Coluna das quintas
1) Embora o leitor Felipe X ache que coloco a China como a grande novidade dos Estados no atual capitalismo financeiro porque ela está por cima, a realidade não é esta, é outra. A China está por cima porque na dinâmica da economia mundial, com a crise financeira americana, o eixo único que unia todos os países, inclusive a China, desarticulou-se e se transformou em dois eixos, o americano e o chinês com grande crescimento deste último. E no processo, os dois Estados participam de maneira distinta, por causa da sua estrutura política. Dito de outra maneira, a relação das finanças com o Estado americano – e com o Estado inglês, e com os Estados da Europa, e com os Estados da América Latina, etc. – é totalmente diferente da relação com o Estado chinês. Como se a mesma árvore frutífera desse muitas peras e uma singular maçã. Cada Estado tem uma relação peculiar, específica com o capital hegemônico. São todas peras diferentes, mas são todas peras. Só que a China se relaciona de modo totalmente diferente, é maçã. Vejamos.
2) A grande diferença é que, no caso americano, as finanças de origem nativa, absolutamente mundializadas, impõem uma determinada forma estrutural ao Estado, que marca, mesmo no auge do triunfo dos Estados Unidos, um modo de desenvolver a sua estratégia econômica e política de país, de nação, definida pelo setor privado financeiro. Já na China, mesmo antes dos anos 2000, a estrutura do Estado estava acima tanto do setor bancário como do setor produtivo, porque as grandes empresas de ambos os ramos são fundamentalmente estatais. Ou seja, quem define a política econômica, a estratégia geopolítica e geoeconômica dos chineses é o Estado. Então lá, ele sempre esteve por cima, mesmo quando houve a crise asiática dos anos 1990. E agora, o Estado chinês continua por cima, só que, neste momento, ocupa uma posição de destaque mundial. Por ocasião da expansão do eixo único americano, no dobrar do século, a China assumiu, por duas razões, um lugar impar na mundialização. A primeira, porque na busca de produtos que barateassem o custo da mão de obra, sobretudo americana, as multinacionais, principalmente dessa origem, se deslocaram para produzir na China. A segunda, porque o Estado chinês, ao decidir transformar a sua economia numa grande economia exportadora, com base multinacional, optou igualmente por uma política de saldos comerciais, o que permitiu que ela fosse a grande financiadora estrangeira do Tesouro americano. Foi, como no tênis, o saque do set.
3) Então, leitor atento, vamos seguir os passos. Continuo aqui a desenvolver, nesta passagem, também uma pergunta que o amigo Marino Boeira fez lá atrás, sobre o sucesso da China. Foi o Estado que decidiu que a China se tornaria uma economia exportadora e que financiaria uma parte da dívida americana. Foi o Estado quem organizou a entrada das multinacionais na China, as formas delas se instalarem lá, a negociação da transferência de tecnologia, os possíveis níveis de associações entre empresas estrangeiras e chinesas. E tudo isso dentro de uma visão estratégica de nação, onde a política econômica global era definida pelo Estado, onde as empresas (bancos, indústrias, companhias comerciais exportadoras, fundos soberanos) agiam e agem dentro da liderança do Estado. E num dos elementos fundamentais da política econômica, a questão monetária, o controle do Estado é total, pois tem o poder de manejar a taxa de câmbio segundo os seus interesses. Aliás, essa é uma das reclamações dos neoliberais americanos, como se o dólar fosse só fruto das decisões de mercado e os Estados Unidos não se valessem dele por ser americano e moeda mundial. Mas o fato é que o Estado chinês tem o comando da economia chinesa e da sua relação com exterior. Trata-se de ver que essa é a posição original da China na dinâmica econômica financeira e produtiva da mundialização.
4) A diferença está, portanto, na unidade do Estado, que proporciona a capacidade de definir e articular, tanto a sua estratégia geopolítica como a sua estratégia econômica, gerando a China o seu lugar na confraria/contenda das nações do planeta. Trata-se de uma postura de união de uma política nacional com uma política econômica. E cabe dizer, nesta passagem, que esta política econômica, no caso da China, é global. O que quer dizer isto? Quer afirmar que a gestão chinesa abarca todas as políticas de Estado, ou seja, a política monetária, a política cambial, a política fiscal, a política financeira, a política industrial, a política agrícola, a política tecnológica, a política de salários, a política social, etc., etc. E é por isso que, quando o leitor fala na questão da crise dos quatro bancos chineses, a aparência é de que a solução do tema passou pela mesma forma dos Estados Unidos. Num sentido sim, noutro não. Sim, porque o Estado teve que entrar em campo para salvar os bancos. Não, porque o Executivo salva as instituições financeiras sem precisar pedir autorização para o Legislativo, como no lado americano. O que faz com que as absorções dos prejuízos sejam socializadas através de decisões internas ao próprio Executivo, embora com repercussões nas bolsas e no sistema financeiro.
5) Agora, queridos amigos, vejam a diferença com o Estado Americano. Em primeiro lugar, esse Estado não tem unidade. A sua estrutura está separada politicamente, desde logo, por causa da independência constitucional do Banco Central americano, o FED, fato que marca, na prática, a vinculação do banco com as finanças. Ou seja, configura-se uma independência estrutural. E faz com que esse Banco reja a política monetária fora da unidade do Estado, pois é este que tem que se adequar à política daquele. Em segundo lugar, a escolha do secretário do Tesouro é um cargo fundamental, pois se um secretário, como Timothy Geithner, for relacionado com as finanças, toda a estrutura econômico- financeira (Banco Central e Tesouro) veste as cores do setor dominante. Olhe-se a flor do jardim: ela chama-se hegemonia das finanças. Somam-se a isso, mais dois fatos decisivos. Um deles é que as decisões de alterações de leis como a do sistema financeiro (New Finantial Regulatory Law), como a Lei dos Empregos Americanos (American Jobs Act), etc., passam pelo Congresso, onde os bancos e as indústrias têm lobbies expressivos. E o Congresso pode paralisar o Executivo, como paralisou no caso do teto da dívida e do corte dos gastos. E o segundo fato é que a política econômica do Estado americano é parcial; macroeconomicamente, ele só define a política monetária – que, no caso americano, já é cambial – e mais as políticas financeira e fiscal. O resto é definido de forma microeconômica pelos mercados. Por tudo o que expus, a conclusão é que o Estado americano é um Estado fragmentado. E, por conseqüência, a estratégia nacional americana para as ordens da política e da economia mundial passa por dificuldades inúmeras em função desse múltiplo fatiamento. E isto que nós não estamos analisando a segmentação, que pode se ampliar, quando se pensa o poder militar do Pentágono, em função de seus objetivos bélicos e, até mesmo, políticos próprios, quando antagônicos a outros objetivos estatais.
6) Nós, os leitores e eu, não estamos discutindo aqui a questão política da democracia ou da ditadura do Estado. O que estamos apontando, na atual geopolítica e geoeconomia, é a capacidade de agir unitariamente diante das questões postas pelas citadas ordem econômica e ordem política mundial. O que disse em outro artigo foi que a China era a grande novidade nesta hegemonia do capital financeiro, porque ela não estava submetida ao império das finanças. Ao contrário, era ela quem, através do Estado, comandava o desenvolvimento centrado na produção com presença das finanças. O que tenho expressado aqui é que se abriu uma fenda, um corte, na unidade do antigo eixo americano. De um lado, temos um eixo americano dominado pelas finanças que, subordinando o Estado, o leva de arrasto no seu declínio, o conduz, meio desastradamente, à decomposição do neoliberalismo. E, do outro lado, outro eixo que é um capitalismo de Estado, onde o setor produtivo, o setor financeiro, o setor externo funcionam para o desenvolvimento do capital (e no limite, para o da sociedade), porém com liderança estatal. E claro que, neste eixo, apenas o Estado unitário é o chinês, mas é.
7) E nos comentários que tenho feito, o objetivo é de mostrar que o novo na dinâmica do capitalismo financeiro mundial é esta presença do Estado para contrarrestar a imposição das finanças. O espinho encravado no mundo neoliberal. E como o Estado na China organiza unitariamente a sua ação, construindo este capitalismo de Estado (o que não exclui contradições e lutas nas esferas burocráticas, na hierarquia do Estado, e no conflito Estado e Partido, etc.), a crise da economia mundial desloca o polo dinâmico para a China, sobretudo porque ela pode puxar a realimentação da produção. Está instalada na China a possibilidade da reversão da hegemonia financeira para uma nova hegemonia produtiva, reenquadrando os Estados Unidos para outro tipo de liderança, na direção de um novo padrão de acumulação com profundas transformações tecnológicas. Isto não quer dizer que, se o aprofundamento da recessão do eixo americano (Estados Unidos–Inglaterra–Europa) chegar a uma recessão, a China e o seu eixo não serão afetados. Claro que serão! Mas as decisões que deverão ser tomadas são mais fáceis de serem tomadas num Estado que seja unitário do que num Estado fragmentado. Assim, tudo é uma questão de tempo, de ritmo, de rupturas e de metamorfoses. Esta é a hora, assim poetizaria Fernando Pessoa.
8) E o que tenho dito também é que o êxito, mesmo que relativo, da China – seja consigo mesma, seja com os demais países – certamente é um incentivo as outras nações a pensarem em aumentar o poder do Estado na economia. E mais, digo agora, os grupos sociais hegemônicos podem até clamar pela intervenção estatal. Aqui no Brasil não temos visto, as forças econômicas, mesmo disfarçando críticas, endossarem as ações do Estado? E a idéia do Estado europeu não tem sido algo que tem aparecido, aceita ou não, no horizonte da solução da crise na Europa?
9) Uns falam da ditadura do capital nos Estados Unidos, outros da ditadura do Partido e do Estado na China. Por isso, não podemos escapar – olhando a crise e perscrutando o futuro dos dois eixos aqui falados – da pergunta fatal: como é que fica a democracia no mundo? Aqui, neste meu artigo, tenho apenas uma intenção: instrumentar os leitores para a percepção de alguns signos que estão presentes e que vem surgindo à nossa vista, como os filmes de Martin Scorcese, candentes. E então, como no cinema, o meu texto muda de enquadramento e põe um plano aberto em cada leitor: como é que você responderia esta questão? (Não deixar de observar, no fundo do cenário, os movimentos sociais estourando nas cidades, praças, ruas e bairros do mundo inteiro: do Egito a Londres, de Nova York a Barcelona! Falam em “revoluções”. Mas este fenômeno é mesmo o quê? Qual é o seu efeito sobre a financeirização?).
Bom dia, Felipe X! – obrigado pelo comentário.
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