratégia ela tem.



quarta-feira, abril 11, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A SALADA DE FRUTAS:
FINANÇAS E OBAMA,
DEMÓSTENES E MÉLENCHON

Enéas de Souza
12 04 2012


Não se pode fazer nenhuma análise redutora, mas há que tentar relacionar a com b, finanças com política. E cada caso tem a sua singularidade, mas toma nuance no contexto global. Digo bem se falo de um clima, de um tom, de uma atmosfera. A ascensão das finanças trouxe a liberalização do regramento ético no campo privado e no campo público. Não que todos se pautassem por essa “norma”, mas ela passou a ser um dos modos de navegar no mar dos homens. Paulson, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, no momento anterior da crise financeira, ele que era da Goldman Sachs, quis tirar da concorrência o Lehman Brothers. Tocou fogo no concorrente, acabou botando fogo no sistema. E o mais irônico é que as finanças usam sempre a idéia de “risco sistêmico” para salvar os próprios bancos. E Paulson, que era do time de inventores da ideia, pensou primeiro em derrubar o concorrente, antes de pensar no sistema. Acabou vendo, certamente espantado, olho brotando das órbitas: é, o “risco sistêmico” existe!

Então, temos dois fatos do sistema hegemonizado pelas finanças: de um lado, a criação de um clima ideológico convulso e atroz – no caso, vingança e crise financeira; de outro, o fato que uma etapa do capitalismo não cai assim no mais. E é pela política que ela vai se deteriorando, vai se arranhando, encontrando as suas mazelas até se transformar e desaparecer.

COM QUEM ANDAM AS FINANÇAS

Pois, no Brasil, temos a figura exemplar de Demóstenes Torres. Organizou-se como o campeão da moralidade, usava o linguajar do direito com uma retórica ímpar, jurídica, geralmente como promotor de acusação. Ganhou público, audiência, tornou-se uma figura nacional. Muitos viam nele uma espécie de tribuno romano dos trópicos, sempre preciso nas palavras, sempre contundente. Um Catão! E a escuta das pessoas, sobretudo de classe média, estava sempre envolta na glória dos estádios da moral cívica. De repente, o balão se tornou cativo, percebeu-se que Demóstenes estava grudado com “a contravenção” como muitas vezes se chama no Rio, a zona onde opera Carlinhos Cachoeira. Pois, há que reconhecer com essa ligação que o lado obscuro do dinheiro está no coração do sistema das finanças.

Pensam que não? Caro leitor, lembre-se de 11 de setembro das Torres Gêmeas. Houve uma revolta imensa nos Estados Unidos. E o Congresso Americano sabedor da fortuna de Bin Laden quis fazer uma investigação, rastrear o dinheiro ilegal, chegar até os paraísos fiscais. Chegaram? Claro que não. O Congresso Americano rejeitou a busca, simplesmente porque haveria o olho público sobre todo o sistema. Seriam descobertos todas as falcatruas, todos os movimentos honrosos do dinheiro das finanças, do crime organizado e do terrorismo. E claro da própria política. O leitor já adivinhou ou já sabia: o Congresso não aprovou a medida. E houve votos dos republicanos e houve votos dos democratas. E para se ter uma ideia do alcance, a Enron, uma empresa de energia que capotou na crise americana de 2001, tinha centenas de empresas fantasmas aplicando dinheiro na terra da multiplicação fácil dos ditos paraísos fiscais. É o fenômeno casto da multiplicação dos pães. Como dizia um velho sábio da economia, o capitalismo é sempre dinheiro gerando mais dinheiro. Daí o caráter especulativo das finanças. Para ela, tudo é chance para potencializar infinitamente o seu capital. Legal ou ilegalmente.

QUANDO O CINEMA CONTA A VERDADE DO SISTEMA

Se vocês viram um filme de Martin Scorsese, “Os infiltrados”, as coisas estão mostradas ali. O personagem de Jack Nicholson, chefe mafioso de um grupo ilegal, habita a farsa, a riqueza, o crime, a vingança, o domínio de tudo, jogando nos dois lados: é o terceiro do sistema. Mas, o terceiro corrupto. Domina o crime e domina a polícia. Tenta, como um bicho esperto e traidor, aprisionar o outro de todas as maneiras. O outro como servo de si. E essa atitude atravessa toda a sociedade, todos estão vestidos do manto da mentira, do cinismo, do duplo jogo. Duas cenas são marcantes: Jack Nicholson diz quando desconfia da traição de Leonardo Di Caprio: “esta é uma sociedade de ratos”. E no final do filme, emerge na janela do apartamento de Matt Damon, após ter sido assassinado, um rato atravessando o espaço claro da vidraça. E lá no fundo se vê o Congresso Americano. Mais não pode ser dito. E temos presenciado nesses últimos anos a crise do governo Obama, imobilizado pela Câmara dos Deputados. Bloqueio no orçamento, comissão bipartidária controlando o déficit do governo americano, e fixação de um teto para a dívida pública. Tudo em nome da moralidade. Tudo gerido pelos lobistas do sistema. É possível achar que a metáfora da cena final de “Os Infiltrados” esteja certa.

O ESTADO DO BEM-ESTAR ESTÁ EM CHAMAS?

Na encruzilhada do eixo hegemônico americano (Estados Unidos, Inglaterra e Europa) o movimento das finanças provocou uma crise europeia imensa. E, nessa crise, houve o progressivo tombo, ladeira abaixo, da França. A direita assumiu o poder imperialmente, Sarkozy fez o governo dos ricos e procurou desmanchar o Estado de Bem Estar em todos os pontos. Mas, a França é uma sociedade relativamente politizada. Desde os tempos de Mitterand – e isso aparecia nitidamente nos governos de Chirac – ela sofria com uma queda econômica, com uma queda política, com uma queda cultural visível. Disse-me um professor francês, lá pelos anos 90: “Ah! meu amigo, a cultura na França está decadente”. Tinham morrido Sartre, Lacan, Foucault, Deleuze. E Lévi-Strauss estava na hora da partida. Tinham aparecido Baudrillard e Houellebecq, entre outros, mas nada comparável à influência daquelas estrelas. Mas, gênio, gênio mesmo, a França só reconheceu, nos últimos tempos, apenas Jean-Luc Godard, o atrevido cineasta de “Acossado” e o esplendoroso diretor da grande síntese “História(s) do cinema”. Mas, na verdade, Godard é suíço.

Olhando a política francesa, a gente percebe que ela foi se estiolando, Le Pen chegou para o segundo turno em 2002; o PCF não alcançou o coeficiente mínimo para o financiamento público de suas atividades – teve que alugar a sua sede projetada por Oscar Niemayer; o Partido Socialista ficou reduzido a um partido centrista, embora se dizendo de esquerda, mesmo quando Jospins estava no governo. As pedras que rolam pela estrada são pedras de uma decomposição da sociedade. Maio de 68 estava apenas na memória de alguns “gauchistas”. Contudo, a França tem uma memória sempre rebelde, sempre revolucionária, sempre pronta para a metamorfose. Vejam-se as diferenças. Nos Estados Unidos se diz: “It´s the law” (É a lei). Na França: “C`est mon droit” (É meu direito). Um país fala a realidade coletiva em terceira pessoa, e o outro em primeira, a universalidade no concreto da subjetividade.

Um pouco disso está neste movimento de Mélenchon. Jogou a política de esquerda contra a mesmice destruidora de Sarkozy e a resistência lenta quase parando de François Hollande. Mas é preciso ver bem este fenômeno. Como me escreve um amigo, o movimento de Mélenchon é fortemente de esquerda, mas inspirado na revolução francesa de 1789, que é uma revolução capitalista. Isto quer dizer que a sua voz pode incendiar os corações e as mentes dentro da ordem. E tem feito com sucesso: a Bastilha tinha uma multidão enorme. E Mélenchon está trabalhando com símbolo. Jacques, um amigo de Paris, que vota pelos socialistas, me disse que foi ao comício da Bastille. Ficou impressionado, mas não deixará de votar em Hollande. Contudo, não deixou de dizer que muita gente estava siderada por Mélenchon. A grande resistência a ele é que sua candidatura está dominada pelo PCF. E, como sabem, há sempre uma crítica à democracia praticada pelo “Partidão francês”.

De qualquer forma, ao contrário da eleição de 2002, nesta, a sociedade francesa se moveu mais para a esquerda forçando o cenário para Hollande. Uma militante de esquerda disse: “Eu sempre voto por um partido minoritário no primeiro turno. Mas neste ano, estou em dúvida, sou capaz de votar direto no Hollande.” E dado o sucesso de Mélenchon, ela acrescenta, com olhar esperto: “Talvez ele seja ministro do Hollande”.

DE ONDE SE PASSA DOS CASOS SINGULARES PARA O UNIVERSAL

Por que escrevo essas situações particulares? Primeiro, porque o capitalismo financeiro destruiu os resquícios de moralidade nas lideranças do sistema, pois transformou tudo em ativo financeiro. Inclusive a honra. Algo que Marx não escreveu em “O Capital”. Segundo, porque o capitalismo está mudando na direção de uma economia produtiva, com novas tecnologias e relativa subordinação das finanças. A gente já viu: localizam-se profundas resistências políticas deste lado, por exemplo, na Câmara de Deputados dos Estados Unidos. Terceiro, porque os emergentes estão avançando. E começam uma substituição de um modelo de acumulação financeira por um de acumulação produtiva (O Brasil está entre eles. E a questão ética começa a balançar em muitos níveis: Pallocci, Lupi, Orlando Silva, Demóstenes. As rasuras vão acabar? Não. Mas a corrupção vai se tornar outra.). Quarto, porque no eixo geoeconômico e geopolítico dos americanos – que já se desdobrou em dois: o eixo americano e o eixo chinês – temos a irrupção da resistência a essa destruição do bem estar social, que grassa na Grécia, em Portugal, na Espanha, etc., via a campanha presidencial francesa. Quinto, porque o fator antropológico-histórico da França, se conseguir ser ativado, vai reagir à sua decadência política, engolido que foi Sarkozy pela Frau Merkel. E esta linha de fuga socialista vai rebalancear a Europa. Embora Jacques diga que Mélenchon não é o seu candidato dos sonhos, Hollande também não é. Mas há um cheiro de resistência: Mélenchon propõe renda máxima, desmantelamento da OTAN, controle dos Bancos pelo Estado, direito dos trabalhadores de tomarem as fábricas que vão fechar, etc. O que disso vai ser assumido pelos socialistas se ganharem não se sabe, mas a atmosfera ideológica e política poderá entrar em ebulição na França e depois, como espalha chumbo, pelos ruas da Europa. Sexto, porque a China que não entrou nessa história, apesar de diminuir a expressão do seu PIB, está reconvertendo a sua economia e está jogando de mão contra todos, dos Estados Unidos ao Brasil, sem buscar ser inimigo de ninguém. Apenas os Estados Unidos estão cercando militarmente o espaço chinês. Ou seja, não há geoeconomia sem geopolítica.

QUANDO CHEGA A PERGUNTA FATAL

O que está dito aqui serve para provocar os leitores a discutirem como a crise objetiva do capitalismo financeiro leva a transformações subjetivas, criando o círculo da crise econômica encadeando facetas de uma crise política e o encaminhamento de soluções políticas avançando sobre definições econômicas. Nossa viagem começou na constatação da imensa crise ética e moral produzida pelas finanças com o seu admirável princípio: tudo é ativo financeiro. (Tudo quer dizer: mercadorias, moeda, serviços, princípios morais, ideias, etc.) Isto não quer dizer que todos se submetem a esse princípio. Mas, que ele está aí, está. Então, a pergunta fatal: qual é o caminho da mudança?

quinta-feira, abril 05, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A RESPIRAÇÃO
DA INDÚSTRIA BRASILEIRA

Enéas de Souza
05 04 2012




A interpretação do momento é muito complexa. Existem as medidas que o governo federal tomou no contexto do plano “Brasil Maior”. Mas esse plano existe no meio de uma realidade mais ampla, que é a transformação da mundialização e da inserção do Brasil nesse cenário. Assim, temos que ter um olho no nível das empresas, das corporações e do setor industrial – dentro do que se chama economia brasileira – e outro, no que ocorre no mundo. E esse olhar não pode deixar de perceber o papel que o Estado brasileiro quer cumprir na atual competição geoeconômica planetária.

Então, como um jardineiro que vê suas flores no jardim da economia, podemos ordenar e nomear os marcos que balizam essas medidas. Elas tornam-se claras ou passam a ser entendidas se consideramos que elas fazem parte:

1- Do modo como se dá a nova ordem geoeconômica do mundo, onde se tece a mudança das relações entre as finanças e a produção, no caminho para a construção de um novo padrão de acumulação capitalista mundial;

2- Do modo como essas transformações estruturais têm efeito no Brasil e a resposta do país e das empresas localizadas aqui no quadro dessas amplas mudanças;

3- Do modo como os Estados nacionais, no caso o Brasil, respondem política, estratégica e operacionalmente através da formulação e da execução de uma política econômica nacional;

4- Do modo como essa política econômica brasileira se configura em face tanto do que acontece na dimensão interna quanto da face externa da economia nacional, sabendo-se que o Estado é um operador essencial na tensão da concorrência interestatal, da concorrência intercapitalista nacional e mundial, na relação econômica e política entre o capital e o trabalho;

5- Do modo como as empresas brasileiras participam nesse conjunto amplo da geoeconomia e da geopolítica mundial. O ponto básico dessa inserção se dá por intermédio da produção e da circulação de seus produtos na singularidade e no entrelaçamento do mercado nacional e do mercado mundializado. Estão envolvidos níveis de tributos, créditos à produção, créditos à exportação e medidas específicas para um ou outro setor, por exemplo, para o novo regime automotivo;

6- Do modo como os Estados, em função da competição dos capitais e da concorrência entre os próprios Estados, respondem com projetos – ou não – de política econômica de desenvolvimento. Mas sobretudo como operam na conjuntura seja com medidas de liquidez (como os Estados Unidos e Europa), seja com planos nacionais (China), seja com medidas atentas no dia a dia, envolvendo as Fazendas, os Bancos Centrais, seu sistema bancário-financeiro, seus órgãos no comércio exterior, etc.

7- Do movimento das estruturas profundas da economia capitalista mas que se fazem presentes na conjuntura e que emergem no dia a dia, e em todos os níveis, e que visam mudanças nas empresas, setores e Estados, para a construção desse novo longo prazo. É preciso ficar atento ao novo no desbancamento do velho. E ver o que do novo veio para ficar e o que do velho se transforma para mudar.

QUE MUNDO ESTÁ VINDO?

Então, o que está em jogo no momento é uma nova etapa do desenvolvimento capitalista do mundo. E o Brasil de Dilma mostra a sua posição e a sua potência. É um guerreiro novo, coruscante, que tenta melhor posição do que já teve. E trabalha para entrar nesse clube que está se formando. E o que está se encenando é um reposicionamento dos capitais na construção de uma nova ordem. Isso quer dizer que a necessidade de uma nova economia centrada num dinamismo tecnológico outro – do mundo digital, do mundo dos novos materiais, da nanotecnologia, da biotecnologia, etc. – vai impor à economia uma nova estrutura. E nela, a trajetória especulativa das instituições financeiras terá nova situação, certamente viva, mas subordinada à expansão produtiva. O fato contundente e determinante de tudo foi a crise financeira mundial, a crise da liderança das finanças, mas que trouxe consigo também a crise da velha economia. Foi a camélia que caiu do galho, como dizia a velha música de carnaval. Tecnicamente, esse fenômeno chama-se de superacumulação de capital: superacumulação financeira e superacumulação produtiva. Assim quando a noite chega, os homens esperam a manhã, ou seja, o mundo se encaminha para uma reestruturação da economia mundial. Mas, atenção isso se faz com muita luta, uns ganham outros perdem, e toda luta leva tempo, tem a sua duração. Mas, o combate está solto.

O ENLACE DO MUNDO E DAS NAÇÕES

Agora, olhemos mais um pouco para o cenário atual: o leitor chegará à conclusão que o espaço econômico nacional, na verdade, é atravessado, em muitos lugares, pelo espaço mundializado. Ou seja, os mercados não são nacionais somente, mas também são mundiais, porque eles estão interconectados de uma forma ou de outra. Vem daí a questão tão discutida da desindustrialização, da proteção às indústrias, do fechamento das economias nacionais, das possibilidades de intervenção e das limitações do Estado nacional.

O NOVO AMBIENTE DOS NEGÓCIOS

1) Napoleão todo dia, depois de acordar, perguntava sempre: onde estão as minhas tropas? Pois é isso que a Dilma, o Mantega e o Tombini tem que fazer; e estão fazendo. Por essa razão – e salientaram muito bem vários empresários – o que mais agradou no pacote de terça foi a atitude do Governo brasileiro. Os discursos de Dilma e Mantega. Dilma falando contra a alta dos juros praticada pelos bancos. Ela estava dando o sinal de que os tempos da especulação do cassino financeiro começam a terminar. O jogo é botar as finanças no seu lugar. Por isso, Dilma vai mover a pedra dos bancos estatais para forçar a taxa de juros para baixo, terminar com a festa improdutiva, mas insana, dos juros elevados. Já Mantega no seu discurso disse que estará permanentemente atento ao câmbio, pronto para atuar quando for necessário, porque, no momento, está influenciando fortemente na economia, seja na competitividade da indústria nacional, seja nas contas externas do país. Essa posição de vigilância agradou. E mostrou que o Brasil parece atento e responde às múltiplas medidas dos outros países, como as medidas de liquidez, as medidas protecionistas, etc. Mas, vejam, é o momento de reforçar a produção. E nada melhor do que criar um ambiente favorável ao investimento, à produção sobretudo, mostrando uma posição contra os dois lugares onde as finanças fizeram e faziam a sua festa: o câmbio e os juros. Claro, a guerra está mal começando.

2) Para uma análise da realidade dessas medidas do pacote (desoneração da folha de pagamento, crédito à exportação, aumento no volume dos recursos para o Programa de Sustentação dos investimentos, redução de tributos da infraestrutura portuária e ferroviária, incentivos ao setor de telecomunicações, apoio ao novo regime automotivo, etc.) é preciso tanto ir aos detalhes e aos diversos setores (coisa que não temos condições de fazer aqui) como vê-las sob a luz de um projeto nacional, que se afigura a cada instante mais claro. E cada vez fica também mais saliente, como um objeto numa imagem em 3D, a posição da Dilma: trata-se de jogar o país na concorrência mundializada sem deixar de “regular” e proteger a economia brasileira. Essa coisa não tem volta. Estamos numa época de nacionalismo distinto, trata-se do nacional dentro do mundial. E não do nacionalismo face apenas a outros nacionalismos. E nunca esqueçamos, esse nacionalismo vive dentro do projeto dos capitais de reformulação da antiga ordem mundial. No caso brasileiro, a mudança da economia se faz junto com uma proposta social de erradicação da miséria. O que é o possível no confronto dos grupos sociais do momento.

(Entre parênteses, temos duas perguntas: como é que a classe trabalhadora vai responder a desoneração da folha de pagamento? Essa desoneração é um avanço e uma antecipação sobre o tema do confronto entre o capital e o trabalho nas economias do mundo? Quem tiver hipóteses ou souber a resposta que fale!)

3) Finalizando, o que importa ver é que o Brasil tem um projeto de integração do país no novo padrão de acumulação, através da Petrobrás, da Vale e do agrobusiness. Em torno da Petrobrás se organiza, de forma fundamental, um eixo no qual se enlaçam na sua cadeia produtiva empresas nacionais. A Petrobrás é, na economia brasileira, um polo dinâmico capaz de reorganizar, em parte, o Brasil. Aliás, a nossa meia cancha econômica é a Petrobrás, a Vale e o agrobusiness, esses dois últimos com dinamismos menores. No outro lado da economia brasileira, temos outro polo dinâmico ao redor de obras públicas, de tal modo que as empresas da construção civil funcionarão para desemperrar estradas, transportes, armazenagem, portos, aeroportos, etc., mas também para atuar, como já está ocorrendo, no setor imobiliário, inclusive na habitação popular.

Pois se vale essa visão do projeto de política econômica para a economia brasileira, o analista deve ressaltar que as medidas tomadas pelo governo Dilma visam apoiar setores específicos como os automóveis, mas também às empresas que atuam competitivamente na concorrência capitalista mundializada e nacional. Deu para ver que o Brasil está concebendo uma política econômica centrada na Presidência da República, que sabe o que faz. É por isso que, no final da cerimônia, alguns empresários chorões como os antigos agricultores, comentando as medidas, disseram que o governo tinha boa intenção. Mas faltava isso, faltava aquilo. E mais aquilo lá e mais aquilo outro. E um deles presidente de uma entidade empresarial falou: “É pode até dar certo! Como dizia um professor de economia amigo meu: “quando você chega à mesma opinião que os empresários e eles te elogiam, você está certo”. Será que a Dilma com a sua estratégia e a sua política, calibrada passo a passo segundo as necessidades e as possibilidades, está acertando a respiração que precisa a economia brasileira?