sábado, novembro 26, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL: A China vai resistir à desaceleração global?

Não há modelo exportador puro na China ao menos desde 2008. Mas pode a China crescer taxas atuais por longo período sem o suporte das economias ocidentais? Tomara, pois os efeitos de uma desaceleração chinesa seriam desastrosos para a economia mundial.
Carta Maior - Internacional - Os ventos da crise também batem à porta da China

quarta-feira, novembro 09, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:
O FRACASSO POLÍTICO
DAS FINANÇAS E DO G-20
Por Enéas de Souza




10 de novembro de 2011




1) Coisa curiosa: a Europa e o G-20 encenaram uma comédia em Cannes, talvez seja a antecipação do próximo festival. Só que, fora do elenco dos protagonistas, apareceu um sátiro grego, quem sabe um misto de bufão e clown, Papandreou, que roubou a cena. Parecia, quem sabe, um personagem da comédia dell´arte de Goldoni infiltrado numa figura dramática de Aristófanes. Então, para quem é afeito ao cultivo das imagens, dava gosto ver aquela gente poderosa tentando manter a pose de que eram importantes. Naturalmente que o pessoal dos emergentes entrou de sangue doce. O chinês dava o seu sorriso Colgate de Pequim – dentes reluzentes, olhos entre irônicos e orgulhosos, roupa impecável, como se os que passaram o terno passaram junto a figura da autoridade. Mas estava feliz: a China vem jogando bem e só, só fustigando os Estados Unidos e a Europa. Trouxe o dragão para a sala quando disse, numa das manobras americanas e européias para flexibilizar o câmbio, que aí mexiam com a China, mexiam com ele; e, portanto, deu o sinal de veto.

2) A grande mídia que atuou muito no encontro, vuvuzela dos infernos, foi a européia. Claro, esse G-20 teve o conteúdo de uma manobra da região para ver se arrumava uns trocos com os emergentes, tipo Brasil, e alguma grana pesada com a China. Botaram muitas fotos e vastas coberturas de tevê para Merkel e Sarkozy. Como disse a Dilma: “por que eu vou botar dinheiro no fundo europeu se nem os europeus botaram?” Por aí vocês vêem como foi a reunião. E Dilma comentou e falou mais um pouco. Achou a reunião um sucesso relativo. E se considerar que a Europa tomou consciência que eles estão na alça de mira, tudo bem, foi isso mesmo. Os europeus que sempre cantaram de “prima donna” ou de tenor de sucesso, junto com os seus irmãos maiores, os “brothers” americanos, descobriram não a náusea existencial do Sartre, mas a falta de solidariedade entre eles mesmos. Estão vendo a espiral da caminhada para o fundo do poço. Mas, leitor cartesiano, leitor que duvida de tudo, poderíamos esperar algo mais de líderes como Berlusconi e seu número de bufo prolongado, de Sarkozy e sua visão midiática do mundo, de Obama que está pela bola sete, de dona Merkel e sua Alemanha ciosa dos trocados ou de Zapatero que está indo embora do poder? Claro que não. Sim, a Dilma tem razão; foi um sucesso relativo; a Europa se deu conta que ela própria é quem tem que sair do buraco. Imagina o Brasil dando uma graninha para o Fundo de Resgate Europeu? Assim, generosamente, sem pedir nada em troca? Ah, os emergentes propuseram dar sim. Dar uma contribuição, mas via FMI, com a condição de mudar a estrutura e a arquitetura do Fundo. E, claro, mudar a realidade do Fundo é difícil, ninguém cede se não estiver nas últimas. Fácil é tentar tirar dos mais pobres. Mudou-se de assunto.

3) O G-20 evidenciou o que temos dito aqui. O eixo único americano se partiu em dois, e o que ficou com os Estados Unidos, Inglaterra e Europa está se decompondo, enquanto o eixo que tem a liderança, já não tão discreta, da China continua a passada lenta, gradual, ocupando espaço. Ora, o G-20 botou no time as camisetas dos titulares nos Estados Unidos e na China, e pôs a Europa com as camisetas dos reservas e os demais emergentes, temporariamente, ficaram como titulares, titulares passageiros ou possíveis, reorganizando o jogo. Assim, o que se quer constatar é que o G-20 foi uma reunião para Europa ver que está na hora dela achar uma solução. Porque ela estava – e ainda está – caminhando rumo à zona do precipício.

4) O interessante foi o número de Papandreou; encestaram o que deu o líder da terra de Helena. Mas, ele pensou, refletiu, calculou. E no palco mundial da mídia encenou o numero cômico da vingança. Quando a Europa festejava o pacote renovado para a Grécia, Papandreou jogou a carta do referendo. Foi um caldeirão de água lançado nas costas da turma européia, em pleno G-20. Claro, Papandreou estava blefando e, sobretudo, estava devolvendo o passa-pé dos grandes países. Olha aqui, vocês me encurralaram, mas eu também encurralo vocês. E saiu aristofanicamente rindo. Logo em seguida, a Grande Mídia pintou um quadro de que a Europa e o G-20, insultados, enquadraram o político grego. Deu para dar boas gargalhadas. E gozem mais um pouco. E se sai mesmo o tal de referendo? Na verdade, tudo não passou de uma delícia vingativa de Papandreou.

5) Agora vamos tentar ampliar a nossa interpretação. É preciso ver que estamos num jogo onde as finanças internacionais blefam, atacam e fazem um ataque insaciável, jogando a gasolina do medo e do caos social no mundo. A Grande Mídia, tuba canora como diria Camões, está do mesmo lado, riscando o fósforo do temor. Foi-se o tempo em que a mídia informava; hoje, dá notícias pela metade, mente, inventa e, de quando em vez, chantageia tanto quanto faz propaganda. Clama pela liberdade de imprensa e se enxerga liberdade de empresa. Vendendo a sua mercadoria, inocula a ideologia das finanças. E as finanças, depois de terem sofrido um colapso nervoso em 2007/2008, na crise do mercado financeiro americano – que se desdobrou para a Europa e o mundo – conseguiu, via medidas de salvação e doação dos Bancos Centrais e de vários governos, se equilibrar. Só que, da crise financeira, passou-se à crise fiscal e, da crise fiscal, o mico viajou para o Estado. Desde lá, estamos atravessando a crise desse, o que significa também, com diversos matizes, uma polpuda crise política. Essas realidades são o resultado do movimento da luta furiosa dos capitais entre si, mas também do combate complexo deles contra as nações. Tudo porque as finanças, no seu neoliberalismo, apesar de dizerem que o Estado deve ficar fora da economia, não podem viver sem o Estado. Primeiro, para que elas possam, no período de crescimento, exatamente se expandir, enquanto o Estado garante estabilidade e paz social. E segundo, para quando o ciclo desce, capa protetora, salvar as instituições financeiras. E tudo, crédulo leitor, em nome do poético nome de “evitar o risco sistêmico”. Salvam-se os bancos, os investidores não perdem a propriedade desses e muito poucos dirigentes deixam os seus cargos e os bônus. Aquilo que seria natural, o conúbio finanças e Estado não nacionalizam, nem estatizam essas corporações, põe o prejuízo ou no Banco Central ou na dívida pública. E, quando o próprio Estado entra em crise, encontra-se uma ficção adequada, a recomposição do Estado, para que as finanças possam se recuperar e retomar o seu domínio. Tudo em cima das demais camadas da sociedade. E o que é pior: em nosso nome.

6) Por isso, quando as finanças caem, elas caem perdendo o apoio social. Vejam o movimento do Tea Party e do Occupy Wall Steet. E, mais que lógico, também arrastam para o abismo o Estado, que ingressa no cone de sombra de uma crise. Porque não há outro ponto e outra regra: as finanças só sobrevivem para especular tranquilamente (sic!) com a economia estabilizada e com calma social. E quem garante isso? O Estado. Qual é o movimento das finanças? É tentar forçar que o Estado retome a estabilidade. Como? Cortando gastos, em alguns casos, aumentando impostos, mas sempre buscando demitir funcionários, diminuindo ou eliminando aposentadorias e, em alguns países, privatizando previdência, saúde, educação e cultura. E assim chegamos a uma segunda etapa do neoliberalismo: para a falência do neoliberalismo, mais liberalismo.

7) Porém, a estratégia é sempre a mesma. Endivida-se um Estado, joga-se uma agência de ratings em cima para diminuir a sua nota e especula-se contra os títulos desse país. E logo se fabrica a cena midiática do “Grande Caos” da política e da nação. E sabem como é que se faz esse jogo, que tem o cheiro de uma jogatina de Las Vegas? É assim: um título do país é lançado com uma taxa de juros X no mercado primário, por intermédio de um banco ou um pool deles. Quando o título é passado para o mercado secundário, onde todos podem comprar, os capitais, os próprios bancos intervenientes, atacam este papel, exaurindo sua sustentabilidade, obrigando-o a pagar um prêmio de risco, de por exemplo X mais 1, 2, 3, 4, 5, 6, etc. % a mais. O título italiano ontem, no mercado secundário, chegou a pagar um prêmio de 5,7, acima da taxa básica que é 3%. Ora, esse prêmio de risco força o país, quando for lançar um novo título soberano no mercado primário, a levantar a taxa de juro para por esse novo ativo possa encontrar comprador. Ou seja, está apresentada a espiral da especulação e a depredação de um Estado.

Claro, já percebemos então, que a mão que poupa é a mesma mão que pede e escorcha. Resultado: força-se tanto ao endividamento do Estado quanto a desvalorização dos seus ativos. E depois, soltam-se os cães ladradores das agências de ratings e, no rastro da bruxa, se traz a turma do FMI (no caso da Europa, também o Fundo de Estabilização Financeira Européia) para dar as receitas básicas ao Estado dito “soberano”. Ora, o país que já estava em crise econômica, dá um mergulho patético na piscina fiscal e pratica o arrocho financeiro sobre o próprio Estado. E logo, logo, entra em recessão, até conseguir - às custas do desemprego, da abdicação de políticas públicas privatizando empresas e serviços estatais, e da liquidação da estrutura e arquitetura do próprio Estado, incluindo pessoal burocrático adequado, tanto em número como em qualidade – um determinado momento de razoável equilíbrio, que geralmente leva anos, às vezes décadas, a chegar. É isto que aconteceu no Brasil, salvo do neoliberalismo por Lula. E é este o destino de Portugal, da Espanha, da Itália se continuarem e forem nessa estrada da vida. E é isso o que o primeiro ministro Fillon está forçando, junto com Sarkozy, para que a França siga, inclusive para escapar da rebaixa das notas das agências de ratings. Fazem parte de um tempo chamado de “tempo de austeridade”. Ora, em bom português de antigamente, se diria: co´os diabos, austeridade para quem?

8) E para a solução dessas crises sempre surgem engenharias econômicas complexas para que o capital privado recupere não apenas o seu dinheiro, mas o fruto de sua especulação. E como na especulação, ele ganha somas monumentais, obviamente que pode, com a generosidade dos assaltos, fazer algum perdão, mesmo que este perdão seja pago pelos Estados dos capitais emprestadores. Exemplo vivo na Europa, o dos bancos franceses, espanhóis, italianos e mesmo alemães. Sem contar aquela dos países que já sucumbiram com Portugal e Grécia.

9) Ora, o G-20 mostrou o seguinte: I) a inércia americana – seja pela paralisia provocada pelo Congresso, amarrando o governo com o teto da dívida e com a limitação dos gastos, seja porque Obama não pôde nem tinha condições políticas americanas e internacionais de ser protagonista; II) a reboldosa na Europa – com as finanças e os Estados engolfados, em longa agonia, na tempestade financeira, fiscal e política. Peter Breughel pintaria hoje, a partir dessa situação, uma nova “dança da morte”; III) a incapacidade do núcleo líder da União Européia – a França e a Alemanha já demonstraram, quase à saciedade, que não têm talento para dar uma solução à UE. Sarkozy está enrolado na disputa para a presidência com François Hollande, com um futuro, para ele, sombrio, pois, num possível 2º turno, este, François Hollande, ganharia de 68 a 32%, segundo sondagens atuais. E Ângela Merkel, criticada por suas manobras no plano externo, está muito preocupada com o plano interno socialmente. Tenta roubar as perspectivas dos adversários mais à esquerda, através da proposta de um salário mínimo profissional, bem como fechando as usinas nucleares.

10) Uma outra coisa importante, como a de Papandreou, aconteceu fora do G-20: a entrada de Mario Draghi na presidência do Banco Central Europeu. Ele é italiano, economista do MIT e da Goldman Sachs, tendo dirigido, na parte internacional dessa, a secção européia, exatamente no momento da fraudulenta entrada da Grécia na União Européia, quando a Goldman fez um trabalho de consultoria para a nação grega. Portanto, como dizem os portenhos: Ojo! E Draghi já descartou a idéia do Banco Europeu ser o emprestador em última instância, rompendo com uma recente posição de Trichet. O que joga água no chopp de um avanço político na Europa. Ou seja, parece que o objetivo do sistema financeiro é continuar mantendo um espaço inatingível pelo Estado de controle da sua ação dinâmica, impedindo que haja um Estado supra-europeu. Ou seja, pode-se conjeturar que a luta entre os capitais se decida pelos mais fortes e pelos Estados nacionais mais capazes de sustentar um apoio aos seus bancos. Uma concentração de riqueza e de poder. Quando a concorrência se estreita, cada capital quer a morte do rival. E a concorrência se estreita porque há cada vez menos possibilidades de negócios à sombra dos títulos privados e públicos. E a competição dos Estados se desloca pela melhor e mais astuta política de uns sobre outro. Pode-se até conjeturar que, ao menos uma parte da Itália, mesmo em desaforada ópera-bufa almeje deslocar a França de sua posição de liderança.

11) E o que o G-20 revelou profundamente foi o segredo mais visível de todo este começo de século: a incapacidade das lideranças políticas européias, sobretudo da França e da Alemanha, de alcançar uma solução inventiva. E enquanto a política não encontra saída, os capitais continuam massacrando, desesperadamente, os países e os Estados e as populações. Sempre na expectativa de passarem à frente dos seus concorrentes na luta especulativa e sempre na busca de uma solução de aperto dos Estados e das populações. O objetivo é chegar a um ponto base, a um Estado equilibrado ou controlável em termos de dívida, de déficit e de orçamento fiscal. Por outro lado, todo o problema das finanças passa sempre por manter a liquidez, alcançar fontes de alavancagens para decididas especulações e títulos apetitosos, forçando os Estados a entrarem no seu jogo, a despeito do grande desastre social. Por isso, a reação anti-finanças no mundo todo; embora esse movimento se esboce com uma pequena contundência de quem sofreu e não sabia quando estavam lhe roubando a carteira, botando-lhe a mão no bolso. O mundo agora se exalta, sai às ruas, grita. Ouviremos, então, quando algum grande escritor escrever sobre este tempo, uma frase como esta, ao estilo da Ilíada de Homero: “Canta Musa, contra os Ataques das Finanças, a Ira da População”?

12) Dilma tem razão. O G-2O foi um sucesso parcial, porque circunscreveu, neste momento, a crise no colo da Europa. Mas não mudou a organização para-estatal do sistema econômico, do tipo FMI, seja no seu elenco de quotas com dominância americana e européia, seja no seu pensamento de solução da crise. Mostrou, igualmente, a debilidade do Fundo de Resgate, e a rasteira que a Europa queria passar nos emergentes. E lá no fundo, aparece a China, sorridente, dando os seus passos progressivos e adventícios. Ao menos no campo econômico – pois, no geopolítico, a coisa é diferente – os americanos estão tentando cerca-la e constrange-la. Mas, paira no mundo, ainda, a visão econômica das finanças. A solução proposta cabe sempre no tambor do revolver financeiro. Contudo, a questão subterrânea é outra, sufocada pelas finanças: onde está o lado do crescimento e do emprego? Onde está a tentativa dos Estados liderarem os processos de investimento produtivo e de expansão tecnológica? As finanças e os Estados continuam movidos pelo curto prazo. O longo prazo e o novo padrão de acumulação, que poderiam dominar as iniciativas públicas e reorganizar a economia, com as finanças passando a apoiar a produção, ainda estão longe do horizonte da luta forte que travam capitais e Estados, sob as mais diversas cores e mais faceiros matizes. E a presença dos trabalhadores, dos estudantes, dos jovens, dos indigentes, dos pobres é ainda muito tímida no cenário mundial. Mas, com muitos processos e praticamente sem nenhuma proposta. Enquanto isso ocorrer, as finanças continuarão com o seu projeto de resolver tudo isso financeiramente. Tudo isso, com a subordinação dos Estados, com o desemprego, com a diminuição das garantias sociais e, sobretudo, com uma paralisia da dinâmica econômica produtiva, onde a competição fica restrita à produtividade do capital, e jamais na passagem para o investimento, na direção de um novo padrão de desenvolvimento, ou seja, na direção de um novo padrão tecno-econômico, como diria um schumpeteriano. O que evidencia o total fracasso da economia das finanças, que está fragmentando a unidade do eixo americano e, principalmente, está reposicionando a Europa, seja pelo desmanchamento econômico, seja pelo apequenamento político. Foi isso que apareceu no G-20 de Cannes, enquanto a China olhava sonhadoramente as oportunidades que virão, enquanto as eleições americanas não decidirem o outro lado da fogueira dos capitais e dos países.






PS – Entro em férias. Só que, primeiro, vou apresentar e comentar na Maison du Brésil, em Paris, um ciclo de “Cinema Brésilien Contemporain”, de 21 a 25 deste mês. Serão exibidos: “Edifício Master” de Eduardo Coutinho, “Santiago” de João Moreira Salles, “Crime Delicado” de Beto Brandt, “O Homem que Copiava” de Jorge Furtado e “Lavoura Arcaica” de Luiz Fernando Carvalho. E lá, no dia 22, Robson de Freitas Pereira e eu lançaremos nosso livro “O Divã e a Tela”. Estarão também presentes as colegas psicanalistas Lucia Serrano Pereira e Ana Lucília Rodrigues, que escreveram um artigo na referida obra. Depois do ciclo, as férias. Bordeaux no Café Corse, omelette parmentier no Boul´Mitch e livros na Compagnie, na la Hune e na l´Écume des pages. E uma conversa livre com os amigos parisienses, desde os temas artísticos até as questões políticas e econômicas, sem excluir, claro, as maldades sobre os inimigos do coração. Retorno na metade de dezembro. Até lá!

quinta-feira, novembro 03, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:
A ELEIÇÃO DE CRISTINA
FAZ AVANÇAR A AMÉRICA LATINA?
Por Enéas de Souza

03 de novembro de 2011


Cena Um – Estou na Plaza de Mayo, Buenos Aires, domingo à noite, dia da eleição argentina; uma grande multidão de crianças, jovens, adultos e velhos, com tiaras, fitas, bandeiras, gritos e pulos, comemoram a vitória de Cristina Kirchner. Um vendedor berra furiosamente, no meio da massa, a sua mercadoria: “Cerveza! Cerveza! Cerveza!”. Ninguém se preocupa e se incomoda. Há um desejo forte de comemoração. Comemorar a vitória e esperar que a presidenta apareça. Há uma alegria sincera e intensa. As bandeiras dançam, um locutor anima a festa e todo mundo celebra o acontecimento. Em alguns momentos, na noite cheia de faixas e balões, estouram canções de louvor à Cristina e, como num estádio de futebol, as pessoas pulam de alegria. Não diria que há uma euforia exuberante, mas há um entusiasmo contente e moderado.

Cena Dois – Vou num taxi conversando com o motorista, perguntando sobre as eleições e tentando compreender o seu mau humor cada vez mais consistente e graúdo. A certa altura, ele me diz: “Não gosto de política. Os políticos são todos ladrões. Eu não votei em Cristina, votei no Rodriguez Saa. Não quero mais falar do meu país” (O seu candidato não fez sequer 8%). E vejo que está irredutível, não quer mesmo mais falar sobre o assunto. Está furioso.

 PRIMEIRA CONCLUSÃO: O FRACASSO DO NEOLIBERALISMO

O que a gente percebe é que o insuficiente neoliberalismo teve um baque enorme com essa vitória da Cristina. A população vem percebendo desde 2001 que o neoliberalismo foi uma tragédia para a Argentina. E por isso, com a vitória da presidenta, ela consegue entender que o país está na eminência de escapar da crise absoluta – de “uma crise que parecia terminal” diria Ricardo Forster no seu livro “El litígio por la democracia”. O que evidencia que Kirchner e Cristina inverteram a curva da destruição do país, tratando de diminuir e conseguindo, até agora, tirar muita gente da pobreza e da indigência. E o povo ainda está desconfiado, depois de tanta lambada, de tanto cinismo e tanto banditismo do tempo de Menem. Ele começa a acreditar, pelo menos uma boa parte dele. A Cena Um, que narramos acima, tem o pendor de mostrar um grupo de pessoas, mais de 50% dos votantes, acreditando, achando, um pouco desconfiados é verdade, que é possível avançar, ganhar e progredir. Festejam. E não se trata apenas de retórica, o que se sente é que existe um projeto do Kirchnerismo, que Cristina leva adiante e que tem sintonia com a gente humilde. E esse projeto tem uma face imediata: acabar com o neoliberalismo. Pois foi esse neoliberalismo de Menem, que dando sequência à catastrófica política econômica de Martinez de Hoz dos anos 80, levou a nação ao caos total. Não se tem idéia da profundidade enorme da devastação social, política, econômica a que chegou a Argentina no início dos anos 2000. E foi isso que Kirchner e Cristina bloquearam e começaram a reverter. Martinez de Hoz – não o mágico mas o delirante de Hoz – dizia, na sua vigarice neoliberal: “Achicar el Estado, agrandar la Nación”. Uma piada. Acabou com o país e o Estado ficou em frangalhos. Em “ruínas” como disse Kirchner numa conversa com José Pablo Feinmann. No entanto, o neoliberalismo está batido, mas ainda não vencido

A SUSTENTAÇÃO EXTERNA DO MOVIMENTO INTERNO

O movimento de recuperação da Argentina segue o mesmo processo do Brasil. De um lado, o Estado retoma minimamente a liderança e tem um projeto nacional. E de outro lado, para expandir a economia do país, tem que ter uma presença internacional. E essa presença se dará em união com as demais nações latino-americanas. Cristina tem certeza, como Kirchner já tinha, a saída para os países desta região – portanto, para a Argentina, inclusive – é latino-americana. O que significa incrementar fortemente uma defesa comum para a área, seja através de políticas comuns, seja através de uma atuação vigorosa em fóruns como o G-20 onde, juntamente com o Brasil, a Argentina pode propor diversos temas. E entre eles se destaca a busca de abertura de mercado para os produtos agrícolas, que os países avançados tratam de manter um protecionismo de longa data. Essa posição poderá ser acompanhada por uma política interna que, além do incremento da produção desses bens citados, permita também que ocorra uma industrialização mais forte dos referidos produtos. Naturalmente que, para tal, é indispensável que o Estado desenvolva políticas de fomento que assegurem aos industriais argentinos um apoio bastante forte em termos de produção, de inovação, exportação, etc. Se isso ocorrer, a tradução social será tanto no aumento do produto como na ampliação do emprego. Ora, o Estado pode tentar seguir esse rumo, justamente porque conseguiu dar uma consistência à política fiscal. O que está ainda fora de controle é a questão inflacionária. Uma pressão contundente, que funciona como um espelho das tensões da economia e da política do país.

CRISTINA PARA MUDAR O ESTADO DE COISAS

Portanto, o kirchnerismo de Cristina vai ampliar aliança dos setores capitalistas nacionais com os setores operários, dos trabalhadores do setor serviço, intelectuais e universitários, mas também com setores indigentes e pobres e desempregados, porque sem essa aliança – uma aliança populista – será impossível avançar nesse projeto. Um governo que não tenha base popular não tem como se manter. E é por isso que esta vitória aplastante afeta a pequena burguesia – Cena Dois – que se sente ameaçada, pois ela, como certos setores agrários, pensa em termos relativos. Se eu não pioro, mas os outros melhoram, na verdade, estou piorando relativamente. E a proposta de Cristina é certamente avançar a economia nacional, mas ao mesmo tempo dar ênfase aos setores desfavorecidos pelo neoliberalismo, o que desagrada aqueles que pretendiam, na pior das hipóteses, manter o estado de coisas.

A COMBINAÇÃO INSUPERÁVEL DA VITÓRIA

Porém, a verdade é que Cristina desmanchou, pelo menos por mais um tempo – com habilidade, astúcia, coragem e inexorabilidade – as hostes adversárias e os seus contendores. Seguramente, ela foi a grande vencedora, ela deu um passo a mais na sua trajetória, mas não se pode esquecer que a morte de Kirchner está na base deste triunfo. Foi uma combinação detonante: o peso de um passado que deu certo com um futuro que pode ser tão promissor quanto possível. E por quê? Porque a população sentiu que, no meio de erros, de problemas, equívocos, etc., há um projeto que pretende incluir o maior número de pessoas, sobretudo os de má situação de renda e de condição social precária. E isso se não é uma certeza, é, ao menos, uma promessa que elas podem acreditar. Porque o neoliberalismo que prometia riqueza a todos foi a causa da dinamite que jogou a Argentina no espelho do abismo.

 Cena Três – Estamos na virada de domingo para segunda, a música solta e vibrante, uma multidão que celebra e que tem esperanças. Com uma lavada alma, vibrando em cima de uma campanha exitosa, Cristina dança e baila com um sorriso, pela primeira vez, em público, serena, e aceitando um pequeno repouso depois da morte de Nestor, seu companheiro de jornadas. Uma vez, em 2006/7 ouvi, quando saia de um táxi, a frase derradeira que condenava o casal, contra o qual o motorista empilhava e empilhava argumentos. No fundo, todo argentino, de um modo geral é um político ativo. Tem posição e tem idéias. Ele gritou: “Y lo peor és que la pareja és indecente”. Lembrei-me dele quando Cristina dançava só, dançando a vitória em forma de profunda maioria. Sim, “la pareja” tinha dado a volta por cima, a barragem neoliberal, oriunda sobretudo da mídia, tinha perdido. A morte de Nestor e a firmeza de Cristina estavam constituindo uma nova figura política do casal.

AS ENCRUZILHADAS DA ARGENTINA

Quando a gente olha para uma possível trajetória da Argentina, o que se percebe é que ela vai ter que passar por vários desafios. Entre eles, se podem notar, com saliência, os seguintes:

01. Deixar de lado o ideário e as instituições neoliberais que destruíram o Estado e a Argentina;

02. Voltar a ter uma política econômica, política e social que se refira permanentemente à igualdade e a justiça;

 03. Repensar o seu passado peronista (o bom e o mau), revisar a sua memória menenmista, e projetar um novo estágio do kirchernismo-cristinismo;

04. Criar novas figuras do poder e da política – ou seja, o seu futuro em função de um novo projeto de nação;

05. Trabalhar para a criação de um Estado dominado, como dizia Kirchner, por “valores e convicções”, que articule projeto nacional, política econômica autônoma, planejamento e uma política externa. E que mantenha a liberdade de imprensa, a democracia, mas não seja prisioneira do setor midiático;

06. Fazer da política econômica e social um instrumento de reformulação da área industrial, de uma sustentação do setor agrário, de resultados fiscais importantes, definindo políticas cambiais e protecionistas adequadas à nação, bem as questões de educação, saúde, previdência e cultura;

07. Introduzir na política externa uma forte união com o Brasil, na organização de uma América do Sul e de uma América Latina sólidas, ativas e sempre proposicionais;

08. Adequar os seus interesses econômicos para a construção de um processo de integração infra-estrutural (estradas, portos, aeroportos, reorganização urbana, etc.) da América do Sul, combinando apoio ao setor capitalista, mas contrabalançando o poder discriminatório do capital com uma intervenção estatal reequilibradora da situação salarial, de aspectos sociais, etc.;

09. Dar o exemplo de sua política de defesa dos direitos humanos para os países menos adiantados no tema na região;

10. Ajudar a formular uma política e uma estratégia para a América Latina no mundo, de tal modo que a sua execução se torne protagonista nos cenários mundiais, nestes tempos de crise;

11. Buscar o equacionamento de uma política econômica que relacione: as empresas multinacionais que atuam no espaço planetário, mas que passam por espaços nacionais com os Estados Nacionais sul-americanos e latino-americanos, individual e coletivamente, para equilibrar a relação de forças entre corporações produtivas e Estados;

12. Controlar com a força do Estado o capital financeiro estrangeiro e nacional, apoiar fortemente o setor produtivo local, mas, sobretudo, pensar que a nova configuração econômica tem que se direcionar para um novo padrão tecnológico que virá, envolvendo energia, meio ambiente, comunicação, informação, biotecnologia, etc.;

13. Ter clareza das possibilidades e dos limites da integração da América do Sul e da América Latina, na dinâmica da solução da crise geopolítica e geoeconômica que assola o neoliberalismo financeiro de guerra.

A VIAGEM E A VOLTA

Fiquei um tempo na Argentina e vi a atmosfera de uma cidade, Buenos Aires. Do que olhei, do que li, do que conversei, com amigos e desconhecidos, cheguei a algumas conclusões, que estão aí. Tenho a clara e nítida sensação que a Argentina deu um salto, imperceptível para alguns, evidente para outros. O conflito, no entanto, se aguça, vai assumir novas formas, teremos novos desafios e novas dimensões. Tudo está em aberto, nada é certo. A direita prepara o contra-ataque, embora esteja na defensiva. É a hora de aproveitar o que Borges chamava de “fervor compartido”. São mais de 50% que apóiam o governo. E no campo internacional, temos sempre a pergunta que vai animar as nossas relações: poderão a Argentina de Cristina e o Brasil de Dilma acertar o passo numa estratégia e num projeto sul-americano/latino-americano para o mundo? Já se poderá ver alguma coisa na reunião do G-20 nesta semana, em Cannes.