quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Ecossocialismo. Por uma ecologia socialista. Entrevista especial com Michael Löwy Por Redação IHU

A crise ecológica abre a possibilidade para um novo projeto político, econômico e social: o ecossocialismo, defendido pelo sociólogo brasileiro, radicado na França, Michael Löwy. A ideia central da proposta é romper com o capitalismo e transformar as estruturas das forças produtivas e do aparelho produtivo. “Trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado”, esclarece.

Crítico ao capitalismo verde, que pretende transformar o capital e torná-lo menos agressivo ao meio ambiente, Löwy acredita que a crise ecológica é mais grave do que a econômica, pois “coloca em perigo a sobrevivência da vida humana neste planeta”. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ele enfatiza que é preciso reorganizar o modo de produção e consumo, atendendo “às necessidades reais da população e à defesa do equilíbrio ecológico”. As economias emergentes devem se desenvolver, mas não precisam “copiar o modelo de desenvolvimento capitalista do Ocidente”, aconselha. “Se trata de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria”.

Michael Löwy é cientista social e leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da Universidade de Paris. Entre sua vasta obra, destacamos Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista (São Paulo: Cortez, 1985); As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (São Paulo: Cortez, 1998); A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002); Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” (São Paulo: Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann, ou a dialética da totalidade (São Paulo: Boitempo, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que o senhor entende por ecossocialismo? Quais as ideias principais dessa corrente?

Michael Löwy – O ecossocialismo é uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista: há um movimento ecossocialista internacional, que recentemente, por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém (janeiro de 2009), publicou uma declaração sobre a mudança climática; e existe no Brasil uma rede ecossocialista que publicou também um manifesto, há alguns anos. Ao mesmo tempo, o ecossocialismo é uma reflexão crítica.

Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, desenvolver um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente. Há outras experiências socialistas, porém, mais interessantes do ponto de vista ecológico – por exemplo, a experiência cubana (com todos seus limites).

O projeto ecossocialista implica uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isto significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população – e não as leis do mercado ou um “burô político” autoritário – decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos. Esta transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de mercadorias inúteis.

IHU On-Line – Em que consiste o Manifesto Ecossocialista Internacional?

Michael Löwy – O Manifesto Ecossocialista Internacional, redigido em 2001 por Joel Kovel e por mim, foi uma primeira tentativa de resumir, em algumas páginas, as ideias principais do ecossocialismo, como projeto radicalmente anticapitalista e antiprodutivista, e como crítica às experiências socialistas não ecológicas do século XX.

IHU On-Line – A tentativa de aplicar o socialismo no mundo fracassou. Será possível vingar o ecossocialismo? Por quê?
Michael Löwy – As experiências de corte social-democrata fracassaram porque não sairam dos limites de uma gestão mais social do capitalismo e, nos últimos anos do neoliberalismo, as experiências de tipo soviético ou stalinista fracassaram por ausência de democracia, liberdade e auto-organização das classes oprimidas. As duas tinham em comum uma visão produtivista de exploração da natureza, com dramáticas consequências ecológicas.

O ecossocialismo parte de uma visão crítica destes fracassos e propõe um projeto democrático, libertário e ecológico. Nada garante que possa vingar. Depende das lutas ecossociais do futuro.

IHU On-Line – Sob quais aspectos a crise ecológica é mais grave do que a econômica?
Michael Löwy – A crise econômica tem consequências sociais dramáticas – desemprego, crise alimentar etc. –, mas a crise ecológica coloca em perigo a sobrevivência da vida humana neste planeta. O processo de mudança climática e aquecimento global, provocado pela lógica expansiva e destruidora do capitalismo, pode resultar, nas próximas décadas, numa catástrofe sem precedente na história da humanidade: desertificação das terras, desaparecimento da água potável, inundação das cidades marítimas pela subida do nível dos oceanos etc.

IHU On-Line – Como pensar em ecossocialismo se a Modernidade é capitalista? Seria o ecossocialismo uma proposta para romper com o capital?

Michael Löwy – Absolutamente! Uma das ideias fundamentais do ecossocialismo é a necessidade de uma ruptura com o capitalismo. Uma ruptura que vai mais além de uma mudança das relações de produção, das relações de propriedade. Trata-se de transformar a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Há que aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado; não é possível, porque o aparelho do Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores.

Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e de criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do Sol – alguns ecossocialistas falam do comunismo solar, pois entre o calor, a energia do Sol e o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.

IHU On-Line – Como o ecossosialismo pode se sustentar em economias emergentes, que ainda não conquistaram um status de bem-estar social das economias desenvolvidas?

Michael Löwy – As economias dos países do Sul, da Ásia, África e América Latina devem se desenvolver, mas isto não significa copiar o modelo de desenvolvimento capitalista do Ocidente e seu padrão de consumo insustentável. Trata-se de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria. O modelo ocidental não so é absurdo e irracional, mas não é generalizável: se os chineses quisessem imitar o American way of life, cinco planetas seriam necessários.

IHU On-Line – A humanidade deve preocupar-se com o ecossocialismo ou com o capitalismo verde?

Michael Löwy – O capitalismo verde é uma contradição nos têrmos. A lógica intrinsecamente perversa do sistema capitalista, baseada na concorrência impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, é necessariamente destruidora do meio ambiente e responsável pela catastrófica mudança do clima. As pretensas soluções capitalistas como o etanol, o carro elétrico, a energia atômica, as bolsas de direitos de emissão são totalmente ilusórias.

Os acordos de Kyoto, a fórmula mais avançada até agora de capitalismo verde, demonstrou-se incapaz de conter o processo de mudança climática. As soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, que aceitam a lógica de expansão infinita do capital, não são soluções, são incapazes de enfrentar a crise ambiental – uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana. Como disse recentemente o secretário das Nações Unidas, Ban Ki Moon: “Estamos correndo para o abismo com os pés colados no acelerador”.

IHU On-Line – Em que sentido a crise ecológica atual pode ser entendida como um problema de luta de classes?
Michael Löwy – Por um lado, a crise ecológica é um problema de toda a humanidade, pessoas de várias classes sociais podem se mobilizar por esta causa. Por outro lado, as classes dominantes são cegadas por seus interesses imediatos, pensam exclusivamente em seus lucros, sua competitividade, suas partes de mercado e defendem, com unhas e dentes, o sistema capitalista responsavel pela crise. As classes subalternas, os trabalhadores da cidade e do campo, os desempregados, o pobretariado têm interesses conflitivos com o capitalismo e podem ser ganhos para o combate ecossocialista. Não se trata de um processo inevitável, mas de uma possibilidade histórica.

IHU On-Line – Nas últimas conferências do clima, em Copenhague e Cancun, os movimentos sociais e ambientalistas fracassaram? Por que não se vê perspectiva de avançar nas lutas ambientais?

Michael Löwy – O que fracassou em Copenhague e Cancun foram as políticas dos governos comprometidos com o sistema, que demonstraram sua total incapacidade de tomar qualquer decisão, mesmo a mais ínfima, no sentido de buscar reduzir significativamente as emissões de CO2, responsáveis pelo aquecimento global.

A manifestação de cem mil pessoas nas ruas de Copenhague nem 2009, protestando contra o fracasso da conferência oficial, com a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o clima”, é um primeiro passo, alentandor, no sentido de uma mobilização ecológica radical. Ainda estamos longe de ter uma luta ecológica planetária capaz de mudar a relação de forças e impor as drásticas mudanças necessárias. Mas esta é a única esperança de evitar a catástrofe anunciada.

IHU On-Line – Considerando o contexto de capitalismo exacerbado, acredita que as pessoas estão preparadas para o ecossocialismo?
Michael Löwy – Existe um sentimento anticapitalista difuso na América Latina, na Europa e em outras partes do mundo. O movimento altermundialista é uma das expressões disto. Por outro lado, cresce a consciência ecológica, a preocupação com as ameaças profundamente inquietantes que representa a mudança climática. Mas é no curso das lutas ecossociais contra as multinacionais destruidoras do meio ambiente e contra as políticas neoliberais que poderá surgir uma perspective ecossocialista. Não há nenhuma garantia; é apenas uma possibilidade, mas dela depende o futuro da vida neste planeta.

IHU On-Line – Qual é o papel das populações originárias como os indígenas e quilombolas na consolidação do ecossocialismo?

Michael Löwy – Em toda a América Latina – mas também na América do Norte e em outras regiões do mundo – as populações indígenas estão na primeira linha do combate à destruição capitalista do meio ambiente, em defesa da terra, dos rios, das florestas, contra as empresas mineiras, o agronegócio e outras manifestações da guerra do capital contra a natureza. Não por acaso os indígenas tiveram um papel determinante na organização da Conferência de Cochabamba em Defese da Mãe Terra e contra a Mudança Climática, em 2010, que contou com a participação de dezenas de milhares de delegados de comunidades indígenas e movimentos sociais. Temos muito a aprender com as comunidades indígenas, que representam outra visão da relação dos seres humanos com a natureza, totalmente oposta ao ethos explorador e destruidor do mercantilismo capitalista. Como diz nosso companheiro, o histórico lider indígena peruano Hugo Blanco: “Os indígenas já praticam o ecossocialismo há séculos.

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
24 de fevereiro de 2011
Coluna das quintas

UMA TRÉGUA PARA DILMA
Por Enéas de Souza



Por que estamos em tempo de relativa calmaria? Por que este início de 2011 está assim tão morno? Ao menos, no Brasil. Férias? Não sei, temos poucas declarações fortes, pequenos ataques miúdos – sem muita artilharia – e uma oposição meio sem rumo e sem nenhuma estratégia. A vitória eleitoral da Dilma matou os adversários. A mídia tradicional vai ter que recuar os atacantes porque, na distribuição da verba do governo, ela pode ter um gol contra. E o governo, sabendo disso, manera o jogo, aceita porque tem que fazer uma composição política complexa e sempre difícil de renovar e de sustentar o pacto social que garante um governo. No presente, ele olha os atores: capital financeiro internacional, capital bancário brasileiro, capital produtivo tropicalista, classe média ansiada por novos bens, trabalhadores e o conjunto da população. Como articular esse descontínuo e desigual espectro? Se no ano passado, a temperatura do crescimento foi lá em cima, hoje, agora, neste ano, vai ser necessário controlar os gastos públicos (que foram deslumbrantes no ano eleitoral) e controlar a cabeça desse cão danado que é a inflação.

Mas esse controle e esse cão não podem ser tratados com aquele purgante blá, blá, blá dos neoliberais: ajuste fiscal com corte de gastos. Corte de gastos, nessa visão, atua sempre sobre funcionários, previdência, salários, baixa de impostos para o capital, mas nunca corte de juros, por exemplo. O que a Dilma vai fazer tem que ver com a preservação do investimento, com o arrefecimento de algumas despesas vinculadas a interesses políticos e com uma reorganização, uma hierarquia e uma dilatação no tempo dos dispêndios. Tudo para fazer e preservar o gasto público para que o investimento nacional – PAC, “Minha casa, minha vida”, inversões do setor privado, etc. – chegue a 21/22 % do PIB. Veja-se que, no governo de FHC, mal chegava a 15%. Claro, algo tem que diminuir o ritmo: vai haver uma menor corrida na recuperação de salários, uma distensão na contratação de pessoal no setor público, etc. Logo, é absolutamente indiscutível: vai haver uma racionalidade do gasto. O que não será jamais a velha conversa fiada e afiada do ajuste público neoliberal.

E isso será possível porque se pode combinar uma estratégia de longo prazo com as escaramuças do curto. E essas internamente são limitadas porque o Lula e a vitória eleitoral de Dilma dizimaram a oposição. Embora o neoliberalismo não esteja totalmente derrotado, já que tem tentado retornar ou tem se mantido presente nos Estados Unidos. Contudo, no caso brasileiro, o seu resultado foi e é pífio. Um leite derramado, para falar como o Chico Buarque. As realizações de Lula, sobretudo, em torno de uma política coerente para os grupos desfavorecidos jogaram definitivamente para o silêncio histórico o neoliberalismo, FHC e Serra. Digo bem, silêncio histórico. Embora a dupla venha gastando as suas inodoras palavras nas entrevistas em grandes (?) jornais brasileiros. E até mesmo Alckmin e Aécio Neves parecem chegando à cena política como sombras fugazes. O discurso de FHC, então, tem sido patético, um ex-presidente sem eco, uma voz arrastada e salobra – ele que chegou a ser um grande intelectual, o príncipe da sociologia, pois não é que se encaminha, lomba declinante, para ser uma figura abaixo daquela do ex-presidente Dutra. Ele, FHC, cujo alvo era superar Vargas – “a era Vargas acabou”, disse – e o próprio JK! Pois Dutra, que foi um presidente inexpressivo, contudo teve o mérito de calar-se no seu pós-governo. FHC dá sempre a impressão de que se pedirem, ele volta a ser candidato, pois, para ele, o cargo de presidente foi eterno...

Seu discípulo Serra, com o seu mau humor – nem sequer simpático como o de alguns franceses – mostrou em todos esses últimos anos a incompetência política, revelada por falta de faro, por escolher sempre combates equivocados, por fugir das tarefas árduas, etc. E o mais fantástico, ele, que preservou um ar de personagem nacionalista no escancarado governo globalizado de FHC, acabou desmascarado nas suas falsas posições pró-Brasil. Apareceu fortemente como um homem das privatizações (depoimento de FHC) e arengando de forma pedestre contra a Petrobrás. Porém FHC e Serra e o PSDB continuam lutando, talvez para manter São Paulo. O que se revela neste teatro político algo como um retábulo da Idade Média. Pois como é que esse Estado vota em Alkmin que, na Prefeitura, comandou uma obra de metrô que se tornou uma das mais vastas crateras urbanas de São Paulo e do Brasil? (Isso sem falar das atuais e quase permanentes chuvas de verão!) Lembro, para salientar esse caso, de Godard falando do cinema: o cinema não é uma técnica, o cinema não é o real, o cinema quer ser mais que o real, o cinema é, em verdade, um mistério. São Paulo caminha nessa linha, é mais real que o real. O que é então? É um tema inexplicável: ainda ouvem FHC, Serra e Alckmin. Até bem pouco tempo, não deixavam de escutar o Maluf. Godard teria razão se falasse de São Paulo em vez de cinema: São Paulo é um mistério!

Resta, no PSDB, Aécio. Ele continua com duas grandes qualidades: uma herdada, neto de Tancredo, e uma pessoal, também na linhagem do avô, a serenidade. O seu problema é que sua ideologia mais comum é a do neoliberalismo, porque por sua simpatia poderia ter ameaçado Dilma na eleição passada. Agora vai ter que fazer um esforço tremendo: conquistar o PSDB ou fazer um outro partido. Sabe amarrar alianças, tem fidelidade, e é simpático. E é mineiro. Só que quais são as idéias que vai arrumar para ganhar a população? O incrível de Aécio é que, antes da eleição, ele era um político nacional, poderia ganhar da Dilma. Hoje, mesmo sem ter concorrido – e com o fracasso de Serra e do PSDB, como ideologia e como partido – ele retornou ao nível de político estadual com pretensões a nacional. Logo, vai ter que correr e nadar muito. E o vento no Brasil não está favorável ao caminho neoliberal. Muitos industriais já estão gritando pela entrada do governo na economia e pelo desenvolvimentismo. Portanto, águas revoltas contra Aécio e música para Dilma.

Assim, o que sobra é o seguinte: depois das primeiras vitórias do governo na Câmara e no Senado, a velha pergunta de início de mandato – é preciso dar uma trégua para o governante? – tem, no presente caso da Dilma, uma resposta simples. Não, não é preciso dar uma trégua, porque não existem adversários organizados e fortes e com posições críticas e com ideologias inovadoras. Portanto, a oposição que jogue seu esqueleto fora e comece a construir um outro corpo político, o que requer repensar o Brasil, re-inventar uma nova concepção de país, definir a construção de uma nova e vigorosa estratégia nacional e, quem sabe, a reformulação ou a invenção de novo ou novos partidos. E, sobretudo, emerge uma bela oportunidade: trazer ao primeiro plano da sociedade brasileira figuras políticas de perfil contemporâneo. O passado neoliberal no Brasil acabou!

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

17 de fevereiro de 2011
Crônica das quintas


AS CHEIAS
REVOLUCIONÁRIAS
DO NILO
Por Enéas de Souza


1) Um amigo meu me disse: “olha que o Nilo está crescendo, suas águas estão invadindo e fertilizando as terras do país. Era assim que o Egito antigo se tornava exuberante”. Claro, ele falava por metáfora. Porque, tocava no assunto fundamental dos últimos dias no Oriente Médio. De fato, foram 18 dias de jornadas políticas - fim de janeiro, inicio de fevereiro - na luta contra a ditadura de Mubarak, do Cairo a Alexandria, passando pelo Suez. Os jornais e blogs mundiais gostaram tanto da generosidade do movimento que começaram a falar tanto em revolução quanto em democracia, Seguramente, os manifestantes queriam democracia, mas certamente revolução foi um termo excessivo, ao menos até agora. Por quê? Porque, o que houve foi um protesto exitoso, uma revolta contundente.

2) Todavia, até agora, de concreto pouco aconteceu. Sim, sim, Mubarak saiu, (Mas, continua no Egito) e o vice-presidente Suleiman, ex-chefe da política secreta, eclipsou-se. Mas, o Conselho Supremo das Forças Armadas, dirigido por um possível candidato a novo a ditador, Tantawi, suspendeu a antiga constituição. E convocou, num gesto aparentemente dócil, “notórios juristas” para fazer um esboço de uma nova, a ser votada pela população em dois meses. Só que o Conselho continua no poder e não foi constituído nenhum governo de transição. A despótica e duradoura lei de emergência, que permite prisões arbitrárias, mantém o seu império. Assim, mudou tudo e não mudou nada. Jogo e manobras no teatro da política, que é conflito, oscilando entre a tragédia, a comédia e o drama. Mas, tentemos compreender, mais profundamente, o tema, passando pelos vultos e eventos que aparecem na mídia, para verificar o que está transitando pelo Egito em direção a todo o Oriente Médio.
3) A situação é altamente complexa, mas pelo menos algum esboço, como um pintor que faz uns traços para elaborar um retrato, podemos fazer. E olhando para o princípio do rosto desenhado, ficamos espantados. Por quê? Antes de tudo, o que a gente olha é um contraste muito forte entre os militares e a população. Os primeiros estão no poder há mais de 60 anos, se contarmos Nasser, passarmos por Sadat e chegarmos a Mubarak. O que se vê é que nesta transição continuam no comando, jeitosos, mais educados, mas nunca se esquecer que mesmo durante os 18 dias prenderam e torturaram pessoas. E o que a gente percebe é que esse grupo dominante não é tão inteiriço assim, daí a sua suavidade, os seus passos quase intangíveis na transição.
4) É preciso ver que esta ditadura de Mubarack era uma ditadura militar capitalista, pois o Exército e muitos generais são proprietários, sócios de grandes empresas do Egito. Por isso sempre afirmaram: “O Egito tem que voltar a trabalhar”. Segundo informações, estes empreendimentos são 15% do PIB e 40% da produção industrial. Portanto, os militares são também proprietários a defender as suas fábricas, os seus produtos, os seus lucros. E além de tudo, jogam o seu poder político, pois é através dele, que negociando a ajuda americana, conseguem recursos para aplicarem nos seus negócios. Mas, quando se olha bem, vê-se como o capitalismo contemporâneo neo-liberal foi cruel com este segmento social aliado. Pois, Mubarak queria fazer de seu filho Gamal, o substituto dileto da sua ditadura. E o Conselho foi contra, obrigou ao pai e ao filho desistirem da idéia. E sabem por quê? Gamal estava associado com as multi e abriu um divisão na classe hegemônica, ele do lado neoliberal, os militares do lado do capitalismo nacionalista. Não foi sem razão, razão amarga, que o maior industrial egípcio foi aos manifestantes aliar-se a eles na praça Tahrir.
5) Mas, o grupo dominante articula militares e policiais, industriais e grandes proprietários de terra. Mas, é preciso ver que se havia divisão entre os militares, o segmento policial era extremamente fracionado, desde a guarda de Mubarak, a polícia civil até a polícia de fronteira. E com uma nota e uma imagem picante: viu-se outro dia, na Aljazeera, cenas da passeata de encorpados policias (alguns com os seus famosos óculos escuros, que esta fração de classe usa como marca de sua elegância), a gritarem por melhores salários e reclamando que levavam a culpa de serem os torturadores do regime. Vendo esta descrição pode-se compreender como o Conselho Supremo tem agido sem violências, com bastante delicadeza, sensibilidade política e dando passos cuidadosos. Ou seja, é um bloco que tem armas, mas não tem necessariamente unidade. Precisa negociar as alianças internas. E tudo se complica, carece de tempo, principalmente se se confirmar a informação que o Exército era todo dividido por regiões, competências, etc. e com fidelidades diversas e múltiplas diretamente a Mubarak.
6) Naturalmente, que muita gente discutia, nos blogs, nos artigos, nos comentários, desde a citada Aljazeera até o Asian Times, não deixando de citar filósofos como Slavoj Zizek, repórteres como Robert Fisk, Pepe Escobar, e inúmeros professores acadêmicos de todas as partes do mundo, informando, denunciando, criticando, sugerindo, interpretando, questionando, formulando indagações sobre os acontecimentos do Egito. E uma das questões era a seguinte: quem eram os agentes do movimento, os atores da tal de “revolução”? Quem eram aqueles que enfrentavam os militares?
7) Cheguei a conclusão que houve um combate político envolvendo vários grupos antagônicos sociais, políticos e econômicos, que, no entanto, se juntaram contra Mubarack e os “seus”. Para uma melhor análise partamos dos aspectos econômicos. Três fenômenos graves agregarem a maioria: desemprego enorme, salários vis e aumento crescente de alimentos importados, dominante no Egito. Isto afetava serviços e indústrias, Mas, havia algo grave também no campo: um favorecimento excessivo aos fazendeiros ricos contra fazendeiros pobres. Ou seja, união de desempregados, operários mal pagos, funcionários públicos depreciados, camponeses empobrecidos, etc. Esta base econômica compunha uma parte do que Antonio Negri chamaria de revolução da multidão, que se engrossaria com jovens educados sem emprego, mas com domínio de meios de informação modernos como internet e celulares. E completando godo este conjunto, não se poderia deixar de citar a presença pouco lembrada, mas imagisticamente muito vista, das mulheres. Vigorosas, decididas, fortes; belas ou feias, comoventemente tenazes, decisivas nesta possível revolução.

8) Há que examinar agora, que faziam parte deste ”grupo de baixo”, dos contrários ao regime, a Irmandade Islâmnica. E aí, sobretudo Israel e os americanos, procuraram demonizar esta facção, tentando comparar com os integrantes da revolução islâmica do Irã. Nada a ver. Primeiro, porque, não há agora um movimento para a instalação de uma utopia islâmica de poder político. Os jovens são tocados pelo islamismo, mas como salientaram vários pesquisadores, inclusive Olivier Roy, de forma individual, e separam bem suas reivindicações políticas e as suas questões religiosas. De qualquer forma, a Irmandade Islâmica reclama tratamento político renovado e uma representação adequada na Assembléia. No entanto, se vista mais atentamente, pode-se constatar dois pontos inquietantes nesta agregação que estamos considerando: eles votaram contra os trabalhadores nas greves de 2007/2008 e foram contra os camponeses na questão agrária. É, em verdade, um grupo de classe média e conservador. O que mostra o equívoco americano e israelita em relação à Irmandade e revela a rigidez dos militares na ampliação de sua esfera social.
9) Pois bem, a revolta só se constituirá numa revolução se os militares forem deslocados de seu posto de mando, se a democracia for instalada a partir de um governo provisório imediato, se a lei de emergência for renovada, se novas relações sociais de produção forem instaladas. Mas, uma coisa já se pode constatar. Este movimento está se tornando uma comoção de diversas colorações e diversas características nos países árabes, de um jeito no Bahrein, de outro no Irã, com as oposições começando a ver que as ditaduras e as formas não-democráticas de poder podem ser desafiadas em toda parte, desde os dois países falados até o Yemen e a Arábia Saudita.. Logo, as águas revolucionárias do Nilo podem invadir os solos complexos do Oriente Médio e proporcionarem uma inesperada fertilização geopolítica
10) Mas, talvez, como diz um outro meu amigo, os grandes perdedores já sejam os Estados Unidos e Israel. Os primeiros porque se mostraram inconsistentes na sua noção de democracia, sustentando por 30 anos Mubarak. Democracia um pouco prolongada, não é verdade? E igualmente porque apareceu durante as manifestações na praça Tahrir, e mesmo nas palavras de Mubarak, uma certa aversão a influência ambígua estrangeira. Isso sem falar que, economicamente, a incerteza aumenta para os americanos dada a possibilidade de fechar o canal de Suez à passagem do petróleo. Isto sendo motivo para uma vasta especulação financeira com esta commodity, sem nenhuma dúvida, emergiria como conseqüência uma competição empresarial forte na busca de fonte de energias alternativas. De outro lado, Israel teria um prejuízo significativo conforme os resultados futuros na região: os apoios e acordos com o governo presente, o recebimento subsidiado de gás vindo através do Egito, o apoio deste país ao sítio dos palestinos, e quem sabe, o retorno das questões do acordo de Camp Davis.
11) Para sexta-feira na Praça Tahrir – ou em outra praça do Cairo – está anunciada a comemoração do “Dia da Vitória”, que será mais um passo na questão política. O que nos permitirá ver com mais detalhes qual a capacidade de manobra dos militares e qual o potencial das cheias revolucionárias do Egito, seja para o Oriente Médio ou para outras partes do Mundo. Leibniz dizia algo assim: que um bater de asas de borboleta aqui, causavam inundações na China. E a pergunta que fica é um desdobramento desta: o que causarão - se houver - as inundações do Nilo?

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

10 de fevereiro de 2011
Coluna das quintas




DESSA VEZ NÃO É
APENAS
PÂNICO AMERICANO
Por Enéas de Souza



Claramente o retorno neoliberal ameaça assumir a frente do palco. Não na sua força principal, no máximo de seu vigor; já no seu crepúsculo. E o crepúsculo é a véspera da noite. Um noturno não de Chopin, mas um noturno social tocado pelas órbitas financeiras; e com imagens de quando em vez das escaramuças político-militares. Pois, Martin Wolf, um comentarista conservador do Financial Times, permanentemente defensor das finanças, disse algo surpreendente. A crise financeira mudou muito – e, acima de tudo, ela acelerou a chegada do nosso futuro. A crise, afirmou, foi um acelerador. E aí vem nos argumentos sempre o jogo anglo-saxão. O coitado dos Estados Unidos e da Europa cresceram muito pouco e China, Índia e Brasil cresceram fortemente. (Parece aquela coisa dos anos 80/90, quando os americanos espalhavam o pânico de que os japoneses iriam comandar o mundo. Previam até data!). Mas, o nosso Martin diz que a incerteza está presente todo o tempo. Só que agora, “we know”.


Cena 1 - Se estivessemos num pub inglês, uma cerveja aqui, outra mais tarde e uma terceira logo depois da segunda, o meu colega André Scherer poderia, com seu espírito amigável zombativo, perguntar: “Ora, Martin, você não acha que desde o começo da crise ou, até mesmo, desde 2005, a gente já sabia que a casa estava vindo abaixo?”. Claro, André concederia que a economia é sempre incerteza, mas diria com veemência, ela é de profunda incerteza quando o ciclo termina. E, de fato, foi o que aconteceu. Porém a resistência inglesa é continuada e o Martin, na sua elegância, algo incomodado britanicamente, tentaria ser professoral: “Não, não, André, estou falando do futuro macroeconômico e geopolítico do mundo.” E o André, desafiador e altivo, não hesitaria: “Mas isso nós já estamos falando há muito tempo”.

E, sem dúvida, esse jogo da economia e das finanças já está balançando o salão faz algum tempo. E o que a gente está vendo é, pelo menos, um vasto movimento geopolítico e geoeconômico da China reformulando suas raízes internas, avançando pela América Latina, pela África, pela Europa e beliscando os Estados Unidos. De um lado, fazem o seu joguinho de pequenos aumentos no câmbio junto com paradas estratégicas no referido patamar. E de outro lado, saem às compras e elevam fortemente a demanda de commodities. Claro, junto com as finanças que querem empurrar para a China o crime.. E os americanos estão irritados. Por quê?


Dessa vez não é apenas pânico americano. A China veio para ficar. Tem poder econômico, tem poder político, não tem poder militar, nem cultural sobre o ocidente, mas tem um povo que acha que as coisas estão melhorando muito – a China cresce a dez por cento – e como disse um amigo, é uma nação muito disciplinada e muito obediente. Submissa ao poder, para ser mais claro. E se olharmos bem, lá surge na curva o Jintao, com um sorriso satisfeito, empurrando as suas mercadorias. Pois não foi outra coisa que nos veio dizer Geithner, o secretário do Tesouro americano: a China está com o seu câmbio quase parado; e isto afeta o Brasil. E curiosamente delicado nos disse que o Brasil devia cuidar dos fluxos de capitais, pois estes certamente afetariam a valorização do real. O problema com Geithner é que os Estados Unidos não tem pubs. Talvez num daqueles liquors de estrada a gente pudesse dizer, numa cena 2: “Mas, Thymothy, e esse mundo de dinheiro que o Banco Central americano (FED) está botando nas finanças?”. Geithner, sem nenhuma vergonha, diria: “Meu caro Enéas, eu sou do Tesouro, não quero falar sobre o trabalho do Ben (Bernanke) no FED. Não seria ético”.


Pois, aqui está o nervo da questão e a linha descendente de Obama: o Estado americano jogou trilhões para salvar as instituições financeiras. E, embora o sistema ainda não funcione, a velha idéia da teoria econômica americana está presente: falta de confiança. Isso quer dizer, os banqueiros não conseguem enganar aos banqueiros, e novos produtos da “indústria financeira” não apareceram. Mas, com a contabilidade ainda bichada e com muito dinheiro do FED (ele está botando mais 800 bilhões nesta nova rodada de ajuda), a saída é exportar capitais, aplicar em outras terras. E ora, que surpresa, o Brasil com um taxa de juros espetacularmente alta, com um jogo câmbio-juros notável, torna-se um hospedeiro invejável para os capitais amigos dos Estados Unidos.


E daí, a gente começa a sentir o “revival neoliberal”: as finanças continuam mandando nos Estados Unidos, a indústria voltou a crescer – ou seja, os lucros subindo – sem que ganhe significativamente nas exportações e que aumente de modo insistente os empregos. Mas “a crise foi aceleradora”, exclama Martin Wolf no seu pub londrino. E uma das repercussões no campo das commodities deu-se na elevação dos preços dos produtos agrícolas. E isso pulsa no bolso dos cidadãos do mundo. A comida está cara. E o bolso traz rebeliões e revoltas. O fundo está lá, a coisa combinada: o crescimento da demanda da China, a crise econômica e a volúpia de aplicação financeira. Resultado na geopolítica: é o vento do deserto correndo pela Tunísia, pelo Egito. Vai dar um dominó no Oriente Médio? E, nessa turbulência no Egito, não entra apenas o preço dos alimentos. Entram, também, a necessidade das indústrias bélicas americanas continuarem a vender armas para o Exército local: Boeing, Lockheed e outras congêneres. Basta darem uma olhada no montante da ajuda militar americana: mais de 1,3 bilhões de dólares por ano, para se ter uma idéia do que está em jogo.. E há que considerar que, no coquetel explosivo social, temos ainda a ditadura de Mubarack, a falta de liberdade social, a razzia da censura comunicativa na internet e as novas gerações locais sem emprego. E que fazem os americanos? Somos pela democracia! E vacilam no seu apoio a Mubarack e sustentam Souleiman, o vice-presidente, chamado carinhosamente de “Al-Torturador”. Pode? Como diz um amigo meu, o Malaparte da via Veneto, “Finge que põe o branco para continuar tudo preto. É ou não é?”.


Diante desse avanço chinês, desse revival finanças-indústria bélica sustentando democracias-petróleo (e Israel no Oriente Médio), o que faz o Brasil? Patriotamente, sabemos que somos potência média, isto quer dizer, somos coadjuvantes neste Oscar. O nosso jogo é a lição portuguesa e getulista de todos os tempos: o pêndulo. Uma giro para a pirâmide e outro para o trapézio, como nos assopraria o Raymundo Faoro.


Anteontem, André e eu falávamos: o Brasil apóia os Estados Unidos na questão industrial e, portanto, pende para os americanos na questão do câmbio contra a China. E se inclina para a China na questão agrícola: é bem vindo o aumento das commodities. Mas o slogan da nossa política externa é: “Desenvolvimento e Segurança Coletiva”. O que significa apoio às políticas econômicas que desenvolvam a produção e o emprego e que busquem a segurança no sentido de permitir um trânsito para democracias as mais alargadas possíveis; desejo e projeto que incluam atender as reivindicações populares, o refreio de conflitos estratégicos e a consolidação – em todas as partes do mundo – dos direitos humanos. Não é o perfil que está se encarnando na presidente Dilma?


Mas a esta altura, todos estamos no boteco brasileiro, tínhamos acabado de ouvir Roubini, que, não sem uma certa razão, sapecava que não temos G-20 e sim G-0. Martin Wolf insiste na idéia da aceleração do futuro. Só que shakesperianamente, cena 3, chega à nossa mesa um “clown” brasileiro, um “bêbado de fim de noite”. E ele, voz arrastada, pergunta ao jornalista inglês: “Esse futuro imediato que está chegando é o G-0 ou o futuro do longo prazo?”

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
03 de fevereiro de 2011
Coluna das Quintas



DILMA ENTRE
A GRANDE
E A PEQUENA POLÍTICA

Por Enéas de Souza



O governo de Dilma está recém no começo: um mês e três dias. Avança firme, mas cautelosamente. Este é um governo que tem estratégia e projeto nacional. Projeto que define a posição do Brasil na geoeconomia e na geopolítica mundial e que valida o nosso lado interno com a necessária erradicação da miséria e da ampliação dos direitos da cidadania. Como substrato econômico, sertão relativamente consolidado, vai trabalhar para a indispensável e irredutível reformulação produtiva e financeira do país. Nesse projeto de ambição progressiva há um deslizamento visível: fazer da economia industrial, sob a liderança do Estado, o centro do desenvolvimento brasileiro. Significa este farol que, no jogo dos grupos sociais, Dilma vai se apoiar no capital produtivo e na população de baixa renda, aglutinando empresários, operários, trabalhadores, desempregados, a classe média possível e os deserdados do sistema para o seu apoio. Os lances da política econômica serão evidentemente para o desenvolvimento capitalista do Brasil, com alterações significativas para a população (distribuição de renda e bem estar) e uma menor influência do capital financeiro internacional e do capital bancário brasileiro.

O problema de Dilma não está aí. Aí, ela tem projeto, tem alvos: o Brasil será um dos elementos fundamentais para a infra-estrutura contemporânea do novo modelo de acumulação mundial: energia, matérias primas e produtos alimentares. Por outro lado, há todo um processo de infra-estrutura, logística e urbana, para desenvolver, acompanhado tanto pela tentativa de expansão do comércio externo como pela volta do mercado interno para bens de consumo duráveis e não-duráveis. Como ornamento desse bolo, a sinalização da esteira de um possível desenvolvimento: educação, saúde, segurança, cultura. E se os ventos forem benfazejos, no caso da ciência e tecnologia, o governo poderá ter objetivos de longo alcance: avanço de processos, inovações e produtos ligados às novas tecnologias de comunicação e informação.

Esse é um projeto de Grande Política, pois supõe uma estratégia e aponta, dedo alvissareiro, para um caminho e uma trajetória muito clara. O problema de Dilma não é esse, o problema está na pequena política. Essa é aquela dos jogos vis, das propostas venais, das chantagens políticas, das disputas de cargos, das pressões partidárias. E é aí que Dilma precisa ir além do que já sabe, fazer um longo aprendizado do tecer, do costurar e do articular a pequena e a Grande Política. Como uma fúria negra ou uma dança cigana, ele passa pelo jogo habilidoso de negociar as coisas miúdas sob a ótica iluminadora da visão da política estratégica nacional. Só que nesse nível há que ter vasta experiência, pois há que saber manobrar o trânsito e o tráfico dos ministros, as sinuosidades da burocracia, sobretudo das altas esferas: Banco Central, Banco do Brasil, BNDES, estatais, etc.; há que balancear os interesses nacionais com os interesses dos capitais privados, com os sindicatos patronais e dos trabalhadores. Mas há também que saber jogar com os partidos políticos. Veja-se para efeito de pensamento. Dilma é do PT, mas o seu triunfo foi alcançado graças a Lula. As correntes querem mais e mais. Dilma, claro, armou um esquema ministerial também pensando nisso. Mas esse fato dela ter vindo do PDT conta na hora das pressões políticas do principal partido do governo. A política é a arte de saber lidar também com os preconceitos, terreno fértil do rumor, da trama e das intrigas da pequena política.

E que dizer dos outros partidos? PMDB de Temer, de Sarney, de Renan, PDMB de TODOS. Pois o Temer não quis se colocar como co-presidente do Brasil? Aqui todas pressões e todos os ardis são possíveis e são válidos no jogo político. Mas, aqui, mesmo que Dilma tenha vivido todos esses últimos anos na vivenda de Lula, a experiência deste é intransferível – “flor carnívora que não dá assim no sereno”, como dizia meu avô. Aristóteles já falava: o que nós podemos fazer por alguém é lançá-lo na mesma experiência que tivemos. Deu Lula à Dilma esta possibilidade. E então cabe a Dilma construir a sua rede de idéias e de relações e de valores que fará a abordagem pescadora dos frutos do mar. Mas há que construir no singrar as velas no oceano o talento de empolgar os ministros, de dar um norte à burocracia – na verdade, construir uma nova – de negociar amplamente com parlamentares e partidos, de aumentar a relação e a simpatia com a população.

Agora, entramos na área mais difícil do governo. A negociação no Congresso Nacional. Dilma sabe negociar com parlamentares, políticos, partidos. Aprendizado que fez como ministra. Só que agora o jogo é outro. Trata-se de uma coordenação política geral que envolve tanto os grandes projetos estratégicos para o Brasil como um projeto diplomático, como um jogo denso e árduo do Congresso Nacional, como um extenso combate de negociações sociais.. Por melhores auxiliares que ela tenha – e ela tem – há algo que é peculiar ao cargo de chefia, principalmente no presidencialismo: a sua solidão. Parece banal e simplória essa idéia. Mas não é. Porque em política todos tem interesses, tem visões alternativas, mesmo os seus auxiliares mais diletos. Assim, muitas decisões, muitos lances, muitas iniciativas terão que ser decididas no recanto do cenário dos seus próprios pensamentos. Só ela pode decidir, só ela pode arbitrar, só ela pode usar o seu poder. E como nos mostrava Maquiavel, a melhor decisão não é a que atende as razões do coração, mas as razões de Estado, que são peregrinas, contundentes e robustas. A presidenta na política não tem amigos. Tem conflitos a manobrar, tem discórdias a resolver, tem dilacerações a postergar, tem propostas a construir, tem adversidades a dissolver, tem divergências a superar. É esse jogo que ela vai ter que aprender profundamente. O que significa dizer que ela terá que articular e moldar, conceber e imaginar, agir e suspender ações às flutuações da grande com a pequena política. Pode ter conselheiros, pode ter assessores, pode ter ministros, pode ter companheiros fiéis, mas o gesto definitivo é seu. O lance de dados. A aposta. A decisão, mesmo quando a favor da pequena, é sempre hegemonizada pela Grande Política, que é o caminho de Longo Prazo do Brasil.

Mas, no fundo, no fundo, esse jogo que é de ganho e de perda e que supõe o saber das paixões humanas – logo das tarefas e dos jogos políticos – só ela pode avaliar na sua trajetória para realizar a estratégia nacional e a sua estratégia política. Estamos, portanto, no coração do sucesso de Dilma. Ou sabe que no limite está só e tem sempre que decidir em função da Grande Política ou o governo diminui, vacila e desmaia e cai na miudeza e no balcão de negócios. É fácil saber como se resolve a disjuntiva: a primeira parte, a Grande Política, prepondera sobre a segunda. Só que esta é uma habilidade que tem que ter talento, excelência, domínio das suas emoções, cálculo político, força, capacidade de organização, imantação dos múltiplos níveis de adesão – do ministério à burocracia, do empresariado aos trabalhadores – e habilidade política para aglutinar políticos e partidos. Mas falta um ponto, e ponto decisivo. O que sustenta, no limite, um presidente é o povo. E essa distância entre o presidente e o povo, que é imensa, por causa da estrutura da democracia moderna, para ser atravessada depende muito da imaginação, da audácia, da tenacidade, do trabalho do dirigente para conectar bases políticas e sociais com tal finalidade. E essa estratégia só a presidenta pode ter, pois o seu olhar é o mais alto do que todos os demais. Se esse olhar fracassar, o país também se ferra. Essa solidão é o desafio de Dilma.

Seus primeiros passos são animadores: a constituição de um núcleo de governo de sua escolha pessoal: Fazenda, Banco Central, Planejamento, Casa Civil; a vitória com maioria da base do governo na presidência da Câmara e do Senado; uma presença discreta, mas civilizada na reabertura do Judiciário; e uma abertura diplomática significativa para a Argentina, comovente e promissora, envolvendo discussões de política mundial e regional, direitos humanos e uma colaboração pública e de negócios.


Que Dilma esteja mais para Getúlio do que para Dutra, mais para Juscelino do que para Jânio, mais para Lula do que para FHC!