quarta-feira, novembro 09, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL:
O FRACASSO POLÍTICO
DAS FINANÇAS E DO G-20
Por Enéas de Souza




10 de novembro de 2011




1) Coisa curiosa: a Europa e o G-20 encenaram uma comédia em Cannes, talvez seja a antecipação do próximo festival. Só que, fora do elenco dos protagonistas, apareceu um sátiro grego, quem sabe um misto de bufão e clown, Papandreou, que roubou a cena. Parecia, quem sabe, um personagem da comédia dell´arte de Goldoni infiltrado numa figura dramática de Aristófanes. Então, para quem é afeito ao cultivo das imagens, dava gosto ver aquela gente poderosa tentando manter a pose de que eram importantes. Naturalmente que o pessoal dos emergentes entrou de sangue doce. O chinês dava o seu sorriso Colgate de Pequim – dentes reluzentes, olhos entre irônicos e orgulhosos, roupa impecável, como se os que passaram o terno passaram junto a figura da autoridade. Mas estava feliz: a China vem jogando bem e só, só fustigando os Estados Unidos e a Europa. Trouxe o dragão para a sala quando disse, numa das manobras americanas e européias para flexibilizar o câmbio, que aí mexiam com a China, mexiam com ele; e, portanto, deu o sinal de veto.

2) A grande mídia que atuou muito no encontro, vuvuzela dos infernos, foi a européia. Claro, esse G-20 teve o conteúdo de uma manobra da região para ver se arrumava uns trocos com os emergentes, tipo Brasil, e alguma grana pesada com a China. Botaram muitas fotos e vastas coberturas de tevê para Merkel e Sarkozy. Como disse a Dilma: “por que eu vou botar dinheiro no fundo europeu se nem os europeus botaram?” Por aí vocês vêem como foi a reunião. E Dilma comentou e falou mais um pouco. Achou a reunião um sucesso relativo. E se considerar que a Europa tomou consciência que eles estão na alça de mira, tudo bem, foi isso mesmo. Os europeus que sempre cantaram de “prima donna” ou de tenor de sucesso, junto com os seus irmãos maiores, os “brothers” americanos, descobriram não a náusea existencial do Sartre, mas a falta de solidariedade entre eles mesmos. Estão vendo a espiral da caminhada para o fundo do poço. Mas, leitor cartesiano, leitor que duvida de tudo, poderíamos esperar algo mais de líderes como Berlusconi e seu número de bufo prolongado, de Sarkozy e sua visão midiática do mundo, de Obama que está pela bola sete, de dona Merkel e sua Alemanha ciosa dos trocados ou de Zapatero que está indo embora do poder? Claro que não. Sim, a Dilma tem razão; foi um sucesso relativo; a Europa se deu conta que ela própria é quem tem que sair do buraco. Imagina o Brasil dando uma graninha para o Fundo de Resgate Europeu? Assim, generosamente, sem pedir nada em troca? Ah, os emergentes propuseram dar sim. Dar uma contribuição, mas via FMI, com a condição de mudar a estrutura e a arquitetura do Fundo. E, claro, mudar a realidade do Fundo é difícil, ninguém cede se não estiver nas últimas. Fácil é tentar tirar dos mais pobres. Mudou-se de assunto.

3) O G-20 evidenciou o que temos dito aqui. O eixo único americano se partiu em dois, e o que ficou com os Estados Unidos, Inglaterra e Europa está se decompondo, enquanto o eixo que tem a liderança, já não tão discreta, da China continua a passada lenta, gradual, ocupando espaço. Ora, o G-20 botou no time as camisetas dos titulares nos Estados Unidos e na China, e pôs a Europa com as camisetas dos reservas e os demais emergentes, temporariamente, ficaram como titulares, titulares passageiros ou possíveis, reorganizando o jogo. Assim, o que se quer constatar é que o G-20 foi uma reunião para Europa ver que está na hora dela achar uma solução. Porque ela estava – e ainda está – caminhando rumo à zona do precipício.

4) O interessante foi o número de Papandreou; encestaram o que deu o líder da terra de Helena. Mas, ele pensou, refletiu, calculou. E no palco mundial da mídia encenou o numero cômico da vingança. Quando a Europa festejava o pacote renovado para a Grécia, Papandreou jogou a carta do referendo. Foi um caldeirão de água lançado nas costas da turma européia, em pleno G-20. Claro, Papandreou estava blefando e, sobretudo, estava devolvendo o passa-pé dos grandes países. Olha aqui, vocês me encurralaram, mas eu também encurralo vocês. E saiu aristofanicamente rindo. Logo em seguida, a Grande Mídia pintou um quadro de que a Europa e o G-20, insultados, enquadraram o político grego. Deu para dar boas gargalhadas. E gozem mais um pouco. E se sai mesmo o tal de referendo? Na verdade, tudo não passou de uma delícia vingativa de Papandreou.

5) Agora vamos tentar ampliar a nossa interpretação. É preciso ver que estamos num jogo onde as finanças internacionais blefam, atacam e fazem um ataque insaciável, jogando a gasolina do medo e do caos social no mundo. A Grande Mídia, tuba canora como diria Camões, está do mesmo lado, riscando o fósforo do temor. Foi-se o tempo em que a mídia informava; hoje, dá notícias pela metade, mente, inventa e, de quando em vez, chantageia tanto quanto faz propaganda. Clama pela liberdade de imprensa e se enxerga liberdade de empresa. Vendendo a sua mercadoria, inocula a ideologia das finanças. E as finanças, depois de terem sofrido um colapso nervoso em 2007/2008, na crise do mercado financeiro americano – que se desdobrou para a Europa e o mundo – conseguiu, via medidas de salvação e doação dos Bancos Centrais e de vários governos, se equilibrar. Só que, da crise financeira, passou-se à crise fiscal e, da crise fiscal, o mico viajou para o Estado. Desde lá, estamos atravessando a crise desse, o que significa também, com diversos matizes, uma polpuda crise política. Essas realidades são o resultado do movimento da luta furiosa dos capitais entre si, mas também do combate complexo deles contra as nações. Tudo porque as finanças, no seu neoliberalismo, apesar de dizerem que o Estado deve ficar fora da economia, não podem viver sem o Estado. Primeiro, para que elas possam, no período de crescimento, exatamente se expandir, enquanto o Estado garante estabilidade e paz social. E segundo, para quando o ciclo desce, capa protetora, salvar as instituições financeiras. E tudo, crédulo leitor, em nome do poético nome de “evitar o risco sistêmico”. Salvam-se os bancos, os investidores não perdem a propriedade desses e muito poucos dirigentes deixam os seus cargos e os bônus. Aquilo que seria natural, o conúbio finanças e Estado não nacionalizam, nem estatizam essas corporações, põe o prejuízo ou no Banco Central ou na dívida pública. E, quando o próprio Estado entra em crise, encontra-se uma ficção adequada, a recomposição do Estado, para que as finanças possam se recuperar e retomar o seu domínio. Tudo em cima das demais camadas da sociedade. E o que é pior: em nosso nome.

6) Por isso, quando as finanças caem, elas caem perdendo o apoio social. Vejam o movimento do Tea Party e do Occupy Wall Steet. E, mais que lógico, também arrastam para o abismo o Estado, que ingressa no cone de sombra de uma crise. Porque não há outro ponto e outra regra: as finanças só sobrevivem para especular tranquilamente (sic!) com a economia estabilizada e com calma social. E quem garante isso? O Estado. Qual é o movimento das finanças? É tentar forçar que o Estado retome a estabilidade. Como? Cortando gastos, em alguns casos, aumentando impostos, mas sempre buscando demitir funcionários, diminuindo ou eliminando aposentadorias e, em alguns países, privatizando previdência, saúde, educação e cultura. E assim chegamos a uma segunda etapa do neoliberalismo: para a falência do neoliberalismo, mais liberalismo.

7) Porém, a estratégia é sempre a mesma. Endivida-se um Estado, joga-se uma agência de ratings em cima para diminuir a sua nota e especula-se contra os títulos desse país. E logo se fabrica a cena midiática do “Grande Caos” da política e da nação. E sabem como é que se faz esse jogo, que tem o cheiro de uma jogatina de Las Vegas? É assim: um título do país é lançado com uma taxa de juros X no mercado primário, por intermédio de um banco ou um pool deles. Quando o título é passado para o mercado secundário, onde todos podem comprar, os capitais, os próprios bancos intervenientes, atacam este papel, exaurindo sua sustentabilidade, obrigando-o a pagar um prêmio de risco, de por exemplo X mais 1, 2, 3, 4, 5, 6, etc. % a mais. O título italiano ontem, no mercado secundário, chegou a pagar um prêmio de 5,7, acima da taxa básica que é 3%. Ora, esse prêmio de risco força o país, quando for lançar um novo título soberano no mercado primário, a levantar a taxa de juro para por esse novo ativo possa encontrar comprador. Ou seja, está apresentada a espiral da especulação e a depredação de um Estado.

Claro, já percebemos então, que a mão que poupa é a mesma mão que pede e escorcha. Resultado: força-se tanto ao endividamento do Estado quanto a desvalorização dos seus ativos. E depois, soltam-se os cães ladradores das agências de ratings e, no rastro da bruxa, se traz a turma do FMI (no caso da Europa, também o Fundo de Estabilização Financeira Européia) para dar as receitas básicas ao Estado dito “soberano”. Ora, o país que já estava em crise econômica, dá um mergulho patético na piscina fiscal e pratica o arrocho financeiro sobre o próprio Estado. E logo, logo, entra em recessão, até conseguir - às custas do desemprego, da abdicação de políticas públicas privatizando empresas e serviços estatais, e da liquidação da estrutura e arquitetura do próprio Estado, incluindo pessoal burocrático adequado, tanto em número como em qualidade – um determinado momento de razoável equilíbrio, que geralmente leva anos, às vezes décadas, a chegar. É isto que aconteceu no Brasil, salvo do neoliberalismo por Lula. E é este o destino de Portugal, da Espanha, da Itália se continuarem e forem nessa estrada da vida. E é isso o que o primeiro ministro Fillon está forçando, junto com Sarkozy, para que a França siga, inclusive para escapar da rebaixa das notas das agências de ratings. Fazem parte de um tempo chamado de “tempo de austeridade”. Ora, em bom português de antigamente, se diria: co´os diabos, austeridade para quem?

8) E para a solução dessas crises sempre surgem engenharias econômicas complexas para que o capital privado recupere não apenas o seu dinheiro, mas o fruto de sua especulação. E como na especulação, ele ganha somas monumentais, obviamente que pode, com a generosidade dos assaltos, fazer algum perdão, mesmo que este perdão seja pago pelos Estados dos capitais emprestadores. Exemplo vivo na Europa, o dos bancos franceses, espanhóis, italianos e mesmo alemães. Sem contar aquela dos países que já sucumbiram com Portugal e Grécia.

9) Ora, o G-20 mostrou o seguinte: I) a inércia americana – seja pela paralisia provocada pelo Congresso, amarrando o governo com o teto da dívida e com a limitação dos gastos, seja porque Obama não pôde nem tinha condições políticas americanas e internacionais de ser protagonista; II) a reboldosa na Europa – com as finanças e os Estados engolfados, em longa agonia, na tempestade financeira, fiscal e política. Peter Breughel pintaria hoje, a partir dessa situação, uma nova “dança da morte”; III) a incapacidade do núcleo líder da União Européia – a França e a Alemanha já demonstraram, quase à saciedade, que não têm talento para dar uma solução à UE. Sarkozy está enrolado na disputa para a presidência com François Hollande, com um futuro, para ele, sombrio, pois, num possível 2º turno, este, François Hollande, ganharia de 68 a 32%, segundo sondagens atuais. E Ângela Merkel, criticada por suas manobras no plano externo, está muito preocupada com o plano interno socialmente. Tenta roubar as perspectivas dos adversários mais à esquerda, através da proposta de um salário mínimo profissional, bem como fechando as usinas nucleares.

10) Uma outra coisa importante, como a de Papandreou, aconteceu fora do G-20: a entrada de Mario Draghi na presidência do Banco Central Europeu. Ele é italiano, economista do MIT e da Goldman Sachs, tendo dirigido, na parte internacional dessa, a secção européia, exatamente no momento da fraudulenta entrada da Grécia na União Européia, quando a Goldman fez um trabalho de consultoria para a nação grega. Portanto, como dizem os portenhos: Ojo! E Draghi já descartou a idéia do Banco Europeu ser o emprestador em última instância, rompendo com uma recente posição de Trichet. O que joga água no chopp de um avanço político na Europa. Ou seja, parece que o objetivo do sistema financeiro é continuar mantendo um espaço inatingível pelo Estado de controle da sua ação dinâmica, impedindo que haja um Estado supra-europeu. Ou seja, pode-se conjeturar que a luta entre os capitais se decida pelos mais fortes e pelos Estados nacionais mais capazes de sustentar um apoio aos seus bancos. Uma concentração de riqueza e de poder. Quando a concorrência se estreita, cada capital quer a morte do rival. E a concorrência se estreita porque há cada vez menos possibilidades de negócios à sombra dos títulos privados e públicos. E a competição dos Estados se desloca pela melhor e mais astuta política de uns sobre outro. Pode-se até conjeturar que, ao menos uma parte da Itália, mesmo em desaforada ópera-bufa almeje deslocar a França de sua posição de liderança.

11) E o que o G-20 revelou profundamente foi o segredo mais visível de todo este começo de século: a incapacidade das lideranças políticas européias, sobretudo da França e da Alemanha, de alcançar uma solução inventiva. E enquanto a política não encontra saída, os capitais continuam massacrando, desesperadamente, os países e os Estados e as populações. Sempre na expectativa de passarem à frente dos seus concorrentes na luta especulativa e sempre na busca de uma solução de aperto dos Estados e das populações. O objetivo é chegar a um ponto base, a um Estado equilibrado ou controlável em termos de dívida, de déficit e de orçamento fiscal. Por outro lado, todo o problema das finanças passa sempre por manter a liquidez, alcançar fontes de alavancagens para decididas especulações e títulos apetitosos, forçando os Estados a entrarem no seu jogo, a despeito do grande desastre social. Por isso, a reação anti-finanças no mundo todo; embora esse movimento se esboce com uma pequena contundência de quem sofreu e não sabia quando estavam lhe roubando a carteira, botando-lhe a mão no bolso. O mundo agora se exalta, sai às ruas, grita. Ouviremos, então, quando algum grande escritor escrever sobre este tempo, uma frase como esta, ao estilo da Ilíada de Homero: “Canta Musa, contra os Ataques das Finanças, a Ira da População”?

12) Dilma tem razão. O G-2O foi um sucesso parcial, porque circunscreveu, neste momento, a crise no colo da Europa. Mas não mudou a organização para-estatal do sistema econômico, do tipo FMI, seja no seu elenco de quotas com dominância americana e européia, seja no seu pensamento de solução da crise. Mostrou, igualmente, a debilidade do Fundo de Resgate, e a rasteira que a Europa queria passar nos emergentes. E lá no fundo, aparece a China, sorridente, dando os seus passos progressivos e adventícios. Ao menos no campo econômico – pois, no geopolítico, a coisa é diferente – os americanos estão tentando cerca-la e constrange-la. Mas, paira no mundo, ainda, a visão econômica das finanças. A solução proposta cabe sempre no tambor do revolver financeiro. Contudo, a questão subterrânea é outra, sufocada pelas finanças: onde está o lado do crescimento e do emprego? Onde está a tentativa dos Estados liderarem os processos de investimento produtivo e de expansão tecnológica? As finanças e os Estados continuam movidos pelo curto prazo. O longo prazo e o novo padrão de acumulação, que poderiam dominar as iniciativas públicas e reorganizar a economia, com as finanças passando a apoiar a produção, ainda estão longe do horizonte da luta forte que travam capitais e Estados, sob as mais diversas cores e mais faceiros matizes. E a presença dos trabalhadores, dos estudantes, dos jovens, dos indigentes, dos pobres é ainda muito tímida no cenário mundial. Mas, com muitos processos e praticamente sem nenhuma proposta. Enquanto isso ocorrer, as finanças continuarão com o seu projeto de resolver tudo isso financeiramente. Tudo isso, com a subordinação dos Estados, com o desemprego, com a diminuição das garantias sociais e, sobretudo, com uma paralisia da dinâmica econômica produtiva, onde a competição fica restrita à produtividade do capital, e jamais na passagem para o investimento, na direção de um novo padrão de desenvolvimento, ou seja, na direção de um novo padrão tecno-econômico, como diria um schumpeteriano. O que evidencia o total fracasso da economia das finanças, que está fragmentando a unidade do eixo americano e, principalmente, está reposicionando a Europa, seja pelo desmanchamento econômico, seja pelo apequenamento político. Foi isso que apareceu no G-20 de Cannes, enquanto a China olhava sonhadoramente as oportunidades que virão, enquanto as eleições americanas não decidirem o outro lado da fogueira dos capitais e dos países.






PS – Entro em férias. Só que, primeiro, vou apresentar e comentar na Maison du Brésil, em Paris, um ciclo de “Cinema Brésilien Contemporain”, de 21 a 25 deste mês. Serão exibidos: “Edifício Master” de Eduardo Coutinho, “Santiago” de João Moreira Salles, “Crime Delicado” de Beto Brandt, “O Homem que Copiava” de Jorge Furtado e “Lavoura Arcaica” de Luiz Fernando Carvalho. E lá, no dia 22, Robson de Freitas Pereira e eu lançaremos nosso livro “O Divã e a Tela”. Estarão também presentes as colegas psicanalistas Lucia Serrano Pereira e Ana Lucília Rodrigues, que escreveram um artigo na referida obra. Depois do ciclo, as férias. Bordeaux no Café Corse, omelette parmentier no Boul´Mitch e livros na Compagnie, na la Hune e na l´Écume des pages. E uma conversa livre com os amigos parisienses, desde os temas artísticos até as questões políticas e econômicas, sem excluir, claro, as maldades sobre os inimigos do coração. Retorno na metade de dezembro. Até lá!

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