30 de abril de 2009
OS CEM DIAS DE OBAMA
Por Enéas de Souza
Obama é a cara da atual situação dos Estados Unidos, da crise e do mundo. Sua grande característica é a vontade de alterar o que estava em andamento no Ocidente e na América do Norte. O estado de coisas, cuja imagem absurda era Bush, e pior ainda, Cheney, mostrou a dupla face da insensatez e do ardil insuspeito da cobiça. Guerra e predação, tortura e descalabro. Com a eleição de Obama este clima começou a se alterar. Chegou ao fim a mentira como estratégia de poder. Um dia ela, a mentira, deu meia volta e se jogou nos braços da verdade. Pois, foi o que aconteceu com o governo neoliberal americano. Um desastre absoluto: derrota na guerra do Iraque, um fracasso na expansão financeira, uma figura de país campeão da liberdade em farrapos. Os 100 dias de Obama foram taxativos, Obama veio para mudar. Mas, só não fazer o que Bush e Cheney fizeram, não basta, há que fazer muito mais. Os Estados Unidos estão devendo muito a si mesmo e ao mundo.
Obama e o desejo do eleitor
A mudança de uma determinada situação nos tempos que correm é de extrema dificuldade. A metamorfose da sociedade muda como a crise; sua forma pode ser expressa pela metáfora da escada. E de uma escada descendente. Uma escada diferente daquela do famoso filme de Hitchcock, “Vertigo”. A crise é também uma escada perigosa. Mas é uma escada na qual cada degrau é como se fosse filmado em câmera lenta. Veja-se bem, a descrição tem uma nuance. Primeiro a gente desce rapidamente o degrau, mas o patamar aonde se vai pousar o pé, este sim, este é captado numa lentidão que engana. Tem-se a impressão que quando se põe o sapato na horizontal, as coisas mudaram, o mundo deixou de cair, e tudo, simplesmente tudo, já passou. Vem, então, aquela sensação de um falso alivio, a sensação de que, enfim, o pior já foi embora. E logo em seguida, quando os nossos espíritos estão aliviados e queremos até comemorar, tomar um vinho e apreciar uma boa mesa, sempre vem aquele chato que diz: não, o pior ainda está por vir. Porque esta é a realidade da crise atual. E, Obama é o contra-movimento deste movimento de queda. Ele pretende um dia dizer: sim, o pior já passou. Mas, o diabo que isso vai levar tempo. Lembro duma americana que no segundo dia do presidente americano disse: “Estou decepcionada, ele não mudou nada”. O eleitor é como o espectador de televisão que acha que o mundo se alterou porque agora ele pode sonhar em comprar um 4 x 4, altamente poderoso. O eleitor hoje age como um consumidor. Mas, o que ocorre é que o desejo de ter o produto não faz com que o produto chegue as suas mãos. Há muitas coisas para fazer no desenrolar da crise. A grande diferença é que Obama sabe que ela não passou e que vai levar tempo. Mas, a boa notícia é que tem estratégia e planos. O que não quer dizer que ele vai ganhar. Quer dizer apenas que sabe em que arena os conflitos vão aparecer.
A dança dos escorpiões
Obama sentiu, por ocasião da sua candidatura, que emergia um momento novo na história americana. Investiu contra o todo soi disant forte Estado bushiano. Jogou e venceu. E venceu fulminantemente: os Estados Unidos queriam outra coisa. Mas, se as estruturas estão corroídas como um corpo degradado, elas não estão destronadas, nem são ainda ruínas, estão abaladas, mas não foram suprimidas. Elas estão aí. E por isso, o primeiro grande problema de Obama é como superar a presença inquietante das finanças, presença que se cravou no interior do Estado constituindo uma cisão importante e decisiva. Temos – e continuamos tendo - um Estado das finanças dentro do próprio Estado. Ele é formado pelo FED, um órgão autônomo, cuja presidência tem sempre o comando de alguém que pensa com a cabeça do mercado, com a visão das finanças. Este Estado dentro do Estado hoje é formado também pelo Tesouro, lugar que normalmente vem alguém da área do capital, alguns com um aconchego em Wall Street, como Rubin no tempo de Clinton e Paulson, no final do Bush II. Nesse momento está ali Timothy Geithner, um pró-finanças indiscutivelmente. Mas, não só nesta paróquia se sente o odor das finanças. O presidente Obama tem um National Economic Council para assessorá-lo, agora ocupado pelo inefável e conturbado Larry Summers. Um camaleão econômico, no presente com um pé no keyneisanismo mas com a alma impregnado pela força dos ativos financeiros. Contudo, as coisas não ficam somente nas costas desta tríade. Paul Volker, o homem que instalou o dólar forte em 1979, como presidente do FED, é também um economista da área financeira. E adivinhem o que ficou para ele? O planejamento do futuro. Ou seja, Obama está cercado. Trata-se de um cerco complicado, pois as finanças, embora ainda jogando de mão, padecem de uma vasta desaprovação popular, como também têm nas suas entranhas, ativos tóxicos que trabalham para torná-la mais frágil ainda. O cerco se configura um tanto desesperado porque o setor quer evitar o que está no horizonte de médio e longo prazo da economia americana: a mudança de um modelo de acumulação financeira para um modelo de acumulação produtiva. Ou seja, a metamorfose da função das finanças no processo econômico. Mas, se for pelo cerco dos escorpiões isso nunca será feito. Logo, estamos num jogo como fazem as equipes futebolísticas argentinas: “jugar a morir”. A questão que não deixa de estar fustigando é a seguinte: conseguirão as finanças sobreviverem ou bloquearem a explosão de ativos inoperantes no interior do sistema bancário e das instituições financeiras não bancárias? É daqui que virá a resposta da mudança ou não do papel das finanças na economia americana e mundial.
Quando pular fora é a solução
As finanças não apenas cercam a presidência, mas dominam totalmente uma parte do Estado. Porém, se eles têm um território onde decidem soberanamente, as suas decisões passam por circuitos e mecanismos econômicos que tem, no entanto, uma dinâmica singular e específica. A política decide sobre a economia, mas a economia tem trajetórias próprias que podem impedir e barrar as decisões políticas. Então, sublinhemos o que se escuta: os bancos estão quebrados. Considere-se conseqüentemente o atual “stress test”. Ele já mostrou que dois dos maiores bancos, o Citigroup e o Bank of América, precisam de capital. Pois, convivemos aqui com uma das questões chaves desta crise. Estes bancos, como tantos outros, trabalharam com capital alavancado, aliado ao capital próprio, e chegaram a tentar valorizar, em ativos descabelados, fartamente multiplicados sem nenhum controle, montantes expressivos do primeiro. O resultado não poderia ser outro, a decomposição de sua realidade fictícia, e a necessidade de botar capital para tornar a ficção, real. Visto deste ponto de vista, as finanças estão em situação crítica. E nada diz que a situação financeira geral não pode se agravar mais, estourar mesmo. Quem diz que os hedge funds não vão entrar em situação crítica? Quem pode afirmar que os fundos de pensão não serão abalados por novas e futuras quedas das bolsas? E quem pode prever que as bolsas não cairão mais ainda, fazendo um mergulho no abismo, provocando com que a riqueza abstrata das corporações financeiras, industriais, comerciais, de serviço, baixe irreversivelmente de valor? Ou seja, o atual domínio das finanças pode se reverter e terminar numa necessidade de intervenção estatal, na famosa nacionalização do sistema bancário. E por isso, como a presença de um monstro num filme de horror ninguém pode predizer que este ser não cometerá um ato de insanidade. Estará, então, o happy-end fora do mundo americano? Por outro lado, todo analista se pergunta: qual é a jogada de Obama? Mostrar a corda na casa de enforcado? Pois, parece ser esta a sua tática; está clara nos seus discursos e no seu projeto: fazer com que as finanças voltem a sua função básica, fornecer crédito, e fornecer crédito não para a especulação, mas para a produção. Por esse motivo, as perguntas tomam a seguinte direção: as finanças querem e aceitam este projeto? Obama conseguirá pressionar, ao longo do tempo, as finanças para a posição desejada? Por enquanto, que nem peixe fisgado pelo anzol, as finanças se debatem para escapar. Conseguirão pular fora? E entrando pela porta lateral, quem sabe pela dos fundos, retornará, com força inusitada, a temática da nacionalização?
Há uma contradição que atingirá as finanças?
Não há saída para Obama, a sua luta é aguardar e esperar. Mesmo, porque ele não é pela eutanásia do rentista. O que ele deseja é reformulação da estrutura das finanças. A questão é que o que está em jogo é uma recomposição delas. Normalmente, o processo capitalista é de concentração e centralização de capital. O que não está claro é como esse processo está se dando e vai se dar no campo financeiro. Muitos falam que os vencedores serão o Goldman Sachs e o JP Morgan. Mas, tudo nas finanças, apesar das famosas idéias de transparência e de simetria de informações, tudo é obscuro e nebuloso. Há que haver recomposições. E o que se sabe nesse momento é que o Citi e o BofA estão entrando na dança das cadeiras. Naturalmente, que estas instituições têm história, têm imagem, têm experiência acumulada, mas nada garante as suas sobrevivências, sobretudo do jeito que eram. Aliás, nada mais será igual nesse setor. Acabaram as alavancagens endoidecidas, há um reclamo de regulações, precisa-se de um novo desenho do sistema financeiro, clamam-se por supervisões rigorosas, examinam-se diversas atitudes de prudência nas práticas bancárias, etc. Ou seja, o que os 100 dias de Obama trouxeram é que foi dado um tempo para que as finanças se ajeitem. Não sabemos quanto tempo, mas o certo é que elas não conseguiram ainda vislumbrar um caminho real de salvação. Mesmo porque é preciso ver que há uma contradição muito forte interior do sistema de negócio no mundo de hoje, que atinge todas as corporações, incluindo a financeira: a contradição entre acionistas e dirigentes. Pois, se os acionistas aportam capital, os dirigentes, que são empregados de luxo, têm o domínio das instituições. E como empregados – e mesmo como capitalistas na prática – não querem perder os bônus que negociam e arrancam das instituições pela sua capacidade de manejar ou manipular o mercado. Então, os planos de salvação do Estado salvam as instituições e salvam os acionistas, mas não salvam os banqueiros. E estes querem não só a salvação das suas entidades, mas a continuação de seus privilégios, dos seus bônus, e por isso, fecham o conhecimento da situação dos bancos. E evidentemente, a crise vai se espichar por mais tempo, enquanto este ponto não for resolvido. Por isso, muitos empresários afirmam que a atual maneira de fazer negócio está terminada. Dito economicamente: a governança corporativa é uma forma que fracassou no desenvolvimento do atual capitalismo? A questão se encaminha para uma boa pergunta: é, por esse caminho, que as finanças começarão a perder a hegemonia e a possibilidade de definir as atividades econômicas?
Para onde aponta o dedo de Obama?
Os 100 dias de Obama trouxeram uma nova visão da economia. Seu pensamento passa pelo longo prazo. E o que ele vê é um novo padrão de acumulação. Primeiro, através de uma nova base, uma renovação da infra-estrutura econômica, o que significa, inevitavelmente, cuidar da questão energética. Para onde ela vai, ele não sabe bem, mas sabe que sem a questão energética a economia capitalista não poderá ir muito longe. Não apenas a economia capitalista, mas a vida no planeta. Então cabe, como uma nova matéria pictórica num quadro, uma mudança da infra-estrutura. E em segundo lugar, essa própria questão energética vai provocar a constituição de outras inovações tecnológicas que vão alterar a estrutura industrial atual. E não se pode dizer que são somente mudanças em relação à energia, mas podemos pensar em inovações tecnológicas resultantes da concorrência capitalista ou como inovações tecnológicas oriundas da evolução das próprias tecnologias existentes, etc. Ou, seja Obama apontou com isso para uma nova realidade econômica, fruto tanto do desdobramento produtivo propriamente dito, mas também como desdobramento da valorização de ativos da crise financeira vigente. Assim, olhando este panorama, temos que observar que a proposta de Obama para o longo prazo na esfera produtiva é o núcleo central de uma estratégia. Uma estratégia que serve para dar uma direção para onde a economia deve seguir, sobretudo se pensarmos que o seu objetivo é eliminar inclusive a visão financeira atual do comércio exterior, porque envolve tanto a construção de uma economia exportadora, como uma economia superavitária de capital. Ou seja, o oposto do que temos nos dias de hoje. Dois pontos são fundamentais para tal - e os 100 dias de Obama deixaram claro -: um projeto econômico para um novo padrão de acumulação e uma nova posição da economia financeira, fornecedora de crédito de acordo com as exigências das atividades produtivas deste novo padrão. Os 100 dias de Obama proporcionaram, como se pode ver, a colocação em jogo de uma estratégia econômica de grande profundidade, algo que servirá para sustentar e reformular o poder americano e a posição da economia dos Estados Unidos no mundo. E com isso, como desdobramento efetivo, mudar radicalmente a economia mundial.
Quem viver, verá?