A GALÁXIA DO PODER NO ENCONTRO OBAMA/LULA
Por Enéas de Souza
O encontro Obama-Lula, Lula-Obama não tem simetria por natureza, não representam um encontro de países do mesmo nível de poder. Os Estados Unidos são a nação líder do mundo e o Brasil, quando muito, o porta-voz da América do Sul. Assim, quando os dois presidentes, ambos extremamente simpáticos, sentam nas poltronas da Casa Branca, as determinações políticas, econômicas e ideológicas que atuam sobre ambos são totalmente diferentes.
Os dois pés de Obama
O presidente americano tem claro que estamos num momento de grande turbulência e que os Estados Unidos precisam reorganizar forças, usando tanto o soft quanto o hard power, como diria o Joseph Nye. As ações americanas tendem a passar de um ultra-conservadorismo belicoso para um conservadorismo progressista e modernizante, numa complexa e controversa travessia histórica.
Obama está interessado em solucionar a questão financeira, mas não será fácil domesticar, com o novo marco regulatório, a sanha leonina – mesmo que a de um leão ferido e baleado – que vem do ventre das finanças. Por outro lado, precisa pôr um pé no livre comércio, para poder abrir mercados para a sua economia produtiva. E colocar o outro no protecionismo, para alcançar não só a retomada da produção americana (que o slogan de setores industriais, “Buy América”, nos indica), como também conduzir a transformação da economia do mundo. Porque vai haver na estrutura econômica uma mutação, profunda e inevitável, que Obama espera que os Estados Unidos liderem, da infra-estrutura energética e da alteração tecnológica de diversas indústrias. É o tal de longo prazo que Obama, noutro cenário, no Congresso, no discurso do “estado da nação”, falou como horizonte do itinerário americano no longo prazo.
Vai ter que resgatar o multilateralismo consentido
Obama precisa resgatar a liderança americana do unilateralismo selvagem da dupla Bush/Cheney, e voltar a dois pontos ideológicos decisivos: o sonho americano, que é uma forma de vender o american way of life ao mundo, mas também aquela posição de país líder, líder da economia e da política, campeão da liberdade, cuja figura imaginária se originou na Segunda Guerra Mundial. Uma espécie de movimento duplo: resgate da liderança política dentro de um multilateralismo consentido e de uma liderança moral, pela América ser uma terra da Lei. Lideranças profundamente desgastas pela era Bush/Cheney desde o triunfo da eleição fraudada na Flórida, da teoria do unilateralismo (teoria da guerra preventiva, do direito de intervenção americana em qualquer lugar, do eixo do mal, etc.) até a questão da Tortura, do Patriotic Act, da Prisão de Guantánamo, etc. Ou seja, quando Obama se movimenta como presidente, quando está ali sentado em face de Lula, o operário tornado presidente, vai junto com ele este gigantesco trabalho político, econômico, social e ideológico de comandar a restauração do caminho americano.
Tragam a ficha dele!
E o que trazia o Lula? Lula trazia, através de sua vasta simpatia, uma posição menos frágil do Brasil, diferente daquela que outros presidentes brasileiros levaram quando estiveram nos Estados Unidos. O país está mais forte. E qual é ficha que Obama recebeu? A economia brasileira, apesar da queda do PIB no último trimestre de 2008, tem as contas externas bem equacionadas; tem um saldo de reservas importante – do qual, 125 bilhões aplicados em Letras do Tesouro Americano; tem a possibilidade de ser uma das economias que, em 2009, pode até crescer positivamente; tem um perfil energético ponderável; tem a taxa de juros mais alta do mundo – o que permite possibilidades para atuação da política monetária; tem um superávit fiscal que lhe dá oportunidade de fazer um pacote de estímulos sem problemas, na sequência do PAC.
E nesta ficha pode constar também que, embora tenhamos uma liderança flutuante na América do Sul, construímos uma força capaz de ser uma espécie de porta-voz desta região e temos sido, com habilidade e oportunidade, um certo para-raio para pressões americanas. E somos assim porque construímos uma posição de global player médio, capaz de nos articularmos e discutir questões em várias zonas do mundo. Por último, podemos dizer que somos parceiros deles, que somos geopoliticamente seguidores de sua liderança, mas não somos alinhados automaticamente, somos, por exemplo, contra as guerras americanas no Oriente Médio.
Parêntese para uma observação abstrata
(A política é esta comédia com fundo de tragédia. Ou seja, o que funciona como móvel da política é o antagonismo, o confronto, o jogo de forças, a antinomia, a disjuntiva. O manejo desta separação, desta fenda, através do poder, depende da habilidade do governante e de seu conjunto de valores. Nesse sentido, é sempre importante fazer pontes para estabelecer harmonias e ter, à disposição, lugares onde se possa negociar. Vale também saber usar a força das idéias e das vantagens, resistir sem provocar a cólera ou a ira, saber perder, mas renovar ações, jogar nas franjas das oportunidades e ter atenção para as hesitações dos outros, ter posturas criativas e conceber astúcias. Enfim, a política é sempre a tensão e a elasticidade, é sempre a busca de não rebentar e não destruir os adversários, de oferecer derrotas e dar sempre espaços de saída, de sofrer percalços e renovar manobras, etc. Só que a força é a força, e se torna ardilosa quando tem projetos. E no caso deste encontro da Casa Branca, ambos os presidentes tem projetos. Mas a força de um é muito superior à do outro. É dentro deste enquadramento que os presidentes e estes dois Estados precisam encontrar uma forma de diálogo, de equilíbrio, de harmonia. De diálogo, de equilíbrio e de harmonia dentro, isto é fundamental, da diferença de poder).
Os três níveis da disputa entre um grande ator e um ator coadjuvante
Em relação aos Estados Unidos, o Brasil quer, em primeiro lugar, que os americanos, via G-20 ou não, controlem as finanças (“Coragem para estatizar” disse o Lula na semana passada); proponham uma definição de quadro regulatório para o sistema financeiro, com conseqüente restabelecimento do crédito – não há capitalismo sem ele; façam um compromisso com a instauração e a manutenção de um ambiente não protecionista; conduzam e ouçam os seus parceiros na construção de uma nova e mais ampla ordem econômica e política, sobretudo no que tange as instituições para-estatais mundiais, do tipo FMI, Banco Mundial, OMC e a ONU, onde o Brasil aspira a uma cadeira no Conselho de Segurança. O Brasil gostaria, em verdade, de uma liderança mundial mais multipolar.
Em segundo lugar, observamos um nível que envolve questões mais particulares entre Brasil e Estados Unidos. Nesta reunião em Washington, por exemplo, veio apenas uma parte dela à superfície, que foi a questão marcante do etanol. Ali estavam em jogo, além do protecionismo, a pesquisa, a tecnologia, recursos financeiros, associação de projetos e colaborações, etc. Porém, cabe ressaltar que ronda neste patamar uma oculta questão, uma questão preventiva, uma questão de futuro. Como jogar com as ambições e as cobiças históricas americanas em relação a seus vizinhos? No nosso caso, por exemplo, como jogar com a questão energética (petróleo, biocombustíveis), como jogar com as questões dos recursos naturais e com a situação ambiental (obviamente, a Amazônia), sabendo-se que o Brasil não tem uma adequada força militar para a sua proteção?
E aí passamos para um terceiro nível, que é a relação dos Estados Unidos com o continente sul-americano. Há muitas coisas para o Brasil defender. Defender a América do Sul, para defender-se também. A começar pela sustentação das opções democráticas diversas das nações da região, e até mesmo da América Latina (casos especiais da Bolívia, da Venezuela, de Cuba, etc.e etc.). Dentro dessa visão, evitar que a defesa das nações sul-americanas esteja plenamente nas mãos dos Estados Unidos, pois existe essa iniciativa da UNASUL de constituir uma defesa comum no e para o continente. E essa forma se reforça diante do pretexto (tratado no encontro Obama/Lula) do tema do narcotráfico. O Brasil manobra junto com grande parte do continente para trazer a América do Sul para os americanos do sul.
Por Enéas de Souza
O encontro Obama-Lula, Lula-Obama não tem simetria por natureza, não representam um encontro de países do mesmo nível de poder. Os Estados Unidos são a nação líder do mundo e o Brasil, quando muito, o porta-voz da América do Sul. Assim, quando os dois presidentes, ambos extremamente simpáticos, sentam nas poltronas da Casa Branca, as determinações políticas, econômicas e ideológicas que atuam sobre ambos são totalmente diferentes.
Os dois pés de Obama
O presidente americano tem claro que estamos num momento de grande turbulência e que os Estados Unidos precisam reorganizar forças, usando tanto o soft quanto o hard power, como diria o Joseph Nye. As ações americanas tendem a passar de um ultra-conservadorismo belicoso para um conservadorismo progressista e modernizante, numa complexa e controversa travessia histórica.
Obama está interessado em solucionar a questão financeira, mas não será fácil domesticar, com o novo marco regulatório, a sanha leonina – mesmo que a de um leão ferido e baleado – que vem do ventre das finanças. Por outro lado, precisa pôr um pé no livre comércio, para poder abrir mercados para a sua economia produtiva. E colocar o outro no protecionismo, para alcançar não só a retomada da produção americana (que o slogan de setores industriais, “Buy América”, nos indica), como também conduzir a transformação da economia do mundo. Porque vai haver na estrutura econômica uma mutação, profunda e inevitável, que Obama espera que os Estados Unidos liderem, da infra-estrutura energética e da alteração tecnológica de diversas indústrias. É o tal de longo prazo que Obama, noutro cenário, no Congresso, no discurso do “estado da nação”, falou como horizonte do itinerário americano no longo prazo.
Vai ter que resgatar o multilateralismo consentido
Obama precisa resgatar a liderança americana do unilateralismo selvagem da dupla Bush/Cheney, e voltar a dois pontos ideológicos decisivos: o sonho americano, que é uma forma de vender o american way of life ao mundo, mas também aquela posição de país líder, líder da economia e da política, campeão da liberdade, cuja figura imaginária se originou na Segunda Guerra Mundial. Uma espécie de movimento duplo: resgate da liderança política dentro de um multilateralismo consentido e de uma liderança moral, pela América ser uma terra da Lei. Lideranças profundamente desgastas pela era Bush/Cheney desde o triunfo da eleição fraudada na Flórida, da teoria do unilateralismo (teoria da guerra preventiva, do direito de intervenção americana em qualquer lugar, do eixo do mal, etc.) até a questão da Tortura, do Patriotic Act, da Prisão de Guantánamo, etc. Ou seja, quando Obama se movimenta como presidente, quando está ali sentado em face de Lula, o operário tornado presidente, vai junto com ele este gigantesco trabalho político, econômico, social e ideológico de comandar a restauração do caminho americano.
Tragam a ficha dele!
E o que trazia o Lula? Lula trazia, através de sua vasta simpatia, uma posição menos frágil do Brasil, diferente daquela que outros presidentes brasileiros levaram quando estiveram nos Estados Unidos. O país está mais forte. E qual é ficha que Obama recebeu? A economia brasileira, apesar da queda do PIB no último trimestre de 2008, tem as contas externas bem equacionadas; tem um saldo de reservas importante – do qual, 125 bilhões aplicados em Letras do Tesouro Americano; tem a possibilidade de ser uma das economias que, em 2009, pode até crescer positivamente; tem um perfil energético ponderável; tem a taxa de juros mais alta do mundo – o que permite possibilidades para atuação da política monetária; tem um superávit fiscal que lhe dá oportunidade de fazer um pacote de estímulos sem problemas, na sequência do PAC.
E nesta ficha pode constar também que, embora tenhamos uma liderança flutuante na América do Sul, construímos uma força capaz de ser uma espécie de porta-voz desta região e temos sido, com habilidade e oportunidade, um certo para-raio para pressões americanas. E somos assim porque construímos uma posição de global player médio, capaz de nos articularmos e discutir questões em várias zonas do mundo. Por último, podemos dizer que somos parceiros deles, que somos geopoliticamente seguidores de sua liderança, mas não somos alinhados automaticamente, somos, por exemplo, contra as guerras americanas no Oriente Médio.
Parêntese para uma observação abstrata
(A política é esta comédia com fundo de tragédia. Ou seja, o que funciona como móvel da política é o antagonismo, o confronto, o jogo de forças, a antinomia, a disjuntiva. O manejo desta separação, desta fenda, através do poder, depende da habilidade do governante e de seu conjunto de valores. Nesse sentido, é sempre importante fazer pontes para estabelecer harmonias e ter, à disposição, lugares onde se possa negociar. Vale também saber usar a força das idéias e das vantagens, resistir sem provocar a cólera ou a ira, saber perder, mas renovar ações, jogar nas franjas das oportunidades e ter atenção para as hesitações dos outros, ter posturas criativas e conceber astúcias. Enfim, a política é sempre a tensão e a elasticidade, é sempre a busca de não rebentar e não destruir os adversários, de oferecer derrotas e dar sempre espaços de saída, de sofrer percalços e renovar manobras, etc. Só que a força é a força, e se torna ardilosa quando tem projetos. E no caso deste encontro da Casa Branca, ambos os presidentes tem projetos. Mas a força de um é muito superior à do outro. É dentro deste enquadramento que os presidentes e estes dois Estados precisam encontrar uma forma de diálogo, de equilíbrio, de harmonia. De diálogo, de equilíbrio e de harmonia dentro, isto é fundamental, da diferença de poder).
Os três níveis da disputa entre um grande ator e um ator coadjuvante
Em relação aos Estados Unidos, o Brasil quer, em primeiro lugar, que os americanos, via G-20 ou não, controlem as finanças (“Coragem para estatizar” disse o Lula na semana passada); proponham uma definição de quadro regulatório para o sistema financeiro, com conseqüente restabelecimento do crédito – não há capitalismo sem ele; façam um compromisso com a instauração e a manutenção de um ambiente não protecionista; conduzam e ouçam os seus parceiros na construção de uma nova e mais ampla ordem econômica e política, sobretudo no que tange as instituições para-estatais mundiais, do tipo FMI, Banco Mundial, OMC e a ONU, onde o Brasil aspira a uma cadeira no Conselho de Segurança. O Brasil gostaria, em verdade, de uma liderança mundial mais multipolar.
Em segundo lugar, observamos um nível que envolve questões mais particulares entre Brasil e Estados Unidos. Nesta reunião em Washington, por exemplo, veio apenas uma parte dela à superfície, que foi a questão marcante do etanol. Ali estavam em jogo, além do protecionismo, a pesquisa, a tecnologia, recursos financeiros, associação de projetos e colaborações, etc. Porém, cabe ressaltar que ronda neste patamar uma oculta questão, uma questão preventiva, uma questão de futuro. Como jogar com as ambições e as cobiças históricas americanas em relação a seus vizinhos? No nosso caso, por exemplo, como jogar com a questão energética (petróleo, biocombustíveis), como jogar com as questões dos recursos naturais e com a situação ambiental (obviamente, a Amazônia), sabendo-se que o Brasil não tem uma adequada força militar para a sua proteção?
E aí passamos para um terceiro nível, que é a relação dos Estados Unidos com o continente sul-americano. Há muitas coisas para o Brasil defender. Defender a América do Sul, para defender-se também. A começar pela sustentação das opções democráticas diversas das nações da região, e até mesmo da América Latina (casos especiais da Bolívia, da Venezuela, de Cuba, etc.e etc.). Dentro dessa visão, evitar que a defesa das nações sul-americanas esteja plenamente nas mãos dos Estados Unidos, pois existe essa iniciativa da UNASUL de constituir uma defesa comum no e para o continente. E essa forma se reforça diante do pretexto (tratado no encontro Obama/Lula) do tema do narcotráfico. O Brasil manobra junto com grande parte do continente para trazer a América do Sul para os americanos do sul.
No teatro do reposicionamento
Concluindo: este encontro entre Obama e Lula, um ao lado do outro, foi um encontro histórico. Expôs mudanças significativas nas duas sociedades, basta assinalar as origens dos dois presidentes (um negro e outro operário). Mas no plano das nações, guardando todas as conformidades do Brasil no cenário mundial, foi também um encontro para iniciar, no interior de uma vasta crise econômica e política, legada pelo capitalismo neoliberal e guerreiro das finanças de Bush/Cheney, um novo reposicionamento das duas nações numa nova geopolítica e geo-economia mundial ou, na linguagem e na interpretação de José Luis Fiori, dentro da “quarta expansão explosiva do sistema mundial”.
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