quinta-feira, agosto 06, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Colunas das quintas
6 de agosto de 2009

NO RASTRO DA
INSATISFAÇÃO

Por Enéas de Souza

O legado das finanças e do neoliberalismo

O inverno do neoliberalismo está em plena estação. As rosas desapareceram e os galhos, ainda presentes, transformaram o capitalismo financeiro num sistema tenso, convulso, que trabalha com ardis e luminosidades falsas. Terminaram as arrogâncias do sistema, declarando Madoffs vencedores e sustentando corporações, tipo o Citigroup, como perfeições divinas do capitalismo. Deixaram de lado a proposta do Estado Mínimo e a fala agressiva de que o Estado deveria ficar fora da economia. Nem muito sorrateiramente, conseguiram com que o Governo colocasse ao redor de 1,4 trilhões de dólares à sua disposição para salvarem o perfeito mundo das finanças. Mas, muito pouco para o setor produtivo e migalhas para os assalariados. E tudo em nome do risco sistêmico. Se eles quebrassem, o mundo entraria no caos. E ficou para outra oportunidade aquela história de que era o capital quem fornecia emprego para população. Na crise, houve uma evidência contrária, pois a febre do fracasso financeiro provocou uma taxa de quase 10% de desemprego na economia americana, e deixou um povo de mais de 15 milhões desordenados na chama da falta de dinheiro e de trabalho. Saímos do finance led growth para o finance led unemployment. Quando o socialismo real caiu em 89/90, a exaltação do triunfo do capitalismo e da economia americana chegou ao exagero de Fukuyama, o inolvidável intelectual do Departamento do Estado dizendo que a História acabou. Era a pretensão da eternidade no glorioso instante do capital. Mas, a economia é dinâmica e o ciclo do capital que se iniciou nos anos 70 chegou ao fim em 2007. O mundo é um devir constante, as águas de Heráclito, deslumbradas na Grécia, estão presentes igualmente neste mundo dourado das finanças. Como diz o samba: “rolou, rolou a vida”.

Os ratos da economia

Impossível de não ver que se abre um novo período histórico. Não necessariamente o fim do liberalismo, mas certamente deste neo, sim, este neoliberalismo chegou ao fim. Porque, não há como voltar atrás, não se pode descer o mesmo rio duas vezes. Mas, os olhos das trevas deste neoliberalismo cospem fogo e chispas, e trabalham incessantemente para dourar um novo itinerário do capital. Mas, estou apostando, que este neoliberalismo não tem como voltar. Porque, entre os próprios integrantes deste grupo social, entre os próprios financistas, há divergências. E a tal de desregulação e de alavancagem e a multiplicação dos produtos dificilmente podem funcionar como funcionavam nos tempos de outrora. Mesmo quando Goldman Sachs, JP Morgan usam o dinheiro público para burlar a nação, sob a complacência do FED e do Tesouro, lucrando como ninguém e distribuindo os polpudos bônus. Não há como continuar assim. Porque se essa trajetória continuar, a colisão vai se dar na âncora americana, o dólar vai explodir. Os chineses estão avisando. E mais, não apenas os financistas divergem, também os capitais produtivos estão em desespero, e perceberam, já há muito tempo, que os seus resultados empresariais vinham muito mais das rendas do que dos lucros. E mais, como o capital americano dito produtivo, extremamente finaceirizado, foi abdicando os seus mercados para capitais de outros países – capital chinês, indiano, japonês, alemão e, até mesmo, brasileiro – ele será obrigado a tentar produzir acordos e revoluções para retomar a posição. A luta entre os capitais vai se exacerbar, haverá um encrespamento geral, uma discórdia insidiosa. Ou seja, quando o navio naufraga os ratos tentam escapar. O que não quer dizer que não poderá haver na economia falsas recuperações e passageiras retomadas. Os ratos voltarão novamente a propagar a excelência das finanças.

A abolição dos losers

Um ambiente histórico novo se abre. O primeiro tempo é um conflito interno entre os grupos vencedores. Já não triunfam da mesma maneira. Naturalmente, que haverá luta, haverá divergências, mas haverá alianças. Combates aqui, acordos ali. O desastre das finanças profanou o pacto capitalista. E assim, a economia que a todos reuniu, fendeu também a massa sólida da ideologia, a idéia da riqueza infinita e fácil, os grupos vencedores e imbatíveis. No seu movimento, camuflou a guerra, os predadores, o mal das empresas criminosas de segurança no exterior, e desamarrou a corrupção da política, da mídia e do establishment. Fabricou este capital devorador, a capitalização de tudo, desde a saúde, a previdência, a aposentadoria, até a arte, a assistência social, a cultura. Como semente do ludibrio da sociedade transformou o pensar em cálculo, distribuiu o questionamento do sentido da vida em divertimento e em espetáculo fútil. E acabou por penetrar no íntimo dos assalariados voltando-os para a busca do efeito riqueza, do sonho coletivo de casas na cidade, na montanha, na praia; tentando alucinar e entupir as cidades com uma multidão de carros cada vez maiores e mais potentes. Pois, esse mundo veio abaixo. E de repente, partes da população – em vertigem de queda para o novo efeito, o efeito pobreza – começaram a sentir que os antigos ideólogos do neoliberalismo e do homem vencedor, deixaram a quase todos os trabalhadores como losers. E isto é o fim para os americanos. Mas, a questão que habita esse momento, tanto os corações como as mentes, é a seguinte: os losers se deixarão enganar novamente pelo falso brilhante do neoliberalismo? Com isso queremos dizer que está em profunda ruptura aquele bloco histórico que sustentou o neoliberalismo guerreiro, liderado por Cheney e cumprido por Bush, e que se definiu economicamente como a glória do sistema financeiro e politicamente como o legado da democracia pela guerra e a combinação da economia e da política com a busca do livre mercado e a restauração da exploração do petróleo no Iraque.

As cigarras e os direitos

Está aberto ou não está aberto um novo período histórico? Claro que está. Só que a abertura não indica para onde ele vai. Existe uma luta imensa por um novo mundo. Na contraluz, no entanto, o grupo dominante, por mais dividido que esteja, quer retomar a ribalta do sucesso e o palco dos vencedores. E para tal, nunca é demais frisar, que as cigarras da mídia continuam trabalhando para a restauração do mundo antigo. E mesmo que ele não chegue, a melodia será sempre na mesma direção: a alvorada do novo mundo como continuação do domínio das finanças. Só tem um reparo. Estamos em plena luta de grupos sociais, mas um dos aspectos desta disputa tem a figura de um vasto travamento cíclico de toda economia. Ou seja, os capitais precisam negociar uma nova sociedade capitalista. E para tal, então aí os outros países, para não dizer como Obama, que o mundo vai se reorganizar num diálogo Estados Unidos e China. Mas, só para termos um vislumbre e sem blasfemar, podemos dizer que a renovação não será apenas política, mas profundamente econômica. Na política, o conflito das classes vai ter que achar uma alavanca que será o resultado de uma vitória, de uma combinação, que poderá negociar os problemas da economia. Mas, aqui, emerge a competição inevitável dos capitais produtivos, onde a tecnologia dará o ponto de definição de uma nova organização econômica. Então, estamos em plena luta social, apesar das libélulas dulcíferas da mídia subordinada, que estão do lado das forças econômicas saqueadoras contra as forças sociais, proclamarem comicamente que o pior já passou. Mas, nada está decidido. O período histórico se abriu e ainda é cedo para ver qual é o rumo que os confrontos sociais de todas as dimensões vai tomar. Marilena Chauí tem razão, é preciso retomar e reaver a questão do que ela chama do núcleo da democracia, os direitos econômicos e os direitos sociais. E eu acrescentaria, para destacar, aquilo que o século vinte furtou, pela direita e pela esquerda, os direitos culturais. Nada contra o direito à diversão, contra o espetáculo, mas tudo a favor do direito da arte, por exemplo. Porque se ficarmos na falsa idéia da arte popular ou do entretenimento, das absurdas configurações do realismo socialista, da arte nazista ou do “no business like show business”, a face humana da vida passará pelo canto da catástrofe, sem que possamos definir e questionar o sentido da nossa vida.

A festa da maldade

Abriu um novo período histórico. Ficaremos olhando a face negra da ruína humana? Ou esperaremos a festa intensa da maldade como nos mostraram os filmes americanos “De onde os fracos não têm vez” dos Irmãos Cohen, “O Sangue Negro” de Paul Thomas Anderson, “Antes que o diabo saiba que você está morto” de Sidney Lumet, ou “Os infiltrados” de Martin Scorcese (fantástico filme onde Jack Nicholson diz, de forma contundente e soberba: “Esta é uma nação de ratos”).

Contra a catedral da micro-economia

Vejam o que está acontecendo. As estruturas econômicas e as estruturas políticas e as estruturas sociais e as estruturas ideológicas estão desabando. Mas, os antigos construtores lutam desesperadamente para manter a felicidade da transformação de todos os ativos em ativos financeiros. Dominam o Estado, mesmo em contradições diversas. Só que os que lutam por uma sociedade diferente, precisam fazer dois movimentos complexos: um é organizar uma unidade ultrapassando o fracionamento de suas atividades e de suas resistências; e outro, tentar equilibrar no campo do Estado as forças financeiras que penetraram até o coração das decisões principais. O primeiro movimento visa a convergência, os acordos, as alianças, os pactos com todas as forças que bloquearão as ardilosas astúcias das finanças. E o segundo movimento, proporcionará a disputa da direção da política econômica no sentido de defini-la mais ampla do que apenas uma política financeira, monetária, cambial e fiscal. O que quer dizer o poder de amparar as forças sociais com uma política industrial, uma política agrícola, uma política tecnológica, uma política ambiental, uma política energética, uma política de trabalho, uma política de salários, uma política de previdência, uma política de saúde, uma política de segurança, uma política urbana, uma política de transporte, uma política de educação, uma política cultural. Ou seja, romper com esta idéia absurda e insólita de que são os capitais, na suas decisões microeconômicas, que definem a macroeconômica e a macro-sociedade. Tem que se resgatar uma política pública. E só o Estado pode hoje recolher o vento renovador de um novo período histórico.

Quando o presidente do Banco Central manda mais que o presidente da República

Não se pode pensar que as finanças ficaram como aquelas folhas amareladas em tempos de queda. Ao contrário, elas pensam em plantar novas roseiras para colher os juros fabulosos de novas rosas. E tem o vírus do dinheiro, dinheiro inclusive fornecido pelo Estado que eles ainda dominam. Mas, o capital vai seguir outro rumo, que não será este liberalismo doente e demente. Talvez retorne o liberalismo político, que tenta equilibrar o liberalismo econômico, que é o roteiro de Obama. Mas, isso é não levar em conta que outras forças sociais possam querer outro trajeto, outra vertente. Só que estas forças não têm nada, foram derrotadas ao longo do século XIX e do Século XX. E, portanto, precisam inventar uma nova ficção política e outras práticas de transformação e de metamorfose. Rimbaud falava que era preciso inventar o amor. Para essas forças sociais, o desafio é inventar uma nova sociedade, com uma nova conquista de direitos econômicos, de direitos políticos, de direitos sociais, de direitos tecnológicos, de direitos culturais, enfim, de construir uma nova democracia. Claro, a política é o terreno dos conflitos e do poder. E em verdade, o que estamos vendo é o desmanchamento de uma configuração de poder antigo. É preciso combater por uma outra forma. Qual será ela? A abertura de um novo período é isto, um rearranjo das relações políticas e sociais da sociedade, que se descortina na cruz e na fantasia, na quimera e no realismo dos confrontos. O que significa a construção de uma nova economia, das relações entre a produção, as finanças e os assalariados, bem como uma figuração diferente da organização da democracia e do Estado. O que não quer dizer que as forças que jogam na escuridão – darkness, dizem os ingleses – não tentarão retomar a ditadura que vingou na hegemonia das finanças, quando o presidente do Banco Central mandava mais do que o presidente da República, que, no caso dos Estados Unidos, só decidiu pela desastrosa guerra ao terrorismo, para mostrar que mandava e para fornecer a outras forças distintas possibilidades de riqueza.

OJO!

Abriu-se um novo período histórico. Mas, as forças democráticas têm que elaborar estratégias renovadas, mas sempre com a precaução que uma palavra em castelhano avisa: Ojo! Porque a violência, a guerra, por detrás das palavras macias da propaganda e da mídia, pode sempre, a pretexto de alguma noção aprisionada da democracia, como liberdade, jogar a sociedade numa ladeira abaixo. E a precaução das forças democráticas terá que resgatar a socialização da tecnologia em seu benefício, para começar, uma outra relação entre o capital e a população. E esse caminho turbinado, não deixará de ter rasgões como adversidades, e não será nem leve nem ligeiro, porque esta crise vai ser longa. Um ciclo terminou. Uma nova economia, uma nova sociedade, uma nova democracia e um novo Estado estão para ser concebidos e construídos. Pois o mundo não está deixando os homens conformados, há um rastro de insatisfação e não existem utopias que embriagam. Há todo um novo período histórico a ser modelado e a ser musicado. O tempo se abriu. Não sabemos se a vitória será do Sol ou da Escuridão. E isto não tem nada a ver com a vitória do Bem ou do Mal.

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