quarta-feira, setembro 28, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
28 de setembro de 2011
Coluna das quintas

DILMA
E O GRANDE LANCE DIPLOMÁTICO
Por Enéas de Souza


1)Tinha comentado o discurso da Dilma na parte que toca a ONU e o capital financeiro, falando de sua estréia como estadista, na semana passada aqui no Sul21 e no blog do Econobrasil. Tratava-se de desvendar a atitude da presidente diante de algo decisivo, o impasse da economia mundial, ao menos no tocante à necessidade de dominar a fera solta do século, o capital financeiro. E ela não teve dúvidas, mostrou que o Brasil tem clareza do que fazer e sabe que a questão é política. Política ao nível do Estado, política ao nível dos grupos dominantes, política ao nível da mundialização e, principalmente, ao nível das finanças. E o seu lance foi um toque de espada, porque revelou, por contraste, que os Estados Unidos estão perdidos. Estão sem lance e sem idéias. Ou estão, pelo menos, na geladeira até 2012, ano da eleição presidencial. E, até lá, o governo está dominado, à direita, pelas finanças e, à ultra-direita, pelo Tea Party. Logo, a Casa Branca está esgarçada, prisioneira como um carro nos engarrafamentos das seis da tarde. Embora, no palco americano, ainda haja outro personagem – o Pentágono e os exércitos de aluguel, as empresas de serviços militares – que, atiçando fogo, estão saindo ao mar pela via da super-ultra-direita. O melhor que pode acontecer é chegarmos ao porto com um governo de centro-direita. E por essa raia que Obama pensa triunfar. Imaginem vocês se os Republicanos ganham. Trata-se de um partido com uma combinação potencialmente explosiva, e que entra no alerta da Dilma, de que pode haver “uma grave ruptura política e social”. Daí se pode perceber quão importante e percuciente foi a sua intervenção na ONU, tocando a melodia do sussurro diplomático. Colocou um asterisco na liderança dos Estados Unidos. E legou uma caixa de mapas onde estão ali os caminhos a serem percorridos, a serem examinados, tão luminosos como o copo de leite de Hitchcock em “Notorius”. Foi o que tentamos mostrar na semana passada.


2) O lance diplomático da Dilma foi contundente, exibido como uma flor de lírio, porque disse, em todos os subtextos, que o Ocidente está nu, e que tem que haver uma grande sinergia – ela chamou de cooperação – para que a economia mundial possa se resolver. Mas, não apenas a economia, a política também. Dois problemas avultam na face extremamente grave do cotidiano planetário. E é a partir daí que tudo pode começar a ser resolver. Pelo lado econômico, a dívida soberana e o capital financeiro; pelo lado político, a questão da Palestina e do Oriente Médio. O primeiro toca a Obama, pelo emperramento da economia de Tio Sam, e também a Ângela Merkel, em sua resistência a avançar na questão européia, seja em termos de fundo de resgate, seja em termos de ações solidárias. E o segundo, toca aos Estados Unidos, ao Pentágono, a OTAN e a Israel. Na questão européia, está imerso também o “senhor da guerra”, Sarkozy, mas Ângela Merkel é a principal responsável, uma vez que ela guia os alemães que projetaram e projetam uma Europa dos capitais. E uma Europa sem instituições que refreiem os ditos agentes é como uma Europa descoordenada, descerebrada pelos capitais voláteis e instáveis. E Dilma bateu forte e isso vale para todos os dirigentes: há que ter cooperação, há que ter invenção para encontrar as novas instituições multilaterais, nova governança e nova coordenação política.

3) Embora, não se pusesse como a líder dos BRICS, mas como uma dos líderes dos países emergentes, propôs a colaboração dos desenvolvidos e dos emergentes, mas não levou aliviado todos os emergentes. Disse algo para Hu Hintao (e Wen Jiabao). Olha aqui, se tu manténs esse teu câmbio fixo, cara, não vamos ter saída. A guerra cambial vai ficar mais forte e aguda. Os americanos vão enlouquecer. E aí o que é que eles vão fazer? O que já estão fazendo: protecionismo. Vamos ter que nos entender. Sei que estás jogando de mão, mas estás aguçando as contradições, A China já ganhou muito desde 2001 e principalmente, depois da crise. Agora, joga um pouco mais nas concessões. Não encurta demais a corda!

4) E aí logo aparece: Dilma tenta alargar a fonte de decisões, a coisa coletiva da coordenação política, da governança mundial. Dilma não escondeu e mostra os impasses: a fraqueza e a prepotência americana, que quer sempre pôr no colo dos outros o restos a pagar; a teimosia dos jogos de longo prazo do câmbio fixo chinês, a incapacidade dos europeus em tratar da dívida dos países da região.



5) E veja, intrigado leitor, na Europa temos a evidência mais profunda da estratégia destruidora do capital financeiro. Seu domínio sobre o Estado gera uma política dominada pelo financiamento do setor público, prioritariamente por meio da dívida pública, e não através de impostos. O capital financeiro não quer café sem açúcar. O objetivo é a possibilidade da extração máxima de renda do tomador dos empréstimos. E as dividas vão subindo assustadoramente, e assustadoramente se dá a elevação escandalosa dos juros. Assim, ao se esgotarem os recursos do Estado e quando, como agora, os Estados (Grécia, Portugal, por exemplo) estiverem suportando as dívidas de bancos nacionais, não há mais jogo. A dívida sobe de patamar e a própria sociedade não tem mais como financia-los. Todos estão endividados, das famílias à entidade estatal. Mas a roda da fortuna circula, se move, roda, gira e, então, a nação pede auxílio para os órgãos multilaterais, tipo FMI. Se esses não têm condições, a demanda vai para os outros Estados, ou para um pool de organismos e nações. E a espiral segue perigosamente o mesmo caminho. Para efeito do nosso argumento, botamos um fim de linha, uma peça becketiana: na impossibilidade de se encontrarem recursos públicos nacionais e internacionais para a salvação dos Estados, aonde chegamos?

6) Minsky falava numa economia onde o Estado funcionava como emprestador em última instância. Estamos, portanto, aqui e agora, no inverso. Nesta fase do capital financeiro, o Estado, em verdade, não mais opera como emprestador, mas como o tomador de empréstimo em última instância. Passa-se de credor para devedor. Temos assim, numa linguagem dialética, uma inversão lógica. E por isso, por essa inversão, o capital financeiro é um capital autodestruidor. Destrói a si, ao Estado e à sociedade. Como a Grécia. A dívida tem um limite que é a impossibilidade de pagamento. E, nesse ponto, ocorre uma segunda inversão. Na proposição de Schumpeter, uma economia produtiva, nas modificações cíclicas oriundas da crise, promove uma criação destrutiva. Dissolve-se um padrão de acumulação dando origem a outro, com o surgimento de novas tecnologias, altamente lucrativas. Mas quando a hegemonia é financeira, e ela não é desfeita, a dinâmica é substancialmente contrária, dispara um movimento, uma onda devastadoramente autodemolidora.

7) Sintetizando: neste capitalismo, onde o Estado é o tomador de empréstimo em última instância, por causa da dívida, o que o move, no limite, é a autodestruição dos capitais. O que leva de arrasto o Estado e a sociedade, e os próprios capitais. Por isso é que só há uma solução, na palavra de Dilma: “a cooperação política”. E, a meu ver, se o combate não for suspenso e a autodestruição desempenhar seu papel de fúria, o desastre será a exaustão da desvalorização de capital ao extremo. O recomeço da economia e da sociedade se fará a partir de um patamar muito baixo. É fundamental antecipar a solução. Ao contrário do movimento cego da destruição, o movimento racional da negociação política. Só ela pode resolver antes do desastre. E é preciso negociar em globo, e país por pais, uma vez que as situações diante da destruição e do futuro são diferentes. Uns terão que cancelar dívidas (como a Grécia); outros terão que aumentar impostos, como os Estados Unidos. E, assim, o ritmo da crise de 2007 chegou à crise fiscal, que vai atingir o coração do Estado. Portanto, está na hora da re-invenção do político. Um Estado não quebra, chegamos ao limite de Hobbes, e todos passarão a ser contra todos. Por isso, trata-se de afastar-se deste limite e tentar uma solução. No fundo, Dilma está falando sobre isso, quando diz que podemos cair numa “grave ruptura política e social”.

8) Por que é fundamental a cooperação política? Porque chegamos, nesta época do capital financeiro e da mundialização, a uma situação paradoxal. Os capitais têm um espaço de atuação mundial, mas os Estados, um espaço nacional. E a única forma de domar as finanças e as multinacionais é uma solução concertada entre os Estados, uma governança mundial. Só que esta não está construída; precisa, ao menos, um momento de união para desnucar o poder quase insuperável do financeiro.

9) Mas os homens e os países serão tão sensatos como Dilma propõe?

10) Olhe-se o outro lado da questão, a faceta geopolítica. Dilma aí, também avançou com fluência de linguagem, lamentando não ver o pleno direito da Palestina de ser membro da ONU. E por esse lado, estamos observando o lance denunciador de Abbas: Nem Israel nem os Estados Unidos querem solução. A direita israelense avança para ampliar a situação estratégica, para aumentar a apropriação de terras, para a construção imobiliária nas áreas palestinas. E mesmo divididos, os palestinos deram uma resposta altiva e, novamente, mundializando o conflito. E o Brasil, e Dilma, agiram com a alerta fundamental: até para Israel a solução palestina traria paz e desenvolvimento. Mas, quer a direita sionista esta solução?

11) O Brasil tornou o discurso de Obama um discurso pobre, melancólico, triste, submisso às forças internas americanas, sobretudo ao lobby sionista, e portanto, governado pela direita israelense. O ponto fundamental do discurso foi dizer que o rei está nu. Mas, também, diz algo muito forte: a urgência da situação requer soluções coletivas e imediatas. E não postergações. Só que Obama e os Estados Unidos não podem e não estão em condições de saltarem para a organização do mundo. Os Estados Unidos estão rasgados ao meio com esta crise econômica e, agora, numa crise política de solução inencontrável em 2011.

12) E, então, como é que fica a coisa? A política é, antes de mais nada, conflito, combate, disputa e, no limite, quando a rosa se torna despetalada, o homem lobo do homem. Só que o contrato social (leiam o belo artigo de José Luís Fiori na Carta Maior) não tem funcionado; ao menos na Europa, ele está se desfazendo. Como nos diz Zé Luís, as utopias se foram. Não há como não olhar no olho da fera. Há que reinventar a política, sem que aumente as rixas, as destruições e os desastres sociais. A besta fera do final do século está solta. Só que as pessoas ainda não acreditam. E Dilma falou disso, de modo suave, com palavras-guia, palavras-rumo. Trouxe antigas e velhas e verdadeiras palavras, como democracia, justiça, direitos humanos e liberdade. Ora, isso supõe que Aristóteles tenha razão: o homem é um animal racional. Mas, é como dizia o meu amigo Costa: “sim, sim, animal racional. Racional quer dizer capaz de soluções. Mas, então, Enéas, de onde vem a estupidez? Ah! Do animal. Do lado animal do animal racional.”
É, ponto para o meu amigo Costa.

13) Aconteça o que acontecer, Dilma pôs os termos da equação, mostrando, inclusive, como, nas condições miseráveis do mundo, a mulher, sob a forma de mães, tem sido o elemento central das políticas de distribuição de renda. Ela apontou para várias novidades do mundo de hoje: a ascensão dos emergentes, inclusive do Brasil, a presença fantástica das mulheres, a disposição de várias forças para a criação de novos horizontes. Não sei se é um discurso otimista. Mas usa o otimismo para demarcar a zona de horizonte onde se pode dar a solução pacífica e ordenada da crise mundial. Ou seja, quando o poder chega a um grau de deterioração, e o caminho da força passa a ser um pensamento para a decisão irracional, há que se deter um momento para a construção de acordos. Dilma disse serenamente isso. Logo, quando passam pela cabeça dos dirigentes políticos essas coisas dementes do tipo “bombardeio humanitário”, a gente percebe que o bumbo do tambor das contendas está ali, novamente intacto, um fósforo pode ser o relâmpago. E o que Dilma fez, em nome de um país sem poder de organizar o mundo, foi dizer: “olha, turma, ou nós tratamos de pensar soluções coletivas, ou a ruptura está aí”. A energia das transformações pode ficar sem do controle. E a fera solta do século XX já está esfomeada, goela aberta, como Saturno, para comer os seus filhos. Goya está mais vivo do que nunca no anúncio desses tempos. Dilma, como estadista, vai contra o limite, e diz a palavra firme do Brasil, modesto na sua possibilidade de resolver situações, palavra que corta e pontua uma situação. E como estamos dormindo com o inimigo, como o apocalipse está sentado no nosso colo, a pergunta que orienta a organização do mundo é esta: pode-se regular o capital financeiro? Não há como torná-lo de destrutivo, criativo? Ou o seu caminho de autodestruição é inevitável?

Fazer perguntas – e boas perguntas – como sempre fala o meu amigo Pedro Almeida, são os sapatos da estrada das respostas. E esta alma dos horizontes e das florestas, dos computadores e dos skypes, foi o grande lance diplomático de Dilma. Afirmar questionando – o único caminho possível para o Brasil. E direto no ponto.

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