quinta-feira, setembro 01, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
01 de setembro de 2011
Coluna das quintas

O RITMO DA CRISE 
E
A PREPARAÇÃO DO BRASIL
Por Enéas de Souza

1) A noção de crise econômica é muito engraçada. Alguns pensam que a crise é uma coisa abrupta, que acontece e o mundo despenca. Não é uma ideia que vem da história, talvez seja uma que venha dos mercados financeiros. Porque o mercado é assim, sobretudo o das bolsas, vai subindo, vai subindo, oscila um pouco, mas sobe constantemente, e depois, bumba meu boi, leva um tombo prá valer. E para se recuperar leva tempo. Às vezes, nem se recupera, mas as finanças vendem – via sua linha auxiliar, a mídia – que o mercado se recuperou, para tentar novamente especular. Olhem as bolsas, nenhuma sequer voltou ao nível de antes da crise de 2007/08. Então, uma crise no mercado financeiro não identifica uma crise econômica, e muito menos crise social. Apenas indica. Só que desta vez, ela não só apontou como se derramou pela economia.


2) Pois o primeiro aspecto que temos a considerar é que a crise é um processo histórico e um processo social, e se dá na longa duração do capitalismo e na desestruturação de um padrão de acumulação. Então, o que importa dizer, curioso leitor: a crise é um processo; e um processo dentro de um padrão de acumulação. E um processo, na verdade, que exibe uma dinâmica que enlaça patamares, degraus, pendentes, trânsitos, passagens. E como ele é cíclico, constrói momentos ascendentes, momentos descendentes. E nesses, observam-se rupturas, caídas lentas, caídas bruscas, previsíveis umas, imprevisíveis outras, surpreendentes muitas vezes, mas que seguem uma tendência, um sentido, uma direção. E, graficamente, como os ciclos são curvas, há pontos que sobem, pontos que descem, pontos de máximos, pontos de mínimos. E, principalmente, pontos de inflexão e pontos de reversão. E um processo de base econômica encadeia também aspectos sociais e políticos, por isso a dialética geopolítica e geoeconômica faz parte constante da construção da longa travessia secular do capitalismo. Ou pode inscrever as possibilidades de surgimento histórico de um desmanchar desse capitalismo. Foi o que ocorreu com o surgimento do socialismo/comunismo, desafio que durou significativamente até o final dos anos 1980, início dos 1990. Mas é o que se viu: o que não mata, rejuvenesce. Ou engorda. Da ameaça do socialismo veio o nefando, sobretudo para os pobres, neoliberalismo financeiro e de guerra, glória dos financistas e deste maligno Dick Cheney, que terminou dizendo, na sua autobiografia, que a tortura é legitima porque salva vidas... (sic!).



3) Pois estamos em crise. As finanças vieram abaixo em 2007/08. E a crise que ali se instalou, iniciou um processo de queima de capital financeiro e produtivo, na direção de um novo capitalismo da informação, ou, como gostam de dizer alguns, o capitalismo cognitivo. E por consequência, também uma crise na hierarquia dos Estados. Bem, essa crise é exuberantemente insistente, porque a reprodução do capital não pode ser mais como era. E então, como uma casa que não serve mais, vai ter que se tirar o sofá da sala, vai ter que se alterar o desenho interno da residência, o projeto requer mudanças, ampliações. E enquanto o projeto não sofre alterações, por muitas razões, a bagunça continua, a ventania aparece de vez em quando, e entra pela janela entreaberta do nosso capitalismo, varrendo ambições e esperanças. E a solução desse quebra-cabeça e dessas palavras-cruzadas não se resolve facilmente. Os homens vão ter que suar muito, gastar o cérebro, pensar o quadro de maneira diferente, projetar novos dinamismos. E como já sabemos, não são os capitais, por eles mesmos, que vão resolver assim no mais. Dependem, para que não haja uma destruição em massa, de um suicídio avultado, prejudicial a muitos capitais e à sociedade, do Estado.



4) Fiz toda uma volta sobre a noção e a realidade de uma crise, para nos colocarmos novamente, como num avião, diante do panorama em face. O sentimento é de que estamos, no momento, numa pausa. Não se sabe como ela vai continuar, mas, ao mesmo tempo, as pessoas sentem medo, sobretudo quando pensam ou quando ouvem notícias. E vejamos como as coisas estão.



5) Olhando o eixo americano, as coisas estão assim: crise fiscal descambando, como um passe errado da meia-cancha, para a crise política. O Tea Party sacudiu o Congresso e colocou o governo no córner. Temos a limitação do teto da dívida, logo, o governo não pode gastar; e se desencavou na luta parlamentar uma queda de gastos públicos, controlada pelo Legislativo. Isto bate tanto no consumo do governo como no consumo da população. Ora, o efeito da demanda em queda é um movimento de recessão. Bernanke, o homem do FED, com sua barba de fauno grego, medita, medita e está pensando em botar mais dinheiro na economia. Em nome técnico: vem aí o “quantitative easing”, agora de número 3, já que lançou dois. Ora, o que Bernie (olhem o meu grau de amizade com ele!) está pensando é: o dinheiro está escasseando, quem tem não empresta, não põe no interbancário, não dá crédito para a produção, nem para o consumo. Então, vamos jogar dinheiro pelos os bancos. Mas aí é que está: dinheiro que passa pelos bancos não significa crédito para investimento, para consumo. Geralmente, significa dinheiro para especulação. E hoje, dinheiro até para ficar em caixa. Keynes chamou isso de “preferência pela liquidez”.



6) E o que faz o Executivo americano? E o que faz o Obama? Em princípio, o Tea Party, pelo caminho da resolução do Congresso, com a união moderada (sic!) de republicanos e democratas pela direita, amarrou o Executivo. Ele tem ajuda do FED para controlar, minimamente, o mercado financeiro, inclusive bloqueando a tentativa desesperada de capitais europeus para conseguir algum no mercado americano, e também, para amparar o Banco Central Europeu pondo dólar, sob forma de “Swaps”, na Europa. God bless América! Fora disso, o Executivo está tentando fazer um jogo de troca de passes, gastando o tempo, até que surja alguma oportunidade, uma abertura no muro da crise. A grande novidade é trazer Alan Krueger, um especialista em trabalho, para o Conselho Econômico de Obama. Chega de gente como Lawrence Summers! Mas, de qualquer forma, é uma inclinação muito pequena. Há que achar urgentemente um meio de baixar esta taxa de desemprego de 9%. Será que Alan vai dar alguma sugestão alvissareira?



7) Enquanto isso, o treinador do time, o popular Obama, não jogou a toalha, deixou-a no banheiro da Casa Branca, e saiu para as ruas. Vai combater cidade por cidade os adversários. Agora mesmo conseguiu a oportunidade de falar no Congresso Americano no dia em que estará em jogo mais uma rodada da disputa de candidatos a candidato do Partido Republicano. O panorama da luta está dado: até 2012 teremos uma batalha duríssima, pior que aquela de Stalingrado na segunda guerra mundial. Obama vai ter que doar sangue para conseguir atrair o povo americano. Vejam “A Árvore da Vida”, que além de filme místico, mostra como a família dos Estados Unidos profundo não tem como compreender a crise, e como os homens da grande metrópole, herdeiro da família dos anos 50, também estão perdidos na cidade fluida, na arquitetura líquida da época do capital financeiro. Eles estão todos perguntando: que mundo é este? Os Estados Unidos é um grande povo místico tentando responder, pragmaticamente, à crise. Só que, para resolvê-la, não basta pragmatismo, tem que ter teoria. Foi assim nos anos 1930, quando Roosevelt começou a saída e Keynes escreveu a sua “Teoria Geral”.



8) Por isso, Obama saiu para as ruas. Porque uma teoria social só pode ser aplicada se tiver sustentação política. Soluções à direita e à esquerda até podem existir, mas só se ganha se tiver povo na defesa do governo que aplica a teoria. Povo e classes sociais. Vejam o discurso de Obama no Estado da Nação, logo depois da eleição, e ali estava posta uma direção de política e de política econômica. Povo, Obama até teve, mas classes sociais não. As finanças não foram, a produção muito pouco, e a classe média centrista e direitista, o pessoal da “Árvore da Vida”, abominou. Talvez agora ele possa ter população e grupos sociais a seu favor, sobretudo porque as próprias finanças estão novamente ameaçadas. O Bank of América, da estratégia “to big to fail”, está mais perto do fail, mesmo sendo big. E já podem sentir que ficar na mão da política do “Tea Party” é um passaporte para não poder usar o recurso do “risco sistêmico”, a ajuda do Estado em caso de desastre como 2007/08. Ou seja, podem explodir sem que o Estado possa ajudá-los.



9) Já a Europa é aquela fragilidade dos Estados e dos bancos. Podem morrer abraçados. E o Banco Central Europeu tenta dar um jeito, com ajuda do Banco Central Americano, com esse Fundo de Estabilidade, que é uma barreira de areia de praia diante do oceano. A solidariedade dos países europeus não existe, um plano de avanço político e social – como, por exemplo, a criação de um Tesouro Europeu, um projeto de Estados Unidos da Europa – parece fora de cogitação. Então, a solidariedade não é um personagem do teatro da política européia. Nem mesmo para lançar Eurobônus, porque esses títulos teriam por garantia os Estados Nacionais. E a Alemanha não está afim, Ângela Merkel tem mesmo enormes dificuldades internas para ir adiante nessa idéia do Eurobônus. Então, o barco está indo meio à deriva, com Trichet do BCE remando, monetariamente, numa crise que além de monetária, é fiscal. Conseguirá driblar as questões que vem dessa área?



10) Atualmente, o que se nota no movimento geral do capital, europeu ou americano, é uma tentativa de buscar refúgio na preferência pela liquidez – da qual já falei lá em cima. Pois, todos estão tentando escapar de comprometimentos maiores em face da recessão, que já está dançando os primeiros rocks, as primeiras músicas, há uns três/quatro anos. Falam de uma crise em W, esta de 2011 seria o segundo V. Na verdade, não é uma crise em W; na verdade, é a continuação do processo da crise americana, da crise do capitalismo, um processo de desvalorização do capital fictício e do capital real, seja das empresas financeiras, seja das empresas produtivas. Esta crise não é uma oscilação, nem uma pequena queda e nem mesmo uma segunda seguindo a primeira. Trata-se de uma crise duradoura, aquela da mudança de um padrão de acumulação. Precisa-se destruir um e começar outro.



11) Pois o Brasil – diante deste quadro, pintado desta forma – percebe que o estouro vai chegar aqui por algum lado que não se tem certeza. Numa certa medida já está vindo pela área comercial, mas pode vir também pela área dos bancos. Bem, de qualquer maneira que chegue a estratégia do governo brasileiro me parece clara: proteger e fortificar o Estado de todas as formas possíveis. Pois é claro, só um governo forte, econômica e administrativamente bem postado, pode rebater os golpes, diminuir os impactos e apoiar a economia, sejam as empresas, seja a população. Veja-se: o Brasil é um país emergente, mas não é um país determinante na crise. Os pontos fortes dela são os Estados Unidos (e a Inglaterra) e a Europa, negativamente; e China, positivamente. Só que a avalanche da crise vem, até agora, pela decadência do eixo dominante, o americano-europeu.



12) Em face disso, o governo, que é uma entidade econômica, além de política, tem que se preparar e dar conta de sua possível resposta. Como o cara que vai competir no surf e mostra a sua competência ao dançar numa onda, assim o Brasil, cria sinalizações importantes: mantém altas reservas internacionais, aumenta do superávit primário, previne aos bancos de que jogar contra o dólar e a favor da valorização do real pode ser a sua fatalidade, trata de canalizar os investimentos para a produção interna, tenta manter o projeto dos programas sociais de forma ativa e permanente, etc. Observação: a questão do superávit primário não se trata de medida neoliberal. Se trata de medida de autoproteção. E como é que se sabe isso? Nenhuma medida é liberal ou desenvolvimentista em si, uma decisão só tem sentido dentro de uma estratégia. Então, se vê a questão do superávit primário ligando uma à outra.



13) E dentro da coisa mais geral, o governo Dilma não tem estratégia neoliberal de deixar a regata correr sem apontar direções, sem proteger ativamente a própria posição econômica do Estado. Numa economia capitalista financeira, onde o capital tem liberdade para se expandir, o limite dessa ação – se o governo também defende a população – consiste no impedimento de que as finanças – no caso brasileiro, os bancos – joguem expressamente contra os outros agentes econômicos, contra o Estado, contra os assalariados em geral e, inclusive, contra si. Assim, numa crise, a forma de um governo atuar começa com a sua capacidade de ter fortaleza, de ter instrumentos, enfim, de ter bala para disparar os seus tiros. A economia é um western, um filme de bandido, um filme de guerra, um filme de assalto, onde quem não tem arma de boa qualidade, dança. E dança feio, porque no jogo da economia, não só dança o Estado como dançam todos.



14) Dessa forma, o superávit primário tem que ser olhado no conjunto das medidas já tomadas ao longo dos últimos tempos, desde o corte de gastos até a manutenção das reservas internacionais para nos defendermos contra a fuga dos capitais. Porque a estratégia da construção de um futuro para o Brasil, no novo cenário geopolítico/geoeconômico, está num momento tático decisivo: defender o país dos danos de uma crise que vem de fora, que vem dos Estados Unidos e da Europa, sem perder a visão do longo prazo. Essas medidas podem até levar a diminuição do crescimento do PIB. A gente pode sentir, a demanda está se inclinando para baixo, seja pelo consumo privado, seja pelo investimento privado, seja pela descida dos preços das commodities (em função de uma certa diminuição do crescimento chinês e da queda da especulação financeira nestes mercados), etc. Mas trata-se de uma tática de prudência numa estratégia de longo alcance, enquanto o panorama e a direção e o andamento da “destruição criativa” do capitalismo, como falava Schumpeter, não estiver claro. A destruição, efetivamente, tem dado sinais sonoros em quase todas as partes, mas o lado criativo, as perspectivas para sair na direção de um novo padrão de acumulação, não. Talvez um pouco na área da informática, nas atividades da Google, da Apple, etc. Mas um ciclo é uma tensão entre forças que trazem a economia para baixo e forças que tentam jogar a economia para cima. Por enquanto, a incerteza é a única mulher a querer dançar. A música parou, mas o baile continua. Não está claro o que se vai tocar em seguida. Não se trata só de rock, tem outros sons. A única coisa certa e fundamental é que os Estados, sobretudo os dos países emergentes, têm que estar se preparando para o furacão que pode chegar. E esse furacão não se chama Irene, se chama capitalismo em crise.




PS – Não acreditava que o Banco Central fosse, ontem, quarta-feira, baixar a taxa Selic. Me enganei. Ela desceu meio ponto percentual. Isso aponta a meu ver para duas coisas. Uma primeira: a presente decisão sugere um fortalecimento maior do Estado brasileiro, inclusive com uma pequena diminuição do custo da dívida. E, revela também que a Dilma está conseguindo articular o Executivo e o Banco Central para a mesma direção. E o que pode ser uma grande novidade: para uma mesma visão da crise. Contudo, os problemas de unificação do Estado brasileiro por parte da presidente encontram dificuldades na organização e no desembaraço da política no Legislativo.



Já a segunda coisa que quero salientar está no fato de que a baixa da taxa de juros e a aproximação do Banco Central podem levar igualmente a um entrosamento mais sólido, político e econômico, com o setor produtivo privado. E daí, quem sabe, a possibilidade de investimentos empresariais, num tempo mais cedo do que se poderia pensar, como resposta à crise. E isso sem afetar os programas sociais!

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