domingo, março 15, 2009

A CRISE DA CRISE
(ou lembrando a úlcera de Nelson Rodrigues)

Por Enéas de Souza

O que temos mostrado neste blog, o André e eu, são as manobras, muitas vezes nada sutis, das finanças criarem um movimento social para que as pessoas sustentem a socialização das perdas e a privatização dos lucros. O que é interessante é que em nome de várias idéias como “to big to fail”, “risco sistêmico”, “good bank/bad bank”, etc., as palavras passaram a valer mais que a moeda e a trapaça é vendida como a salvação da sociedade. Mas, as coisas não são unívocas, pois a classe empresarial não é só composta de banqueiros, temos produtores, comerciantes, prestadores de serviços. E embora todos são solidários no lucro e até se submeteram ao processo de financeirização da economia, agora, quando o sol dos ativos financeiros se tornou um sol negro, a solidariedade não é a mesma. E as divergências que existiam passaram para a serem abertas, passaram ao primeiro plano das lutas sociais.

Descobriram que a crise atingia também a produção

Apesar da crise das finanças e de uma superabundância de ativos financeiros, houve também um excesso na produção, fenômeno que já descrevemos várias vezes como superacumulação produtiva. Podemos compreender o resultado. Quando se acumula muito capital, e em seu nome muitas mercadorias e elas não são vendidas normalmente, os mercados ficam abarrotados e é preciso vendê-las a preços vis. O que ocorre é muito grave: o lucro baixa, a produção não continua no seu ritmo, cai e, algumas vezes lenta e outras furiosamente, as empresas começam a despedir funcionários e trabalhadores, por causa dos custos. Uma enorme e vasta fila de desempregados entra também para o primeiro plano do teatro da política.

O tratamento das questões produtivas e das questões dos empregados por parte do Estado não tem a mesma consideração que as questões financeiras. Primeiro, porque o Estado tem um engenho administrativo e burocratiço com pendor financeiro. E tanto o Banco Central como o Tesouro (Fazenda/Finanças nas múltiplas terminologias) são gente ligadas, de fato ou de cabeça, ao grupo das Finanças. Portanto, o Estado tem um viés financeiro. E nesse momento, as assistências aos bancos, que comprovam o afirmado, são volumosas e imediatas. Enquanto que os apoios ao setor produtivo ainda são medíocres. E mesmo os pacotes econômicos, que levam em conta as obras públicas – ou estímulos fiscais como são ditos – tem porcentagens do PIB, muito modestas. A França e Alemanha estão dedicando a esses pacotes apenas 1 a 2% do PIB. A produção pode se virar, as finanças não.

Os estranhos do ninho dourado

Mas, há um ponto muito estranho nesse processo. A atenção à massa da população trabalhadora, dos assalariados, dos empregados (e dos já desempregados). A eles, a menor assistência possível: um seguro desemprego nos países avançados, um serviço público de saúde, escola, e olhe lá, segurança precária e previdência inexistente para muitos etc. Este capitalismo financeiro e sua cara política, o neoliberalismo, trouxeram uma falsa idéia de que o mercado resolveria tudo. A capitalização de tudo resolveria tudo, inclusive dos serviços de saúde, da previdência, da escola. Não resolveu. A impaciência da população despertou e a fantasia de vencedores, a idéia de ganhar dinheiro fácil em aplicações financeiras em títulos, nas bolsas, etc. asseguraria felicidade: casa na cidade, no campo e na praia, e, de repente, haveria emprego a escolher, escolas que trariam colocações notáveis, a saúde privada daria soluções médicas para as doenças, etc. Estas ilusões do capitalismo financeiro e o do neoliberalismo acabaram.

A luta política e social leva a disputar o espaço do governo, o espaço do Estado. Os financistas acham que o Estado é seu, os da produção querem um atendimento aos seus problemas. Mas, o maior problema, começa a aparecer: os trabalhadores entram em cena para pedir também proteção pública às suas necessidades. Coisa interessante: no Brasil, com estes programas de Bolsa Família, Luz Para Todos, aumentos significativos do salário mínimo, um aumento do tempo do seguro-desemprego, etc., ou seja, os programas sociais e o preço do trabalho levaram a segurar a queda da renda da sociedade trabalhadora. E poderão impedir um caos social maior.

As pílulas ideológicas vendiam a eternidade no instante

O interessante nisso tudo é que temos uma crise na crise. Porque, o primeiro momento da crise foi logo a busca de salvação dos bancos. Pouco se falava da crise produtiva. Mesmo autores importantes deixavam de lado a superacumulação produtiva. Depois, meio envergonhados, os líderes econômicos e políticos começaram a tocar no assunto. E os trabalhadores, impactados com as despedidas e com temor do desemprego, caiam das nuvens de um mundo que sonhavam sempre magnífico, do espetáculo, da promoção social constante. As finanças vendiam os seus pacotes de ideologia para alimentar exatamente isso: dar a sensação de eternidade no instante. Porque o instante é o tempo do mercado financeiro.

O fim é o começo do princípio

Depois de algum tempo, os trabalhadores viram que não eram levados em conta. Só foram considerados, no caso americano, quando estavam pendurados em hipotecas impagáveis e começaram a sofrer as ações judiciais. Pois bem, agora a crise está dando uma volta na sua espiral, no seu parafuso. E estamos vendo uma lâmina que corta forte: crise na crise. Porque a crise que era das finanças, passou para a produção, está agora nos empregados. Eles começam a sair à rua a protestar. Então, uma coisa a gente vê: a unidade social que existia no neoliberalismo e no capital financeiro desapareceu. Sobrou não a conciliação de interesses, mas a divergência de posições. E de agora em diante, cada vez mais, à medida que a crise progride, a corda vai ser puxada para aqui, para ali, para lá. Há sinais de que a luta social voltou para o cenário. Ela sempre esteve aí, mas como a úlcera do Nelson Rodrigues, era apaziguada com um copo de leite. Agora, a úlcera está se tornando emergente. A luta política é o centro de tudo, ela vai ser longa e intensa - e vai definir para onde vai este Estado.

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