quinta-feira, junho 30, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: Andrew Sheng conselehiro da China Banking Regulatory Commission alerta sobre falta de regulação financeira mundial

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
30 de junho de 2011
Coluna das quintas


O PACTO POLÍTICO-SOCIAL
SOB O GOVERNO DILMA
Por Enéas de Souza


O ATAQUE DAS FINANÇAS AO LONGO PRAZO BRASILEIRO

1) A primeira coisa que gostaríamos de salientar é que se esboça um projeto de longo prazo no Brasil, baseado no tripé petróleo, matérias primas e produtos alimentares. Parece que se constata uma força pujante nessa direção, mas também se observa uma contra tendência, uma tentativa de bloquear e furtar a sua realização. O contramovimento vem das finanças, tanto de instituições internacionais como de bancos brasileiros. Tudo porque o campo financeiro quer continuar vigorosamente o modelo de acumulação financeira, instalado desde 1994 no Brasil. De que modo? Antes de mais nada, fazendo uma forte e robusta pressão para manter o teto da taxa de juros elevado e buscando a sustentação de uma taxa de câmbio do real valorizada. Essa manobra se desenrola com um apoio, hoje um tanto mais moderado, do próprio Banco Central. Vejam então o retrato e a perfídia do que está acontecendo: a atual liquidez alcançada pelos bancos americanos, em voluptuosa procura de aplicação no exterior, reforça a relação com os bancos brasileiros.

2) Surge dessa colagem entre os dois setores, sempre sonhos de altiva e voraz especulação, um desempenho contra as janelas do longo prazo da economia brasileira. Altos juros para impedir maiores investimentos; taxa de câmbio desvalorizada para invadir o país de produtos importados, sobretudo bens de capital. Esse é o resultado principal da procura de valorização de uma densa massa de capital, geralmente americana, que viaja para ser aplicada por aqui. Faz esse volume um efeito coruscante na política monetária do Banco Central, cuja visão vem junto com a ideologia econômica das finanças internacionais e dos bancos brasileiros.

3) E destaca-se nessa pressão, antes de tudo, no mercado financeiro, o lucro fácil dos títulos públicos. Claro, emergem outros papéis privados. No quesito ações, um caso engraçado: os investidores compram Petrobrás e Vale do Rio Doce, mas se mostram contra elas, porque essas, agora integrantes do núcleo estratégico do governo, tomam decisões que muitas vezes vão contra o princípio da governança corporativa, que é o princípio do valor acionário. Isso quer dizer que, como as duas empresas fazem parte da estratégia de longo alcance do Brasil, a política de preços da Petrobrás, por exemplo, de combustíveis, impede a distribuição de maiores lucros para os inversores, estrangeiros entre eles. Então, bota ataque contra a companhia de petróleo nacional. Mas é só pra chatear, porque mesmo no discurso, ouve-se que, fazendo uma comparação com as ações das companhias estrangeiras, as da Petrobrás constituem uma grande aplicação. Com essa pequena história, podemos ver que, além de controlar os elementos que fazem funcionar o modelo de acumulação financeira, as ditas finanças tentam por todos os modos impedir, denegrir, diminuir, bloquear se possível, tanto a imagem da Petrobrás e da Vale como a estratégia do longo prazo brasileiro.

4) Esse capital que fustiga, sem nenhuma dúvida, tem uma visão predadora e imediatista da economia. Seu objetivo é mais que evidente: desgastar o poder estratégico dos Estados. O que ele pretende no Brasil, como já disse, se baseia na manutenção da política de elevação da taxa de juros e do forçamento da valorização da moeda brasileira. Pois, é óbvio, é desse espaço que tira e extrai a sua lucratividade. E, assim, a perfídia tem um outro componente: a venda ideológica de que “a poupança” estrangeira é decisiva para o desenvolvimento brasileiro. Essa é sempre a velha balela das finanças. Por quê? Porque um capital que entra no Brasil não necessariamente é um capital que se achega ao setor produtivo, não é um capital que vai florir na produção, normalmente se atira nas facilidades financeiras. Ou seja, na pele de cordeiro esconde-se o javali, aquele bicho que arrasa quarteirões. A chamada “poupança externa” só é valiosa quando se destina ao investimento produtivo. Fora disso, ela é potencialmente destruidora, perigosa, descuidista. E dizer que o capital externo é importante para a economia brasileira só é válido quando aporta recursos para a produção. Fora disso, é capital-gafanhoto, devora o que pode. Olhem a época de FHC, quando essa conversa fiada encheu as páginas dos jornais e de textos de vários economistas. A prova do pudim: a taxa média de crescimento do PIB naquela época foi de 2,2%. Compare, leitor, com os 7,1% do ano passado ou dos 4,5% previstos para 2011.

5) Pois esses cavaleiros andantes do lucro fácil, querem atacar sabe quem? O que eles maldosamente chamam de o “Estado de Bem Estar Brasileiro”, ou seja, desde a política de salário mínimo até a previdência social. E o argumento que sussurram pode se traduzir nessa disjuntiva: ou o Brasil aceita a desindustrialização e mantém o Estado Bem Estar Social, ou o contrário: desenvolve a indústria com a “poupança externa” e desmancha o segundo. Quá, quá, quá, quá! Que disjuntiva mais idiota essa! Basta só lembrar que um capital que entra não necessariamente vai para a produção. Essa gente cria a ilusão de uma economia fantasma, de uma economia delirante, para tentar ludibriar os incautos e se apropriar da dívida brasileira e de propriedades do Estado nacional. Como no tempo de FHC, onde a privatização abiscoitou alguns bens do Estado/povo brasileiro. É, não resta dúvida, o retorno da mesma estratégia dos anos 1990, que hoje estão tentando reaplicar aqui, e que parece que, infelizmente, está se impondo na Grécia. A Grécia precisava dar uma de Argentina!

O BRASIL NO CAMINHO DO LONGO PRAZO

1) Pois, diante disso, existe, por um lado, um esboço de estratégia de longo prazo do Brasil. E se baseia na tríade petróleo, alimentos e matérias primas. Mas cabe, neste ponto, dizer algo importante: o Brasil já está ancorado no longo prazo. Sim, no longo prazo do novo padrão de acumulação da economia mundial. Aquele que vai se instaurar na dinâmica da superação da crise planetária. E por isso, esse ponto futuro já palmilha inclusive as visões de médio termo, que é a fase de transição do atual modelo que está em desmanche para chegar a um outro em processo de construção. Isto quer dizer que o norte do governo Dilma já está dado, já está em andamento, já está em trajetória. O desejável é que o Brasil não fique somente no desenvolvimento da tríade acima falada. Tem que ir além, tem que avançar para um processo de integração nesse novo padrão com um conjunto de indústrias de grande porte, com indústrias participantes das novas tecnologias que estarão vigorando na nova era. Ou seja, há que ter uma política industrial. E uma política de ciência e tecnologia, altamente preocupada com as tecnologias de comunicação e informação, com a nanotecnologia, com as tecnologias da ciência médica, com a biotecnologia, etc. E para isso, tem que enriquecer a sua visão de longo prazo, planejar e estabelecer metas para lá entrar em campo. Urge, portanto, a expansão do planejamento.

2) Para lá chegar e bloquear as doiduras das finanças há que ter estratégia, só que estratégia que permita e parta de um novo pacto social. Claro que tem que ir à mesma direção do governo Lula: impedir que o setor produtivo, por falta de opções, atravesse a estrada tendo como companheiras as instituições financeiras especulativas, como no governo de Fernando Henrique. O que Lula conseguiu foi atrair, via José de Alencar, o setor produtivo para que se afastasse das finanças e se unisse ao setor trabalho, dando força ao PAC, às propostas do Bolsa Família, etc. Pois é esse pacto social de longo prazo que agora está sendo renovado. Dilma está organizando em torno do seu governo, além do setor petróleo, do setor de matérias primas e do agrobusiness, a indústria de construção civil – com programas do “Minha Casa, Minha Vida II” e com os projetos de obras ligadas à Copa e às Olimpíadas, com o projeto de ampliação do mercado interno e de exportação para diversas indústrias, etc.

3) Para que esse pacto se efetive tem que haver a adesão do capital produtivo. E o que precisa esse capital? Está carente de apoio de programas públicos, de financiamentos do BNDES, de incentivos à produtividade, de incentivos à inovação tecnológica, de planejamento de uma política industrial, de uma política de exportação e importação, etc. Mas tem que haver algo imperioso: um pacto social sob o manto do governo que se traduza num acordo amplo entre capital produtivo e trabalho. E um dos pontos chaves está na construção de uma reforma tributária que seja minimamente adequada à competitividade e à lucratividade da produção. Mas é preciso que se inclua nesse pacto social um outro pacto, um pacto federativo que atenda várias questões do capital e do Estado: a repactuação das dívidas dos Estados brasileiros, a eliminação da guerra fiscal, uma solução conveniente para o ICMS, uma boa reforma na questão do fundo de participação dos Estados e Municípios, etc. Ou seja, o governo Dilma, que já estava posicionado para o longo prazo com o triângulo de suas indústrias para base produtiva mundial, agora deve dirigir suas aeronaves para a expansão da economia brasileira com dois pontos: o apoio a empresas que tentem a mundialização, como a Petrobrás e a Vale, e uma política industrial que proporcione empresas competitivas no nosso território com chineses e americanos, e que sejam capazes de atuar no comércio externo com presença significativa.

4) Um dos pontos fundamentais desse modelo é certamente a necessidade de manter a coerência da política pública para os trabalhadores e na erradicação da miséria. Nesse sentido, as políticas de salário mínimo, de crédito popular, do ProUni, do Bolsa Família, etc., acrescidas dos novos programas como Pronatec, do Minha Casa, Minha Vida II, do programa de erradicação da miséria total são indispensáveis para o pacto examinado. Pois vejam os leitores, aqui está um ponto decisivo da luta política. De um lado, ocorre a adesão da classe trabalhadora, mas de outro, permite que o governo Lula-Dilma-PT mantenha a liderança da sociedade, pois nesse ponto estará o potencial eleitoral que poderá assegurar uma continuação de um projeto de poder.

AS FINANÇAS NÃO VÃO MORRER

1) Esses temas assinalam, em termos de prospectiva, dois pontos chaves. Primeiro: uma união do setor produtivo privado (industrial e agrícola), do setor produtivo estatal e do setor financeiro estatal com os trabalhadores, com os deserdados, o que dará força política, econômica e ideológica para manter um pacto razoável, no momento, contra as finanças, sem que as finanças percam, pela força internacional-nacional, rentabilidade. E segundo: a construção de um modelo econômico produtivo para que esse possa bater, em resultados sociais, econômicos, políticos e ideológicos, um modelo de acumulação financeira, onde só as finanças ganham e podem ganhar.

2) Por isso, cabe compreender que todas as futricas e confusões do curto prazo, sejam políticas, econômicas, ideológicas, diplomáticas, etc., etc., do Palocci ao Temer, das variações de posições do PMDB à relação com a mídia, terão que ser resolvidas e avaliadas em função dessa estratégia de longo prazo, que é tudo o que as finanças tentam derrubar. Estamos na trajetória da renovação da sociedade brasileira onde o importante é ganhar a História e não a crônica dos eventos diários.

quinta-feira, junho 23, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
23 de junho de 2011
Coluna das quintas



A EUROPA
DOS CAPITAIS
E DO PODER
Por Enéas de Souza



A Europa, diz Hobsbawm, não vai se desintegrar. Talvez seja verdade. No entanto, vai sofrer como um ser que se debate para fugir do naufrágio e do afogamento. Vivemos uma chuva torrencial sobre a Europa do capital financeiro. Anteontem, o parlamento grego deu um voto de confiança ao primeiro ministro Papandreou e, no mesmo dia, tomou posse Teixeira Páscoaes no cargo de primeiro ministro da nação portuguesa. A crise se mexe. Os dois países estão entre o desastroso e o catastrófico, como resultado de terem escutado as sereias de uma ideologia e efetuado uma prática econômica vendida e orientada pelo neoliberalismo. É preciso perguntar: qual foi a estratégia que os europeus compraram para dar no que deu? A resposta é muito simples: o que eles compraram foi a estratégia básica das finanças, das finanças americanas e européias e que consistia em chamar o expandir da financeirização da Europa de modernização. Esse filme nós já vimos no Brasil, sob a presidência do sempre lembrado Fernando Henrique Cardoso, o popular FHC. Só que na Europa eles compraram uma idéia um tanto mais bonita, mais ornamentada, compraram a idéia de uma Europa da unidade, uma Europa do desenvolvimento, uma Europa da cultura e do poder.

COMO FOI A MODERNIZAÇÃO DAS FINANÇAS

1) Os capitais tinham um projeto e uma manobra inteligente. Era preciso fazer dos Estados Unidos e da Europa um jardim mais florido de novas mercadorias e de muitos títulos financeiros, que rendem dinheiro e maravilhas materiais. No continente europeu, se afigurava fazer um vasto mercado tanto quanto possível único. O sonho dos Estados Unidos da Europa. E não se pode esquecer que essa decisão estava situada dentro do processo de mundialização da economia, embasada em duas premissas: a expansão dos bancos, principalmente americanos, num mercado mundial financeiro, e na estrutura mundial da produção das grandes corporações. Essas duas características permitiram que o capital não só se tornasse internacionalizado, mas mundializado, o que consagrava um avanço na busca de sua valorização. E no barco do sonho da Europa dos capitais, com as finanças saudadas como ‘a maioral’, veio outro sonho, que galvanizou grande parte da população: a união da cultura. A Europa sonhou retomar o primeiro lugar do mundo. Trazer o que os Estados Unidos não tinham: este charme que atravessou a Idade Média, a Idade Moderna e chegou até a segunda guerra mundial. Hoje, os Estados Unidos, se a Europa desse certo, seriam apenas um intervalo no sucesso europeu. E essa idéia seria posta na vitrine de uma ampla renovação do continente. Isso era um sonho profundo dos europeus, incluindo os ingleses, só que esses sempre foram como uma noiva, cobiçada e em dúvida, tinha a mão para um namorado, os Estados Unidos, e os olhos para outro, o continente.

2) Mas o desejo da Europa dos capitais tinha outro componente. As finanças sonhavam longe, mas com restrição. Ambicionavam uma violenta mobilidade do fator capital – olhos gordos para ganhos imensos – e pensavam numa contenção da mobilidade do fator trabalho. Nessa, o ardil dos capitais era mais refinado e cruel, botava fogo na competição entre os trabalhadores, pois os emigrantes árabes, muçulmanos, asiáticos faziam presença para baixar o custo da mão de obra européia. Ou seja, houve um movimento de aceleração do poder de realização do capital. Para tal houve a combinação dos Estados Unidos e da Europa, algo que vinha na “contra-revolução neoliberal” liderada pelo cow-boy Reagan e por Lady Thatcher, a dama de ferro. Combinação nada romântica, tétrica, que, expandindo-se sob o guia americano para novas e novas áreas, adquiriu uma hegemonia decisiva e construiu o capitalismo dos últimos 30 anos. E com a mágica de que a História tinha terminado – na palavra do inolvidável Fukuyama – aconteceu a instalação do predomínio da órbita financeira, pintando, talvez à la Jacson Pollock, um novo colorido do capitalismo do pós-guerra, brindado no fim do século XX com a liquidação do outro sonho, o do comunismo soviético. A Europa dos capitais pegou, então, carona no capitalismo americano.

A EUROPA DAS FINANÇAS

1) Então, as finanças, espertamente, planejaram essa modernização, jogando na Europa o germe de uma cultura renovada. Todavia, no campo econômico o que aconteceu foi o seguinte: em primeiro lugar, os capitais de origem nacional, se permitiram ampliar o espaço da sua concorrência, criando um mercado europeu o mais amplo possível. Com isso, romperam a linha restrita das nações, mas sem o guarda chuva providencial, um Estado europeu. O que significa um projeto de avanço dos capitais. De fato, o que aconteceu foi um aumento do espaço para a competição entre as empresas produtivas e as instituições em geral. Era um passo adiante, não necessariamente para todos, porém certamente para aqueles da Inglaterra, da Alemanha e da França; a Espanha e a Itália entraram no baile a reboque, de smoking emprestado. E isso é fundamental para entender a crise européia. Esse avanço do capital não traz um Estado para a coordenação política e econômica, porque a essência da questão é a autonomia das finanças em relação aos controles públicos. E o espaço da disputa tornou-se uma arena sem regulação.

2) Por isso, os ingleses, querendo manter sua independência e sua privilegiada convivência com os Estados Unidos, aproveitaram o salão de festas, mas não participavam da comunidade. Portanto, a astúcia dos capitais foi manter a flexibilidade de sua ação, de um lado, garantindo a liberdade de expansão no terreno europeu (e também mundial) e, de outro lado, se não tinham a proteção de um Estado europeu, mantinham, para cada um dos capitais, o apoio de seu Estado Nacional. O capital é um bicho frágil, sempre um arbusto que está em busca de ser árvore, e que depende do Estado, como se pode ver neste atual momento. O Estado alemão, o Estado francês, etc., estão tentando dar guarida ao seu capital bancário, ameaçado de insolvência nos mares gregos e na borda de Europa, nas terras portuguesas. É assim também agora, como, aliás, foi assim igualmente na crise de 2007/08. Daí o aforismo: o Estado que, no momento da expansão é posto de lado, é o mesmo que, na hora da crise, salva.

3) A Europa das finanças armou uma institucionalidade à sua feição. Como é que foi o esquema? Após eliminarem o estorvo de um Estado para a Europa, o objetivo era dar impulso a uma dinâmica que assegurasse o processo de predomínio da valorização do financeiro, estabelecendo uma moeda unitária – o euro – e oferecendo a possibilidade de fixar uma taxa de juros básica no nível europeu. Algo muito confortável às finanças da velha Europa. E o problema importante, para a competição das finanças européias, era sempre ter um juro acima dos Estados Unidos. A Europa para os capitais europeus. E aí surgiu o Banco Central Europeu, que, além de garantir o controle da moeda, teve uma tarefa notoriamente decisiva: fixar o juro adequado para o dinamismo do continente. Dinamismo das finanças européias, é claro, antes de tudo. E nessa base, tivemos a finura e a fraqueza dessa economia. Para começar, uma arma poderosa, uma moeda e a uniformização da taxa básica de juros. Para completar, o Tesouro de cada nação sustentava a função de reserva de valor do padrão monetário e assegurava o endividamento dos Estados individualmente. Ou seja, a moeda era européia, mas os títulos públicos de cada país. Uma bomba que, na crise financeira do pós 2007/2008, caiu no colo de Portugal, da Grécia, da Irlanda

4) Ora, não havendo Estado europeu, as dívidas nacionais e as finanças públicas dos Estados ficavam sob controle nacional, fora da alçada direta do controle da Europa, porque a Europa era e é uma união sem cabeça, não tinha e não tem Estado. É verdade que a União Européia fixou um déficit fiscal de 3% do PIB para cada país, de tal maneira que dava a ilusão de uma vigilância mínima. Na crise de 2007/08 já se viu a carência da falta de um Estado único. E agora, no prosseguimento, as crises que estalaram, puseram em cheque todo o continente e, por extensão, até os Estados Unidos. Daí a preocupação de Thymoty Geithner com a evolução do drama. Todo o engenho do roteirista é evitar que se chegue às cenas do clímax. Assim, o crescimento da Europa dos capitais está detonando o avanço da Europa das nações. Os Estados vão sempre puxados pela locomotiva do capital, para o céu ou para o inferno, já que o Capital tem a alma geminada, é servo de Deus e do Diabo. E agora está com o demônio no corpo!

A CRISE ENROLA ESTADOS E BANCOS NA MESMA
JOGADA

Então, a perfídia. A orgia financeira foi intensa, porque a especulação financeira que trouxe a crise de 2007/08 provocou a necessidade de, em primeiro lugar, salvar os bancos e, em segundo, salvar alguns Estados com dívidas hiperbólicas. Isso quer dizer que, para preservar os bancos, os Estados tiveram que pôr os seus recursos e, todavia, Estados menores, muitos, tiveram que se endividar com bancos mais poderosos de outros países. Mas a cadeia não pára aí. Os bancos dos Estados maiores, já envolvidos nas absurdas curvas das rótulas financeiras, com quantidade de títulos podres nos seus balanços, acorriam com olho gordo, mas com a proteção dos Estados maiores, para aportar dinheiro a entidades financeiras desses Estados menores. Só que título podre é viral, força a contaminação de tudo e de todos. Daí há algo de podre na Dinamarca. Oh! Senhor, os anjos passaram de anjos do bem para anjos de cara suja. E tudo indica que se encaminham para morrer abraçados, bancos e Estados menores, bancos e Estados maiores. O circuito financeiro enlaçando Estados e capitais deixou de ser virtuoso, mergulhou na classe do vicioso. E sempre o mesmo equívoco: quando a economia cresce, tudo é possível de dar certo. Mas quando a crise desata o seu odor, ela afeta, abala, tortura, desampara e se esparrama por toda parte. E, no sistema capitalista, o centro é a concorrência dos Estados e a concorrência dos capitais. Então, nesse momento, estamos num processo de feroz adversidade de todos contra todos, capitais e Estados. O terror chama-se “salve-se quem puder”. E o pior é que se fugirem o bicho pega, se ficarem o bicho come. Nhact!

AS DIMENSÕES DA CRISE

1) Mas a crise dos capitais e dos Estados mostra um nível da questão. Mas há outro, a realidade da mão de obra. E aí a coisa está explodindo, feia, abrupta, uma faca cortando a vida, os salários, os direitos, os serviços sociais dos trabalhadores e dos desempregados. Tão querendo pô-los como o bode expiatório da questão. “Toma que a crise é tua”, essa crise deformada e retorcida. Pois é o movimento que os capitais e os governos solidários com esses, impõe: quem paga a conta é quem tem menos. Ou seja, a financeirização é um revolver engatilhado, um 38 na cara da população. Vejam-se os movimentos de rua na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na França, etc. Uma inquietação sacode a Europa. Até agora é um tapa, daqui a pouco será uma surra, mais adiante o 38 vai disparar. Porque uma crise financeira e uma crise fiscal conjugadas fazem desabar e desqualificam tanto capitais como Estados, mas demolem e destroem as perspectivas dos trabalhadores.

2) Está hoje em marcha, na Europa, um processo de desestruturação da economia. E, não há como negar, no atual jogo de forças, não se vê uma saída favorável à produção e ao emprego para que se possa aumentar a demanda visando criar lucros, e lucros chamando mais investimentos e mais empregos para proporcionar receitas para os Estados pagarem as suas dívidas. E com isso propor uma ascensão da economia. Essa não é, definitivamente, a solução dos credores, ou pagamentos imediatos ou saque dos Estados à beira da bancarrota. Daí a busca de emplacar uma política de eliminações de gastos, de redução de salários, de eliminação das aposentadorias e de aumento de impostos à população, de venda de empresas públicas e de paralisia das atividades econômicas. Esse conjunto de medidas, na verdade, não retoma a atividade econômica, não é ajuda, é assalto. E depredação dos concorrentes, pois essas medidas levam a eliminação de capitais mais fracos. Trata-se de uma concorrência predadora. E leva a diminuição de poder de Estados. É seguramente um assalto ao patrimônio e aos recursos de um país e, consequentemente, mina e ameaça o poder público de outro Estado. Ou seja, a hierarquia das forças na Europa se modificaria em detrimento de Estados e nações, de capitais e de trabalhadores e da população de países como Portugal, Grécia, Irlanda, Islândia, Espanha, pelo menos. E mais, dependendo do poder dentro desses países, os perdedores ainda poderiam ceder muito mais. Dessa forma, olhando além das aparências, a gente vê que o neoliberalismo tem mostrado o que é: uma baita distribuição de riqueza e de poder para cima. Força-se o endividamento para tornar as empresas e os Estados prisioneiros econômicos e políticos.

3) Estamos, então, às vésperas de uma metamorfose das posições dos atores. Isto quer dizer que as crises são sempre um processo de concentração e centralização de capital e de concentração e centralização de poder dos Estados mais fortes. Enquanto isso ocorre, a população tenta reagir, tenta por nas ruas e nas praças a reclamação e o poder de aglutinação das massas. Tudo é muito difícil porque a oposição ao capital não tem nem uma ideologia que aponte para uma utopia à vista, nem para novas idéias que aglutinem o movimento de ocupação de um espaço político de poder. Estão todos contra as medidas tomadas, mas não tem uma ação forte e contundente, nem unitária e agressiva. E ser somente contra e não ter estratégia talvez não leve muito longe. Mesmo porque, o que a gente está vendo é que o desgosto da população está empurrando a política para a direita na maioria dos Estados. Todavia, só estar em movimento já modifica o quadro, principalmente porque a negação é o ponto de partida de uma resistência, de uma modificação, da criação de idéias, sentimentos e outras propostas para a condução do problema. Mas a lógica da transformação não derrotou a lógica da destruição.

quinta-feira, junho 16, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
16 de junho de 2011
Coluna das quintas


DUELO DE TITÃS –
ESTADOS UNIDOS E CHINA
Por Enéas de Souza


Estamos numa época de transição, a economia americana, em declínio, está e vai se confrontar, cada vez mais, politicamente com a China, cuja economia produtiva e financeira se desenvolve em viagem fascinante. E o que está fazendo a diferença nesse momento no conflito é a posição dos dois Estados face à estratégia para definir a sociedade econômica de cada nação, para definir as formas de encarar o confronto social, para definir o futuro do capitalismo. De um lado, temos um Estado frágil na condução da política econômica, mas extremamente benevolente para os capitais, o Estado americano, e, de outro, um Estado que comanda e dirige a economia com características desenvolvimentistas, o Estado chinês. Qual a diferença estratégica dos dois?

A DANÇA DA MORTE E O CASSINO AMERICANO

No primeiro caso, nós temos um país, os Estados Unidos, cuja estratégia é continuar sendo a nação mais desenvolvida do mundo. Só que essa estratégia começa com duas realidades. A primeira: politicamente, para manter a posição de vanguarda, o país assume o estatuto de potência dominante, agressiva e invasora no plano militar, como, por exemplo, ocorreu na guerra do Iraque. Nela, o que sobressai é a amplitude da ação bélica para atingir a sua política energética, cujo objetivo, ouro negro em ebulição, é conservar intactas as suas reservas e buscar petróleo barato no exterior. Ora, o Estado americano proclamou sua unilateralidade com George Bush e praticou a dança da morte, como diria Pieter Brueghel, no Oriente Médio. Mas, de outro lado, a segunda realidade: esse Estado desarticulou da sua estratégia uma política econômica global, que tivesse objetivos de política industrial, de política agrícola, de política tecnológica, de política de salário, etc. Restou apenas um apoio genérico às finanças, deixando as instituições financeiras livres para fazerem a sua própria política. Jogou fora essa política global como se fosse uma viatura descabelada, tornou os seus movimentos erráticos, com espasmos originados dos capitais singulares. Dito de outra forma, foi a soma de decisões micro que constituiu a política macroeconômica.

Com isso, abdicaram os norte-americanos de um projeto de desenvolvimento produtivo renovado tecnologicamente, para centrar todas as suas armas numa economia financeira. Depois de viverem as delícias de um cassino – todos especulavam desvairadamente – levaram um tombo por causa dessa insanidade econômica. Estiveram no paraíso e caíram no labirinto da crise. E para chegar a tal situação, alimentaram um processo de desregulamentação na área financeira que favoreceu com intensidade a árvore das finanças, mas que terminou precipitando a economia para o risco sistêmico e, portanto, para a sua explosão. Uma desbragada vertigem sem controle. Ou seja, o Estado americano fez uma cisão na sua estratégia de manter a hegemonia mundial. De um lado, jogou fortemente numa ação militar e de outro lado, permitiu a expansão de um modelo de acumulação financeira. A riqueza fictícia das finanças seguiu numa trajetória, a ficção da guerra ao terror noutra. Aquela levou a desconfiança do valor dos títulos financeiros e essa trouxe o combate doloroso do equívoco estratégico. Foram processos distintos, mas, no fim, a busca da riqueza petrolífera pela guerra, escondida na expansão da “democracia e livre mercado”, capotou tanto quanto a tremenda paralisia do sistema financeiro.

O Estado americano hoje está em face de uma decrepitude desenvolta. De um lado, as finanças, abatidas no galope econômico, não cederam politicamente, ganharam pacotes de salvação, linhas de crédito e não aceitaram uma regulação de suas atividades. De outro, o fracasso da estratégia de Bush e Cheney para o mundo, concentrada exemplarmente no Iraque, tem que sofrer mudanças substanciais, seja reformulando a política do Oriente Médio, seja se posicionando militar e economicamente contra a China, inclusive aliando-se à Rússia, seja buscando chegar-se ao petróleo brasileiro e recuperar a sua influência na América Latina, seja produzindo uma nova relação com a Europa, etc. O grave problema é que os Estados Unidos não têm hoje uma estratégia econômica de longo prazo. Sua progressiva ação na direção de um padrão tecnológico distinto do atual está totalmente impedida por falta de uma política de desenvolvimento econômico, pela recusa das finanças em financiar o setor produtivo, pela concentração total dessas atividades no curto prazo. Vendo isso é que Obama está tentando emplacar uma espécie de Banco Nacional de Desenvolvimento (uma grande novidade) para fazer face à falta de crédito para a produção e para a renovação da tecnologia. Só que isso tem que passar pelo Congresso, tambor das contradições sociais, avesso a qualquer aumento de dívida, seja com que finalidade for. Percebe-se com clareza que o Estado americano é um ser amarrado, atado pelas finanças, pela política imediatista, pela política bélica, pela derrota na guerra iraquiana. A institucionalização neoliberal fracassou, o defunto morreu, mas não foi enterrado, está ali no caixão. Acho que é fatal, mais dia, menos dia, o Estado americano vai ter que reagir à presença avassaladora da China, alterando inclusive o estatuto do seu Estado. Ele vai ter que ter nova estratégia e uma nova posição na política econômica que não se reduza ao agora, ao já das finanças. Para ultrapassar o nível atual de fragmentação de seu projeto de continuar como a maior potência do planeta, os Estados Unidos precisam construir o que lhe falta, a unidade do Estado, que o sistema financeiro e a ação militar em desarmonia impediram que tal acontecesse.

O LONGO PRAZO FALA CHINÊS?

A China, por sua vez, está na liderança da organização do Estado pois, com modelo de um Estado desenvolvimentista, ela tem uma estratégia, não explícita, mas nem por isso secreta, de consagrar-se num futuro não muito distante como a primeira potência do mundo. Portanto, uma estratégia política, que se desdobra numa política econômica. Essa, desde logo, é global, pois tem um objetivo econômico muito claro de superar a defasagem que a economia chinesa tem da economia americana. E a China vai com passos de longo alcance construindo um projeto produtivo, onde, antes de tudo, labora em todos os setores: bens de capital, bens de consumo duráveis, bens de consumo não duráveis, visando ser a locomotiva industrial do mundo. E para tal, busca aquilo que lhe falta, matérias primas e alimentos na Ásia e na América Latina e África, tecnologia nos Estados Unidos, Japão e Europa. Trabalha ardorosamente para solucionar seus problemas energéticos. Mas, nos próximos anos não terá a possibilidade de alcançar as condições de alterar o padrão de produção e o seu grau tecnológico. Só que, se os Estados Unidos bobearem, dentro de alguns anos, a China, no correr de seu desenvolvimento, estará na rota da expansão das áreas de tecnologias de comunicação e informação. Toda a questão nesse quesito é a possibilidade ou não dos chineses encurtarem ou suprimirem a vantagem americana na estrutura tecnológica.

Assim, o que importa nesse panorama é a idéia de que a China tem dado um salto na velocidade do avanço na competição entre os dois países, porque o seu Estado tem um acentuado domínio da estratégia política e econômica. A China tem uma unidade no Estado e, por conseqüência, a política dirige a economia. E é por isso que ela, a China, pode, contra a tirania do mercado, controlar a taxa de câmbio e os fluxos de capitais. É por isso que ela pode trabalhar uma política de exportação e de importação. É por isso que ela pode desenvolver uma política coerente de reservas monetárias. É por isso que pode construir uma política de investimentos na seqüência dos ditames de sua organização macroeconômica. E, não se pode esquecer, que mesmo diante da crise de 2007, com efeitos profundos sobre o comércio externo e as reservas e suas aplicações financeiras no exterior, a China pôde introduzir modificações na sua estrutura econômica reorganizando o seu próprio espaço produtivo e articulando a Ásia, a África e a América Latina. Tudo em função de uma estratégia e de uma política de desenvolvimento garantida pela unidade do Estado. Há todo um jardim para ser florido. Claro, as mudanças ocorridas no contexto da crise causaram algumas inquietações sociais no país, mas o governo teve força para solucionar essas turbulências, em função de uma saída ordenada da derrapagem cíclica. A razão, não há dúvida, é só uma: a unidade do Estado.

O Estado chinês tem o controle da situação nacional, dos seus objetivos, dos seus recursos e dos seus limites. Tem bem claro que não pode enfrentar os Estados Unidos no campo militar, no campo político, no campo cultural, no campo tecnológico, mas no campo da indústria, da organização do Estado, do planejamento, da coesão estratégica, ele tem um futuro prontamente desafiador. E, sobretudo, a China tem claro que pode por em questão a moeda americana e que pode, no médio prazo, construir uma moeda chinesa, rival do dólar e do euro. Ao mesmo tempo, ela sabe do seu fantástico potencial de mercado e das condições de alcançar transformações tecnológicas profundas no longo prazo, por causa do seu desenvolvimento educacional. E ela tem expectativas de obter padrões ambientais razoáveis no médio prazo, na procura de uma sociedade com melhores condições de vida que no presente. E a razão essencial de toda essa ambição está na organização de um Estado unitário. E ao dinamizar o seu capitalismo financeiro estatal – que atenta tanto para o crédito interno à produção, como para a concorrência financeira internacional – a China tem vantagens dinâmicas na sua elasticidade econômica, quanto na concorrência política entre nações, liderando o bloco dos emergentes. E até se destacando dele, para se posicionar como o futuro rival dos americanos.

O FUTURO DO CONFLITO PASSA POR ONDE?

Se o leitor seguiu o raciocínio proposto por este artigo, ele é capaz de construir o filme dos próximos anos, o duelo de Titãs. E nesse duelo, nós vamos ter a disputa da hegemonia no interior do capitalismo. É preciso reconhecer que o capitalismo não pode viver sem Estado. E é exatamente isso que já tem a China, um Estado que tem uma coerência e unidade entre a estratégia e a política econômica. Porém, no campo político a China vai ter que ter muita habilidade para evitar um confronto direto com os Estados Unidos, cuja superioridade militar é indiscutível. Só que, em função da unidade do Estado, a China leva uma vantagem notável, porque a sua sociedade não está paralisada, está em processo dinâmico. E hoje os chineses estão jogando com segurança, porque o balanço de seus pontos positivos e de seus pontos negativos permite que eles saibam aonde vai o céu azul e onde estão as labaredas da fogueira. E mais, com a crise chegando a pontos dramáticos, a recessão e a depressão se encaminhando para tomar a respiração do Ocidente, a China está proporcionando o modelo para que os diversos Estados possam reagir diante da crise, fortalecendo a sua ação.

Por incrível que pareça, até o momento, a crise ainda não atingiu aquele ponto onde os conflitos dos capitais e das nações chegaram a desestruturar a economia e a política. Alguns Estados – os menores é verdade, como a Grécia, Portugal e a Irlanda – já estão nesse caminho. Mas a solução, por enquanto, tem sido neoliberal. E duvido que ela resolva a questão, a não ser rebaixando e remodelando os países dentro do atual sistema de dominação. Então, nessa coisa do futuro, o que parece surgir no horizonte histórico é a passagem da unipolaridade americana para a bipolaridade China e Estados Unidos. E nela, a questão decisiva tem tudo a ver com o papel do Estado em todas as suas dimensões, desde o projeto estratégico até a constituição das estruturas da entidade estatal e da reorganização de sua burocracia. O combate está no tabuleiro do xadrez. E nele a disputa se alargará, a tensão Estados Unidos e China vai compor a harmonia e a discórdia da adversidade básica, que ordenará o alinhamento/desalinhamento dos demais Estados, incluindo o Brasil. A constelação política terá uma organização em função dessa contenda básica. Do contraste cada vez mais forte entre as duas grandes potências e do papel do Estado é que dependerá a composição do elenco hierárquico das demais potências e nações. O conflito elementar está se deslocando, até mesmo imperceptivelmente, só que de modo firme. A longa duração do capitalismo, na sua força ainda não desmentida, já principia a dispor o movimento dos atores na direção de uma futura mudança estrutural. O que vai trocar é o conflito que organiza a política, ao mesmo tempo em que esse contexto permitirá o surgimento de um novo padrão econômico, uma nova “Golden Era”, como diz Carlota Pérez. O bafo na nuca, no entanto, é a recessão que se avizinha. E a pergunta é óbvia: será criativo ou destrutivo esse conflito que está se instalando? A saída, cujo corpo está escondido, tem um olho e uma face que proclama mais capitalismo, mas, de qualquer maneira, com mais Estado e com uma outra relação entre as finanças e a produção.

sábado, junho 11, 2011

quinta-feira, junho 09, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
09 de junho 2011
Coluna das quintas


UM FRIO NA ESPINHA:
A GRANDE DEPRESSÃO
Por Enéas de Souza
GRANDE DEPRESSÃO À VISTA?


Vários economistas americanos falam disso. Já tratávamos dela, meu amigo André e eu, desde 2007. Na verdade, a história se passa assim: a crise financeira e a crise produtiva vieram ao mundo juntas; depois, tivemos a salvação das finanças que encaminharam o Estado para um déficit fiscal vigoroso. E, simultaneamente, houve a negação da aplicação de uma política keynesiana de gastos ou programas governamentais para salvar igualmente as indústrias. Como um lutador de peso pesado, o referido Estado deu um “knock down” na produção. Desse processo, uma dívida pública crescente pôs o nariz de fora, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Só que alguns Estados atingiram o que se chama de insolvência. O que está levando a economia à uma forte depressão. Assim de uma chuva miúda que molha, entramos num temporal que inunda. E, estamos ouvindo, há alerta de tsunami. Naturalmente que a crise se prolonga porque a economia líder dos Estados Unidos diminuiu a sua dinâmica financeira, já que a crise represou a elasticidade da lucratividade das finanças. E também porque, simplesmente, já não funcionam mais os seus produtos, a sinergia de suas aplicações, a confiança nos seus mercados, etc. Os investidores financeiros em Nova Iorque, Londres e na Europa estão em ritmo mais lento. Então, o caminho das finanças é tentar a saída pelos mercados emergentes, visando sempre o objetivo especulativo e predatório, como fazem nas commodities, do petróleo aos alimentos, e igualmente nas especulações com títulos financeiros e públicos.


Portanto, a tão famosa e falada idéia de que salvando os bancos – dando crédito a eles, permitindo que tomem dinheiro no FED, como acontece nos Estados Unidos – eles iriam fornecer crédito à economia produtiva, isto é, uma concepção ideológica, falsamente real, impossível de ocorrer. Tem o sabor de pensamento mágico, em todo caso. E as finanças, isso é sabido desde sempre, correm atrás de especulação e não de tomadores de empréstimos para a produção. Portanto, os mercados financeiros estão dando resultados medíocres e a indústria não consegue funcionar na direção de um novo padrão produtivo, com investimento e emprego. O que temos é uma indústria velha, que desenvolve a produtividade, mas não traz novos postos de trabalho. De concreto, a liderança das finanças está paralisada, a produção até cresce, mas não se reinventa, ao mesmo tempo que o desemprego é a tônica no universo dos trabalhadores.


POLITICA ECONÔMICA DESORDENADA

As coisas começam nos Estados Unidos. Lá, o Estado já principia como maçã cortada ao meio por uma faca. De um lado, o Executivo e, de outro, o FED. Ou seja, o Banco Central é colocado fora do Executivo. É um órgão do Estado, mas fora da política do Governo. E essa decisão da história do capitalismo no Ocidente é chamada elegantemente de independência do órgão monetário e financeiro público diante do Executivo, com a desculpa de que as coisas são assim para não prejudicar o funcionamento da economia. Então, o princípio de tudo está aí, a fidelidade do FED, que não é ao governo, ao Estado, mas também não é à população. Ela é, sim, às finanças. O que significa um poderoso bloqueio na ação política de qualquer administração estatal.


E agora essa regra está nas vísceras do governo Obama. E com intensa robutez, pois mostra que a política do Estado fica cindida entre uma política para o setor financeiro e uma política para o resto da sociedade. Por essa razão, a salvação dos bancos não levou as instituições bancárias a terem praticamente nenhum compromisso com o Estado – muito menos com os desempregados e com a população. Seus únicos compromissos, altamente beneficiados e favorecidos, foram os financeiros com o FED e o Tesouro. Claro, foi uma ajuda estatal, com dinheiro da sociedade, dos contribuintes. E por absurdo que seja, em troca, não houve maior modificação dos seus hábitos. Ou seja, nenhum acréscimo substantivo da regulação, alguns pequenos requerimentos a mais de capital, nenhuma alteração ou restrição aos produtos (sobretudo os CDS), nenhuma restrição ou punição ou regulamento para as terroristas agências de ratings, etc. E tudo apenas com cláusula de pagamento do crédito privilegiado. Ou seja, nenhum compromisso com a nação.


(Enquanto isso, o desemprego continua com taxa de 9%!)


Se olharmos bem, não existe política econômica nos Estados Unidos. O que existe é uma política econômica reduzida, uma política econômica centrada nas finanças. Isto quer dizer uma política econômica parcial, forçada a ser apenas uma política monetário-financeira–fiscal. E com o pulo do gato explícito. Ela já é política cambial, porque o dólar, além de ser moeda de uma nação, se efetivou como moeda de reserva de valor para o mundo. Nesse sentido, para constituí-lo como moeda financeira, as finanças e o Estado, possuem os dois elementos necessários para essa existência. O Banco Central, que emite o dinheiro e define a taxa de juros básica do mercado e o Tesouro, que garante, via títulos do próprio Estado, a sustentação do valor dessa reserva. O resto da política macroeconômica, como a política industrial, a política agrícola, a política salarial, a política científica e tecnológica, etc. são produzidas no nível micro, pois são as empresas que a realizam. Fica claro então, que o Estado abdica, por imposição das finanças, de uma política macroeconômica global.


OS ÍNDIOS CERCAM A CARAVANA


Assim, a macroeconomia é simplesmente política monetária, financeira e fiscal. Então, o sol ilumina. O FED e o Treasury, sobretudo ficando em mãos de gente do sistema financeiro ou de seus aliados, tornam-se dois órgãos que controlam o Estado e, por tabela, a sociedade. O embrulho tem destino e benefício: as finanças. Dando mais um passo e olhando agora para o horizonte próximo, algo se faz realidade no momento, o Estado americano só avança com as decisões do Legislativo, que fica pressionado pela volumosa presença dos lobbies entre os democratas e republicanos. Deus, então, que abençoe os consumidores, os desempregados e a população, porque as finanças não precisam de Deus, já tem o Tesouro, o Banco Central e os lobbies. E, com efeito, vê-se um presidente que, além de estar cercado pelo setor financeiro, tem seu aperto agrandado pelo parlamento.


E isso se amplia no caso de Obama pelas limitações do primeiro mandato. Dizendo cruamente, hoje a sua preocupação imediata como político é reeleger-se. E para reforçar a idéia de que o atual perigo de queda da economia e do governo Obama é uma ameaça real, os republicanos optaram por uma proposta de limitação da dívida nacional ao redor de 14 trilhões de dólares. O Estado vai parar. Ah! É verdade, com essa manobra uma corrente de ferro amarra o presidente dos Estados Unidos, cujo corpo já está todo varado de flechas. Os índios republicanos, machadinha na mão, já estão enxergando a perspectiva de uma vitória na terra da Disneylândia. O que nos permite indagar: os americanos vão se posicionar ainda mais à direita?


A VOLTA DA ESPECULAÇÃO BANDIDA


Então, veja o enredo do filme que está em cartaz: a dinâmica econômica ficou paralisada por causa da estrutura do Estado e as decisões de política monetária, financeira e fiscal só favorecem aos financistas, enquanto uma nova estrutura econômica está barrada para um novo caminho. Pois o centro de uma economia expansiva é o investimento. E numa economia que precisa mudar o seu padrão produtivo, as inversões em indústrias com novos paradigmas tecnológicos funcionam como a mais nova alavanca de Arquimedes. E, por resíduo, ainda ajudam a puxar inúmeras inovações em todo o sistema produtivo. Como vimos, o Estado americano só tem política macro apenas para a moeda, para as finanças privadas e para as finanças públicas. O centro institucional para as duas primeiras é o FED. E o FED resolveu nos últimos tempos aumentar a liquidez dos bancos, visando com ela que o crédito seja aplicado e redistribuído à produção. Isso favoreceria as instituições financeiras e fertilizaria as indústrias. Agora, pensem um pouco. Onde é que os bancos vão botar esse dinheiro ganho à custa de taxas negativas de juros? Quem disser crédito à produção leva um esculacho, um croque na cabeça. É claro que eles vão tocar esse dinheiro na especulação, vão mandar para o Brasil, vão mandar para a Índia, vão mandar para outros mercados emergentes. E aqui, no país tropical, com as atuais e apetitosas taxas Selic, os capitais financeiros arriscam acrescentar de maneira fabulosa números positivos nas suas rendas. Pode até essa chegada de recursos estrangeiros, no primeiro momento, ajudar a “bombar” as atividades econômicas. É certo, no entanto, que numa próxima crise, num caso de déficit nas transações correntes, por exemplo, esses capitais vão afetar e intimidar e ameaçar tanto a economia como as contas do país.


BLOQUEIO À TRANSIÇÃO PRODUTIVA


Bom, e se não há crédito para a produção, é lógico que o investimento não vai se expandir. E, se botar na roda o Estado americano, a gente vê que ele está amarrado, bloqueado, sem condições econômicas e ideológicas para intervir na economia. Planos de mudança da estrutura da produção, nem pensar. Está quieto, amordaçado, fruta apodrecida, mas é preciso ver bem: a produção também entrou em crise em 2007, o paradigma modelado pelo petróleo e os automóveis entrou em falência. Obama tinha um plano bem jeitoso. Regular as finanças; desenvolver novas energias, nuclear e biocombustível, principalmente; buscar a metamorfose industrial através das novas tecnologias de comunicação e informação. E com isso, passar a liderança do capital novamente ao setor produtivo e colocar as finanças a serviço da produção e da sociedade. Mas as finanças se insurgiram, bateram pé e não concordaram. Embolsaram a grana dos pacotes de salvação (os bailouts) e pegaram a liquidez que está passando atualmente, liberada pelo FED. Primeiro, para se equilibrarem economicamente; depois, para buscar novos resultados na exportação de capital especulativo. Portanto, gesto regressivo, bloquearam a reformulação produtiva de todos os jeitos. Ou seja, não perderam nem o capital, nem o comando político. Dessa forma, a economia americana teve freada a dinâmica da transição. É preciso considerar que estamos falando da passagem de uma dinâmica de um padrão para outro. E não de alteração de taxa de crescimento. O importante neste momento não é que a economia cresça por crescer. O importante é que o crescimento esteja dentro de um movimento econômico que se dirija à construção de um novo paradigma. Arquitetura base para o estabelecimento de uma nova relação entre setor financeiro e setor produtivo, bem como uma nova relação entre o capital e o Estado.


O RESUMO DA ÓPERA


Pois vejam aonde foi dar o movimento atual do capital financeiro. Crise das finanças deu origem à salvação desses capitais com a presença do Estado, que entrou firme numa crise fiscal. E aí foi toda uma estrutura institucional que enferrujou, que explodiu e se tornou perigosamente adversa à sociedade. Trata-se de ver que isso envolve USA e Europa. E na Europa, já se viu, o osso está exposto nos braços e nas pernas da Grécia, da Irlanda, da Islândia, de Portugal. O desastre se alastra e está na veia da Espanha, ameaça o corpo da Itália. E se esse trânsito, gasolina chamando fogo, não for contido, a flama se aproxima da Inglaterra e, se chega na Inglaterra, atinge de volta os Estados Unidos.


A crise produtiva, sem uma política própria e sem novos apoios do Estado, se amplia. Mas agora com dois aspectos. Um já vimos: o aprisionamento do Estado pelas finanças; o outro, é a paralisia da indústria, sem espaço para avançar tecnologicamente e sem capacidade de concorrência com a China. E a China vai afetando a economia ocidental fortemente. E reparem como a China está bem. Pois com a ameaça de diminuição do crescimento chinês, esse dado reverte sobre os todos os países, mas principalmente sobre os Estados Unidos. Com isso, se mostra o labirinto que está a saída da economia americana e européia do buraco da crise de 2007.


SÓ A POLÍTICA SALVA


Falta falar da inflação resultante da recente política monetária do FED. Dela, Krugman diz: não me interessam os outros paises, eles que se virem, o que importa é aumentar o nível inflacionário americano de 2 para 4%. Aí teremos o financiamento da economia produtiva, aumentando o PIB industrial e fazendo crescer o emprego. Mas o que está ocorrendo é que a indústria cresce e o emprego não. Esse keynesianismo de liquidez bancária não pode dar certo. Dá especulação, dá diminuição de poder monetário da moeda americana, dá fuga do dólar, dá queda do investimento, dá queda do consumo, dá desordem internacional. Então, se começa a temer por um desdobramento da crise econômica. O blog “Naked Capitalism” realimenta a idéia de que a Grande Depressão já está inscrita no horizonte econômico desde o fim do ano passado. É claro que é preciso pensar que o capitalismo tem sido capaz de gerir essa crise, mesmo que alquebradamente, já que os contrapesos inventados por ele são diversos. Só que, desde 2007, a economia está pendurada no trapézio, cai não cai. E a hegemonia política das finanças sobre o Estado não levou a nenhuma reformulação da economia. Porque as finanças só pensam no curto prazo, para não dizer no curtíssimo, os lucros de hoje. Amanhã, já é longo prazo. E o mais interessante é que as finanças, na sua hegemonia social, têm um domínio absoluto também sobre os demais capitais, sejam produtivos, comerciais ou de serviço. E singularmente não os levam em conta, salvo como aplicadores no seu sistema. E aqui o decisivo: as finanças não têm projeto para a economia. Esperam manter tudo como está. Talvez fiquem um pouco preocupadas quando a atividade dos negócios diminui, mas nada capaz de esquentar muito a cabeça. Já foram longe demais. Retornamos, para encerrar o assunto, ao princípio do artigo: crise financeira, crise produtiva, crise fiscal. E a espantosa verdade: os países estão profundamente endividados. E essa dívida do Estado é com os próprios bancos, por isso, se os Estados caírem, caem os capitais. É aqui que começa o frio na espinha. Esperamos que o filme não seja o “The river of no return”. Dito de outra maneira: tudo navega na incerteza ou no fio da faca amolada. Só a política salva, mas só aquela que favorece a mudança do padrão produtivo e regula o setor financeiro.

quinta-feira, junho 02, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
02 de junho de 2011
Coluna das quintas


DILMA NA PASSAGEM
DE HAMLET À ANTIGONA
Por Enéas de Souza



1) O caso Palocci trouxe a evidência de algo novo, trouxe ao campo político a revelação de uma situação complexa e diferente. Até Dilma, todo presidente da República na redemocratização vinha de uma carreira política. Na verdade, um chefe de corrente política, mesmo que viesse de uma agremiação minoritária como Fernando Collor. E Collor tinha um bom itinerário político. Não é que Dilma não seja política, mostrou esse traço na sua atividade de militância contra a ditadura, mostrou na sua presença no PDT e depois no PT. Mostraram também os seus múltiplos cargos: secretária municipal, secretária estadual, ministra de Estado. Todos esses aspectos fazem parte de um percurso na área, Dilma não é uma flor de estufa. O que é indispensável considerar é que a Dilma não era e nem é um chefe partidário. Nunca teve embates de prefeito ou governador, nem postulou nenhuma candidatura parlamentar. Jamais tinha concorrido a eleições majoritárias. Teve sim comando de área estatal: Fazenda, Energia, Casa Civil. Lógico que esses traços de atuação administrativa têm uma face política; configuram um dado importante e contribuem para o problema que ela está enfrentando – que está enfrentando e que terá de enfrentar decisivamente. Não há como negar, Dilma é uma personalidade política de alta envergadura, mas que fazia parte – e parte fundamental – da equipe do Lula. Não carrega, portanto, atrás de si um dossiê de liderança partidária. Dado o seu absoluto e invulgar talento de técnica-política na esfera da administração, culminou como um quadro de Joseph Beuys ou de Francis Bacon na primeira linha da sua arte; e foi guindada à postulação do cargo de presidente da República. Contra o experiente Serra, se saiu com rara felicidade. Um ano antes parecia aos tucanos e até aos petistas, sonho de uma noite de verão, impossível de acontecer. A derrota do aparente puro sangue paulista não parecia, àquela altura, fazer parte dos resultados do páreo.

2) Dilma experimentou as doçuras e as agruras da campanha presidencial. Depois de ter sido ajudada por Lula a ser conhecida pelo povo, jogou com firmeza, astúcia, independência e precisão na disputa com o PSDB. Só que, agora, no desempenho do governo, não tem na sua bolsa a experiência do árduo jogo do político profissional, cujo objetivo é a tomada do poder e desenvolvimento da sua liderança política e social. Pois decorridos cinco meses de seu mandato, Dilma está lançada diante dessa realidade febril, a sua inexperiência nas aventuras, ciladas, adesões, traições, chantagens e invenções da luta política. Exatamente por sua carência na arte do jogo das grandes figuras, das grandes raposas, dos cachorros grandes. E aí é que o lulismo e o dilmismo estão enfrentando uma potente adversidade. Um pouco como as pessoas têm de encarar o mundo quando um dia de sol se transforma em temporal. Há que fazer algo para não se molhar, para chegar ao seu objetivo, ao seu destino. Pois a verdade é essa: Dilma tem poder, a nação a respeita como presidenta legítima, contudo ela não tem experiência do jogo em pauta. Não tem um grupo político e social sob o seu inteiro comando. Fez e faz parte de um determinado setor partidário. Ganhou o bilhete aéreo para o confronto republicano, mas ainda não é a chefe de uma facção ou de uma corrente política. Herdou e ganhou o poder; não herdou nem ganhou um partido. Esse continua sob a direção de Lula. Sem dúvida, é uma segurança para ela. Lula, além de ter criado a sua candidatura, foi um dos maiores presidentes do Brasil, no nível de Vargas, no nível de Juscelino; o tempo dirá se maior, igual ou menor. Em todo o caso, Lula está junto deles – e dela. E eles, não se pode olvidar, foram gênios da política no Brasil. E todos foram inequivocamente chefes partidários e políticos. Com Dilma, a coisa é diferente. No momento, é uma seguidora de Lula, mas já está na pista de decolagem para transformar a verticalidade da sua própria figura nacional. E só vai aprender se ela se colocar na posição de piloto do avião.

3) Então fixamos bem esse ponto, o problema que Dilma tem é a falta de carreira política, de não ter sido chefe político. E isso se tornou palpável e visível, espelho aguçado, no começo da formação de seu governo, onde a figura da articulação política ficou com Antonio Palocci. E Palocci expandiu-se. Não só ia fazer a relação com o parlamento, mas trazia, entre as suas credenciais, uma de substancial importância: a ligação com os banqueiros e com setores empresariais. Além, é claro, de sua conjugação com Lula. Isso significou uma posição cartográfica de notável importância. Porque, com a sua entrada no governo, Dilma sofreu um deslizamento para a parte da liderança administrativa, embora mantendo as decisões da chefia do Executivo. O que acontece, leitor crítico, é que na formação do seu governo, acabou com um ministro da Casa Civil com poderes excessivamente ampliados. O que Temer queria, ficou com Palocci. E isso teve como consequência imediata uma parede e um bloqueio entre a presidenta e os parlamentares. É obvio que se torna indispensável ter uma certa proteção. E essa proteção não pode anular o caminho da necessidade de todas as formas de relação política: negociações, proposições, sedução do poder, convencimento de parlamentares, jogo de apoio social, cargos, cooptação, pressões, concessões, decisões, anulação de chantagens, manobras e falsas manobras, escuta de reivindicações de todos os matizes, encontros secretos, acordos políticos, etc. Mas, principalmente, a proteção não pode segurar o desenho e a construção de uma base política para uma estratégia de poder. E, no caso da presidenta do Brasil, o mais definitivo: a configuração de uma estratégia nacional. E Dilma, prazer e sofrimento, teria que executar essa estratégia num face a face, no dia a dia, ao que chamei, em outro artigo, da combinação da grande política com a pequena política. Os grandes projetos e o comércio das miudezas cotidianas. Mas, ousaria dizer mais, para o êxito de sua jornada há que ter uma audácia especial. O Brasil não pode ser pensado apenas como Brasil, tem que ser pensado dentro de um projeto de negociação para o mundo. É na trajetória do mundo que o Brasil vai se construir. É desse norte absoluto que Dilma pode encontrar um desempenho para a sua realização como presidenta. E ela tem tempo para esculpir uma bela carreira política.

4) Ao aceitar, optar e atribuir a Palocci como ministro da Casa Civil determinado tipo de coordenação, Dilma deixou aberta a possibilidade de que houvesse um curto-circuito na dimensão política da Presidência. Não que o seu poder fosse ferido. O que foi constrangido e diminuído foi o exercício do poder. Ou exercício do poder propriamente político. Ou mais precisamente, a concepção estratégica da presidência, com os desdobramentos pessoais, intransferíveis, do comando da negociação dessa articulação entre as duas variedades de políticas citadas acima: a grande e a pequena. O(A) presidente(a) é um imã, um diamante que organiza e responde a dança incontornável do baile e da festa dos atos políticos.

5) O caso Palocci, fora todo o problema ético – em processo de discussão e de confronto interno e externo ao governo – foi a cena de invulgar intensidade que exibiu a luz aguda da questão. A equação apresentava a seguinte forma: o comando político partidário com Lula, o poder de Estado com Dilma e o poder da gerência político parlamentar e empresarial com Palocci. Tudo o que um político abatido no governo anterior gostaria. Mas é regra na política: quem foi abatido – atenção, não quem perde uma batalha política – tem muita dificuldade de retornar ao poder. Veja-se o caso do próprio Collor. Pôde efetivamente recomeçar. Mas quem nessas condições reaparece, não tem o respeito efetivo dos confrades. Torna-se um alvo muito evidente. Suas vulnerabilidades ficam expostas com exuberância. É mais fácil de ser atingido. Os inimigos, os adversários e os participantes do fogo amigo sabem onde e como abalroá-lo. Palocci não teve sequer um semestre de folga, levou uma bala de calibre 38. E leve-se em conta que a oposição partidária está totalmente desarvorada.

6) Talvez Dilma ganhe um presente como Lula ganhou com a queda de Zé Dirceu. E mais, ela está aprendendo a desaprender. O que ela tem a desaprender é a sua extraordinária atuação como chefe da Casa Civil – onde foi o verdadeiro suporte da estratégia da política econômica e social do governo Lula. Frise-se, econômica e social! Seu caminho agora é um só: a dimensão política da presidência da República. Saindo ou não Palocci, o decisivo nesse caso para ela tem um conteúdo robusto: empunhar na sua mão todo o jogo da esgrima presidencial. O que não exclui a delegação de coordenações políticas de ordens maiores ou menores subordinadas e controladas por ela. O estouro do caso Palocci, o esfalfamento da votação do Código Florestal, o barulho da crise com o PMDB aportou à consciência da presidenta a necessidade de resolver o tema do poder e de seu exercício de maneira distinta, construindo agora um novo processo. Dilma está saindo para o mar revolto da disputa política. A lógica inexorável se impõe: não há boa presidência sem pleno mando do poder. Pois é com o pleno mando que o jogo estratégico se faz. E é com ele que se negocia interna e externamente as mais amplas latitudes dos conflitos políticos.

7) No entanto, para variar, a árvore da presidência tem sempre diversos ramos de problemas. No caso do atual governo, há que perceber que deve se abrir uma nova faceta política da relação Lula-Dilma, que foi absolutamente excepcional no governo Lula. E como eles têm uma relação singular, os ajustes não serão muito difíceis de fazer. Primeiro, há que ter clareza: o chefe político é Lula, o chefe do governo é Dilma. Segundo: é preciso se encaminhar para delinear com traços de finura um projeto político para o PT, um projeto político que envolva um projeto de nação. Isto quer dizer um projeto econômico, político e social dentro de uma nova etapa do capitalismo que está se formando. Um projeto de poder que inclua também a relação entre os dois personagens, onde Dilma não é mais a ministra de Estado apoiada pelo PT, onde ela é a presidenta da República e onde Lula é a maior figura do partido. É inevitável uma tomada de posição nessa questão. O momento é agora. Dilma, dada a sua fidelidade a Lula e dado o seu posto político, terá que ser a segunda personalidade política do PT e assumir a liderança do jogo político do Estado. Estamos numa nova etapa do poder, a construção do lulismo-dilmismo em termos políticos.

8) Quanto à questão ética do caso Palocci, não conheço suas particularidades, as informações são ainda escassas. De qualquer modo, para mim, respondendo de modo abstrato, a política não tem ética, o que não quer dizer que um político e um partido não devam tê-la. Só que o fato de eu ter ética e meu partido também, não significa que o outro tenha que ter a mesma postura. A política é permanentemente conflito e jogo de forças. É sempre duelo, divergência, combate. É óbvio que não fica excluído que um partido no poder coloque as suas forças na proposição de um jogo essencialmente ético. O que torna a ética um problema político e não a política um problema ético.

9) Também não se pode esquecer, ampliando para ver a moldura que envolve o atual quadro político do país, que a estratégia de longo prazo brasileira passa, neste momento, por problemas complexos internos e externos e que afetam o envolvimento de Dilma em toda a dimensão do seu poder. Externamente, uma conjuntura de crise e de transição da geopolítica e geoeconomia mundial com a progressiva configuração bipolar dos Estados Unidos e da China nos papéis principais da peça. E com a multipolaridade Brasil, Índia e Rússia e outros, presentes como coadjuvantes indisfarçáveis. Internamente, a galáxia da política profunda mudou, pelo menos nas cenas imediatas. Essa mudança está baseada no fortalecimento do capital bancário – dado o aporte de recursos financeiros aplicados no Brasil –, na divisão do capital produtivo em face do comércio de commodities e da concorrência chinesa no mercado mundial e latino-americano, na indispensável formulação de uma política industrial e tecnológica, na necessidade de consolidação da articulação capital industrial e trabalho, na necessidade de políticas econômicas e sociais favorecendo as camadas mais pobres da população, etc., etc. E o resultado da dialética dessas duas dimensões – externa e interna – atravessa os problemas do jogo político da presidenta. Por isso, se pode perceber a densa floresta de questões que Dilma tem que refletir para conectar a sua própria estratégia. E ela é totalmente hamletiana: ser ou não ser. Mas Dilma tem a energia de Antígona, vai se revirar e vai achá-la em si própria.