quinta-feira, setembro 08, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
08 de setembro de 2011
Coluna das quintas

O DESAFIO
DO CAPITAL FINANCEIRO
Por Enéas de Souza

1) O economista francês Robert Boyer numa entrevista recente dizia: “É preciso, então, recolocar o diabo das finanças na sua caixa. Salvo que a operação é muito delicada: o capital financeiro é internacional e, então, difícil de controlá-lo. E ele se tecnificou de tal modo que os ministros das Finanças (no Brasil, chama-se ministro da Fazenda) são incapazes de apreender a matéria, afim de melhor enquadrá-las. Assistimos a uma perda de poder e de expertise dos políticos”.

2) O grande centro da política econômica, no Brasil e no Ocidente, no momento, é a ruptura com o neoliberalismo. O que significa trazer de volta o Estado ao comando da economia. Dito de outra forma, a política deve liderar, indicar, controlar, fiscalizar, apoiar, financiar, incentivar, etc., as atividades econômicas. E como nós não estamos no pós-crise, mas numa crise que pode levar ao pós-neoliberalismo, o que nos interessa aqui é esse passo robusto do fortalecimento democrático do Estado. Só que esse fortalecimento vem pela aglutinação das partes seccionadas pelas finanças. Pois na era do capital financeiro, todo o Estado, embora fragmentado, funciona como uma reserva de caça para as finanças. É preciso que o Estado reformule-se e volte-se para uma concentração de poder que favoreça a sociedade como um todo.

3) A reserva de caça funcionou e funciona assim: em primeiro lugar, o Estado se afasta da direção, da regulação, do planejamento, do financiamento, do investimento e da produção da economia, deixando que toda a política microeconômica dos capitais dirija a macroeconomia, sustentando apenas numa política econômica parcial e reduzida, que permita um ambiente macro de estabilidade para as aplicações financeiras. É a festa do cassino e do espetáculo do carrossel dos títulos privados e públicos. No fundo, o que interessa ao capital hegemônico é, somente, política monetária, política cambial, política financeira e política fiscal. Ou seja, o alvo era e é criar uma arquitetura de organização financeira da moeda, dos juros e da fiscalidade do Estado. E claro, controlar os dois quindins estatais, os dois órgãos sublimes, a Fazenda e o Banco Central. Para que? Para que esta política esteja a serviço de um modelo de acumulação financeira. Se a gente olhar bem, esta estapafúrdia taxa de juros do Brasil, que ninguém compreende, só tem sentido se ela foi e é fixada pelo Banco Central com a finalidade de permitir rendimentos elevados aos bancos nacionais e às finanças internacionais, bem como aos investidores individuais ou da tesouraria das empresas. É uma política do capital para o capital.

4) Na economia, todo mundo tem lado. E o lado do Banco Central sempre foi o das finanças. Mas é preciso dizer que existem enormes teorias tentando demonstrar que a economia matemática e estatística constrói uma tecnologia adequada para conduzir o Estado com neutralidade, eficiência e em benefício social. Isso não se comprova facilmente porque a economia brasileira passou mais de vinte anos tendo um crescimento medíocre. E os bancos – não se sabe bem porque – cresceram furiosa e audaciosamente. Qual será a razão?

5) O movimento recente do governo Dilma avançou num ponto decisivo. Esta já é uma das grandes novidades do seu mandato. Ela está dando continuidade e ampliando a retomada da unidade do Estado, começada no governo Lula. Estruturalmente, como é que funciona isso? De um lado, está reunindo e consolidando o que esteve separado: o Executivo, a Fazenda e o Banco Central. Lula conseguiu reaver a segunda, mas o terceiro ele só se aproximou e conseguiu, no máximo, dar um bom cerco no Meirelles, sobretudo com a ajuda da Fazenda. E isso que a crise permitiu um solavanco no Banco Central, que continuou e continua representante das finanças, mas que percebeu que a estratégia do governo na crise de 2007/8 deu resultados magníficos. Em vez de sucesso das finanças, aumento de consumo para a população.

6) E aqui está o ponto que o texto de Boyer permite compreender bem. No final ele diz: “Assistimos a uma perda do poder e da expertise dos políticos”. Chegamos a um ponto central, uma praia nova. Claro, Boyer está falando principalmente da Europa e dos ministros da Fazenda europeus. No entanto, pode-se ampliar a visão. A gente pode sustentar que, de um modo geral, os políticos estão distanciados do que é, de fato, esta economia financeira que está dinamitando o mundo. Sabem apenas que ela está, mas de um modo racional não têm idéia de como funciona e do que fazer para sair do buraco. O que me parece claro, como um girassol num canteiro, é que o grande lance do Brasil é que ele tem teoria para saber o que está acontecendo. E tem estratégia, e tem tática, e tem condições de dialogar e decidir por quais caminhos seguir. E isso permite uma unificação, tanto quanto possível, do Executivo e, inclusive, do Banco Central sob o comando da Presidência. Tudo parte de diagnósticos muito semelhantes da crise, sem que isso impeça o desempenho autônomo e criativo dos órgãos.

7) O passo importante para tal é a unidade do Estado, a tentativa de que os órgãos do governo sigam uma trajetória projetada de ação política e estratégica que venha do centro político e econômico do Executivo. Existem, a meu ver, dois pontos a serem examinados nessa unidade. De um lado, a recuperação da liderança do Estado na condução da política e da economia do país. E, de outro, a prioridade do investimento sobre a especulação financeira. Ora, a condução da política começa quando se tem um projeto de nação, mesmo diante da mundialização do capital financeiro. Pois, o governo Lula, desde cedo, lançou, com eficácia e talento, uma política externa que tornou não só o presidente como o ministério de Relações Exteriores e o país, respeitados em toda parte. E, no correr da carruagem, quando os constrangimentos externos da dívida brasileira foram diminuindo e cessaram, ocorreu um processo de recuperação da integridade do Estado. Começou, sobretudo com o aparecimento da crise, uma atuação econômica forte do setor público. Voltou-se a pensar em política econômica, em planejamento, em financiamento, em apoio à produção. E, desde cedo, o governo Lula fez uma política coerente de atendimento da população, desde aumentos reais de salário mínimo até um programa de habitação como Minha Casa, Minha Vida.

8) Houve o reaparecimento, ideológico e real do investimento e do emprego e do desenvolvimento econômico. E apesar do PAC, do retorno da Petrobrás ao campo estratégico da nação, a especulação continuou a ser uma atividade do setor bancário, mas contrabalançada, principalmente na crise, por um movimento significativo do sistema bancário público (Banco do Brasil, Caixa e BNDES). Essa resistência, diante do tumulto que veio dos Estados Unidos e da Europa, foi não só uma atitude ativa/reativa do governo brasileiro, e que mostrou capacidade de pensar a economia e de agir com rapidez, como força para aglutinar as classes sociais em torno da sua estratégia nacional.

9) O Brasil tem mostrado capacidade de pensar a economia. E pensar a economia no contexto da próxima expansão do capitalismo. O resultado disso foi compreender o primeiro ponto: o Brasil está preparado minimamente para o novo padrão de acumulação ou para a nova economia do século XXI, como dizem alguns. Emergem o petróleo (com o pré-sal, como a alavanca de Arquimedes), a produção de alimentos e as matérias primas minerais, para compor basicamente a infra-estrutura energética e alimentar do mundo. O segundo ponto está na tentativa de defender o Brasil em termos de sustentação das indústrias disponíveis (algumas ameaçadas), bem como avançar nas áreas de tecnologias médias e, se possível, entrar nas altas tecnologias, sempre observando a concorrência multinacional. Obviamente, surge a importância de fazer um mix de exportação e de mercado interno, extremamente aceitável para que o país não retorne a uma certa primarização da economia.

10) Todavia, o que me parece significativo por parte do governo é ter na jaqueta o cuidado de pensar o Brasil como um todo. Daí a necessidade de situá-lo politicamente no planeta e ter clara a posição que o Brasil vai ter nesta próxima etapa. E lógico, armar uma postura política e estratégica, construindo uma solidez diplomática e militar do tamanho de nossa realidade, de nossas possibilidades e de nossa ambição. E ressalta uma questão fundamental: a articulação da política e da estratégia do país com um diagnóstico e uma proposta de ação que avalie o preparo da nação para a amplitude da crise. Essa combinação de política e de economia, quem sabe, responda às questões de Boyer sobre o capital financeiro, sua tecnicalidade e sobre a capacidade política dos governantes de preparar uma visão ampla das soluções para o mundo. O Brasil parece que está em condições de cometer esta audácia. Porque audácia, de vez quando, é bom e anima a moçada.

11) Nesse sentido, a correção do diagnóstico e das respostas, que o governo brasileiro tem proposto para a sua proteção na crise, levou o próprio Banco Central a perceber a necessidade de afinar a sua atuação na mesma pauta do Executivo. E veja como a Dilma tem agido: ela tem falado sempre em crise, e que o Brasil está preparado para o que vier. E, de outro lado, cabe sublinhar uma aceitação do que me parece a grande lição de Getúlio, a grande lição de Lula, que a política brasileira só avança socialmente se existe uma articulação entre a produção e os trabalhadores. E, se em tempos de diagnóstico e de preparação, o governo não bate de frente com o setor financeiro – até procura orientá-lo – o que importa nisso tudo é cimentar mais um tijolo na unidade do Estado. E ela se amplia quando atrai o Banco Central para uma política e para uma economia nacionalmente mais coerente e mais coesa – mesmo numa época onde este modelo de acumulação financeira não foi posto na caixa. Diria Machado de Assis, mesmo quando ele não foi devolvido à caixa de Pandora.

12) A análise de Boyer nos permite fazer uma boa radiografia do Brasil, na medida em que temos uma conjuntura de maior afirmação da estratégica coerente e tendencialmente unitária do Estado brasileiro. É possível medir os avanços do governo do nosso país com os do governo americano, onde a Presidência quer ir para um lado, as finanças para outro e o Pentágono, ora se aliando a essa, ora pondo em questão diretamente o Executivo. Pode-se medir com o governo dos alemães, cuja incompreensão da Europa é tão absurda, que chega a não entender que a Alemanha está metida até os ossos na crise do continente. Sem os demais países, a Alemanha não escapará. Talvez a sua crise possa ser menor, mas será irremediável, pois apesar da não solidariedade dos Estados europeus, a União Monetária os jogou na solidariedade do desastre. Então percebemos que, de fato, os políticos estão distanciados de um conhecimento da dimensão do capital financeiro, da sua crise e das soluções para minorá-la. As finanças parecem outra montanha, alta e inatingível. Por isso, a impressão e o temor que as populações e mesmo os mercados têm, a cada instante, de pane nos países desenvolvidos.

13) Já a China talvez seja, no momento, um dos Estados que tenha mais capacidade de entender o que está acontecendo. Talvez as suas dificuldades sejam da impossibilidade de não ser suficientemente grande para tornar-se a locomotiva do mundo. Para isso, precisariam ter uma moeda que pudesse disputar a posição de reserva de valor com o dólar. Cuidamos, agora, em assinalar uma segunda e importante deficiência: a sua incapacidade de conduzir uma liderança tecnológica necessária para que se forme um novo padrão de acumulação produtivo. Já o terceiro ponto de carência, porém com solução ao seu alcance, é o encaminhamento de uma reorganização interna da sua economia, ameaçada por problemas produtivos, por problemas de disputas entre as províncias, pela difícil solidificação do seu sistema financeiro, pela crise imobiliária que está vindo, etc. E, dentro da reformulação chinesa, podemos enxergar, igualmente, a sua dependência nas questões vinculadas ao comércio exterior (exportações e importações) à ampliação da sua articulação produtiva na Ásia, à gerência de possíveis perdas das suas reservas internacionais no caso de uma crise forte da economia mundial. E, como um sinal vermelho, a pergunta fatal: numa crise do Ocidente, a China entrará também em crise? De qualquer modo, se o touro pegá-la, a gente sabe que a China – se valer o que fez até agora – tem um perfeito entendimento do capitalismo que está nascendo, mesmo porque o próximo capitalismo, como diz meu amigo André Scherer, vai vir com um Estado muito forte. E isso a China já tem. O seu problema será como desenvolver a sua espada principal. Ela também tem estratégia – e muito visível: a de ser um pólo antagônico aos Estados Unidos. Só que ela deseja enfrentá-lo com melhores condições políticas, econômicas e sociais que as do momento. O que pensa o leitor: será possível?

14) Então, Boyer nos conduz a perceber uma multiplicidade de aspectos inscritos no atual momento, como, por exemplo:
I) a distância entre a política e a economia;
II) a tremenda dificuldade do eixo americano (USA-Inglaterra-Europa) em conseguir compreender o que está acontecendo, pelo relativo despreparo dos seus dirigentes e dos Estados em encarar e enfrentar a realidade do capital financeiro. O problema maior é a sua insistência em manter as instituições sob o figurino neoliberal;
III) a história recente dos Estados dos países emergentes (Brasil e China, por exemplo) talvez dê a essas nações uma preparação mais adequada do que aos desenvolvidos para enfrentar a crise. Sobretudo porque, para sobreviver, elas tiveram que ajustar uma concepção do papel do Estado fora da visão neoliberal. O que não quer dizer que esses países não serão afetados pelo desdobrar da economia em pendente negativa;
IV) a saída da crise partirá da tentativa de compreende-la analiticamente, de armar uma defesa para o curto prazo e de tentar buscar ligar a trajetória da conjuntura presente ao longo alcance da economia capitalista, através de um projeto de conexão e transformação do atual padrão para o novo padrão que virá;
V) a parte central do projeto é uma modificação da posição das finanças e do banco central no conjunto do Estado, trabalhando a economia para recompor a produção e construir um novo padrão de acumulação;
VI) nesse caminho de fortalecimento do Estado, nessa trajetória da passagem de um padrão de acumulação para outro, o encaminhamento das questões sociais serão decisivas, e sobretudo, virá com mais força, dada a perspectiva do Estado forte, a questão das liberdades, da distribuição da renda, da cultura e da democracia.

O presente está em ebulição. A pergunta é: como será a face do futuro? Para que você, arguto leitor, possa responder, é preciso considerar, pelo menos, a inclinação da geopolítica para um antagonismo USA e China, os desafios do capital financeiro à economia e à política, as necessidades de unidade do Estado e da mudança de sua estrutura, e a exigência de reformulação e metamorfose da própria política diante da complexidade do mundo contemporâneo e da sua crise de civilização.

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