CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
13 de agosto de 2009
O OVO DA SERPENTE
Por Enéas de Souza
Quando se comenta a crise atual, a gente vai colecionando diversas questões que, como frutas, algumas indigestas, colorem o balaio dos acontecimentos. Fazem parte destas florestas de indagações que povoam a superfície ou a profundidade do nosso tempo histórico. De uma forma ou de outra, são balizas que norteiam o transcurso e os territórios de nossas vidas. Colocamos para os leitores, hoje, quatro delas; perguntas que são também versões das inquietações mais fundamentais, o que quer dizer que se situam entre as mais densas do presente. Abrem todo um horizonte e um espaço, alargando a travessia da barca dos humanos como se fosse um despertador de consciência, de temas, de propostas, de soluções, de adversidades, de conflitos, de futuros. Comecemos.
É a atual crise uma crise de civilização?
Talvez seja a pergunta mais contundente que veio do mar das dificuldades e chegou, com força, até à praia das considerações. Porque uma crise de civilização embute uma crise de desconfiança dos padrões no qual vivemos. Vejam o tema da pergunta: crise de civilização. E não choque de civilização. Pequena diferença de acento, que desqualifica a belicosidade de alguns americanos e a fúria dominadora de uma certa elite dirigente que, nos tempos de Bush e Dick Cheney, quis – e talvez ainda hoje queira – transformar a sua ambição, o seu estilo de vida e mesmo o seu fracasso na guerra do Iraque, numa atividade predatória, em nome da segurança americana, contra os homens e contra o Oriente, em particular.
O que revela esse projeto decadente? Um fracasso de toda a consolidação de uma cultura, que está constantemente colocando a guerra pela guerra como um ponto chave de sua existência; que propõe a abundância material de coisas inúteis como o padrão máximo de civilização; que atenta contra a solidariedade como forma prioritária de relacionamento humano; que propõe o niilismo e o cinismo como os valores concretos de uma forma de viver; que pensa que o estado atual do mundo é o ponto culminante da forma de relacionamento entre os homens e que desqualifica outras civilizações como atrasadas por não seguirem o modelo da competição mesmo que desleal; que faz do domínio material uma indispensável rejeição da espiritualidade viva; que faz da religiosidade burocrática um instrumento para a dominação interna e externa das sociedades; que faz da riqueza de poucos um elemento fundamental de criação da pobreza de muitos, como se a disparidade econômica extrema dos homens fosse natural; que faz da violência o modo de ser vigente para impor o seu triunfo; que faz da guerra uma forma perpétua e básica de comércio; que faz da acumulação desesperada de valores banais uma forma de exemplaridade cultural; que tenta fazer de tudo um espetáculo para a acumulação do capital, desde a saúde até a própria cultura; que emprega o gasto desbragado de energia como se fosse um modelo de qualidade de vida e de exuberância material; que trabalha pela exaltação do objeto vulgar como o objeto nobre de sua cultura; etc.
Repito: talvez a questão em pauta sobre a crise de civilização seja a mais distante das pessoas. Mas, certamente, é aquela que se estabeleceu no mais profundo da sociedade. É aquela que, como um tumulto escondido, se põe a provocar a emergência de um vulcão. A cada momento, a cada compasso da crise, o ritmo da civilização mostra a sua face escoriada. E se olharmos com firmeza e sem remorsos vemos que ela é a nossa fisionomia mais viva e a interrogação mais oculta e a que mais sangra na carne de nossos dias. É como um punhal invisível que fere a alma dos habitantes do planeta, mas que muitos nem sabem que é aí que está a sua dor.
Para onde vai o capitalismo?
Esta pergunta traz outro itinerário. A moçada que defende com unhas e dentes os seus ganhos sabe que as coisas agora ficaram mais apertadas para que todos ganhem. O que significa que vai haver uma nova concentração e centralização de capital. Quem está na ponta, tipo Goldman Sachs, festeja e promove o seu entusiasmo. Só que, quebrada a jura antiga, há que ter uma nova estrela que não seja de amargura, uma estrela norte, advinhando uma nova constelação. A questão então se divide entre a hegemonia financeira e a hegemonia produtiva. De um lado, as finanças não construirão a mesma configuração da atualidade, tem que inventar novas artimanhas e novas astúcias que chamem a população para o sucesso dos seus ativos como se este triunfo fosse seu próprio. Mas, “O galo já não canta mais no Cantagalo” diz o samba de Paulo César Pinheiro. E, de outro lado, esta estrutura da produção está a exigir reformulações tecnológicas profundas para que a eficiência marginal do capital volte a subir. Assim, entre San Juan e Mendoza, entre o capital e o capital, o limite instaurou um desafio para o capitalismo, há que renovar a forma de produção, o plantel de produtos e as esferas de produtivas. Os sertões do capital vão passar metamorfoses inéditas. Quais são elas? Estará a guerra funcionando como uma mola destruidora entre elas?
José Luís Fiori usa a metáfora dos cosmos para tratar de uma nova expansão do capitalismo, pois o capital seria este cosmos em dilatação, em aumento de volume, de robustez, de engordamento, se organizando, e recompondo os espaços, a hierarquia e os conflitos dos diversos países. E nesse caminho resultante de uma pressão competitiva, o cosmo vai se arrastando para um novo ponto de sua trajetória. E no fim, Fiori acredita que os americanos continuarão com o seu passo de comando. Todavia, há toda uma metamorfose a ser ativada que tem um acompanhante privilegiado: a expansão da estrutura material leva junto uma outra estrutura de cultura. Trata-se de um movimento dialético que acaba por compor uma nova máscara de formas de novas relações sociais. Como se dará a articulação da situação atual com a volúpia da disputa dos países e a expansão do espaço sideral do capital? E o tema imprescindível: qual será a face humana e desumana desta nova aventura?
Temos uma crise do pensar, da decisão e da resolução dos problemas atuais?
Há um punhal que rasga a carne da atualidade: a indigência do pensamento, a perdição do decidir e a incapacidade de propor uma solução global. O que encontramos no momento é que está faltando teoria, seja para compreender o real, seja para propor a sua alteração. Mandando em tudo, as finanças e o capital transformaram o pensar em cálculo. Ninguém se guardou para repensar o mundo. E ter alguma idéia sobre a metamorfose dele bem como do desenho de uma forma de futuro novo. Pensar, claro, dói – sempre cito Pessoa – porque o que as finanças sempre quiseram é a transformação de tudo em ativo financeiro. O cálculo pode trazer até o cosmo com um ativo financeiro, mas o pensar jamais, porque o pensar é por em questão a forma como se vive. E é isto que recusam as finanças, no seu desespero à borda do túmulo desta atual forma de capitalismo. Onde está filosofia, onde está a teoria econômica, onde está a visão sociológica, onde estão as proposições antropológicas, onde está uma concepção de direito e de justiça, que poderiam transformar a sociedade? Ou seja, de uma forma ou de outra, esta questão retorna ao tema da crise da civilização, só que do ponto de vista que combina a reflexão com uma nova ação e uma outra forma de relações sociais.
Agora, vejamos, a crise do pensar se canaliza para a crise da política econômica, uma vez que não querendo ceder nada, o capital acaba por não ter proposta para sociedade. Pois, o capital só pode triunfar se tiver um projeto de organização e de hierarquia para esta. E no fundo, não tem. Ele está como o náufrago querendo apenas salvar o seu corpo e a sua dinâmica expansiva. E para tal se agarra a aquilo que passa, se prende ao que lhe pode aumentar imediatamente o volume de seus recursos. Na verdade, é cada capital individual querendo salvar o seu. A classe não tem proposta. E ao agarrar-se como o perdido no mar, em verdade, leva a todos para o seu desastre, inclusive aqueles que poderiam lhe apoiar. O náufrago financeiro está conduzindo para o abismo o capital produtivo e para o desemprego os assalariados dispersos e fracionados. Assim, não tendo pensamentos, não tendo política econômica que abarque a sociedade, o seu poder de resolução é precário e sem sutileza. O capitalismo financeiro está sem inspiração, está dividido, está sem capacidade de pensar, não tem uma política econômica para a sociedade e deixa escapar possibilidade de resoluções.
(Assim, a crise neste momento está num estado de suspensão, e as finanças apenas estão deixando o barco navegar. E por outro lado, os assalariados, ou a população, o pólo adversário das finanças, eles próprios, não têm nenhuma proposta para contra-ataque. Nesse sentido, o que vemos é que, pelo impasse, pelo estado de intervalo de jogo, de pausa dos confrontos, isto tudo serve ao capital. A incerteza ainda é capitalista. Um exemplo: o fato da nacionalização dos bancos não ter sido posta em prática mostrou que, ao bloqueá-las, o capital não avançou, mas não perdeu terreno. É como no tênis, o set point ainda está do lado do capital. Mas esse fundo do oceano insiste! Virá algum maremoto? Ou tudo é uma ilusão e um excesso de questionamento?).
Está em causa a transformação do Estado?
Passamos para um problema que é o nó da questão: o desacordo entre o estado caótico e complexo da economia financeira e produtiva do momento; e o futuro do capitalismo e o porvir da civilização. Pois é aqui, nesse cruzamento, que se exalta cada vez mais a força da luta de classes e dos grupos sociais. As finanças na sua tentativa de mostrar o seu espetacular triunfo, após a derrota da União Soviética, expunham uma idéia que muitos acreditaram. Tantos disseram que a luta de classes tinha terminado. Essa era também a idéia de Fukuyama. Na verdade, o tema era outro. A vitória do capital era de tal porte que ele fragmentou, fracionou e estilhaçou o movimento dos assalariados, dando a impositiva impressão que o mundo das oposições tinha terminado. Houve apenas um adormecer das forças subordinadas. O triunfo tinha chegado ao extremo. Nunca, em política, os conflitos terminam, nem a derrota é definitiva, a estrutura do mundo continua permanentemente de oposição. Pois, o que parece é que, lentamente como um sopro das ervas, ouve-se o ronronar dos de baixo. Mas, o mais interessante no momento não é isto. É que o andar de cima, como diz o cronista, está se dividindo. Sim, os caras que estavam no salão de banquetes agora brigam pelos pratos festejados que sobraram e pelas sobremesas incandescentes que restam. E não há como, toda esta confusão, toda esta luta, vai se expressar e está se expressando na arena do Estado.
E quem fala em Estado, nos dias que correm, fala em democracia. E a democracia atual tem um monstruoso problema, que serve obviamente para quem está no comando da sociedade. Vejamos o que acontece. Há como uma festa cívica e republicana nos dias das eleições. Um candidato é eleito pela população, mas fica acorrentado ao poder econômico, incapaz de frasear uma postura de desequilíbrio do capital. Como? Primeiro, porque logo depois da votação, onde a união do candidato com os votantes se faz presente, logo em seguida, há um corte que separa a população e o eleito, pois as decisões políticas, as decisões econômicas, todas as decisões, se dão face à articulação Estado e instituições dominantes. Assim, decisões sobre a produção, relacionam governo e empresa, mas dificilmente governo e assalariados. Este é o primeiro corte na democracia. O segundo, vem de um outro ponto. O presidente é eleito, mas o presidente do Banco Central escolhido pela presidência é sancionado pelo Senado. Passa a ter um mandato independente do Governo. Ora, isso significa que há uma carapaça enorme para protegê-lo; naturalmente, uma proteção invulgar. Esta forma instaura no poder da democracia uma fenda, uma ruptura profunda, porque dá ao Banco Central uma distância e uma autonomia diante do Executivo. Isto significa a infiltração das finanças no coração do Governo. Um poder dentro do poder. E sem que haja sequer algum tipo de controle democrático ou popular. E, no limite, nem o comando do Presidente da República.
Que mudanças podem ocorrer no Estado?
O neoliberalismo nos trouxe uma forma de organização do Estado perversa. Primeiro de tudo, o Estado foi financeiro, pois passou a ser regulado pela política financeira e pela política monetária. A moeda, de um modo geral, é construída pela taxa de juros, definida pelo Banco Central e pelos títulos do tesouro, lançados no caso americano pela Secretaria do Tesouro e no caso brasileiro pelo Ministério da Fazenda (Brasil) Ora, com isso, toda a parte econômica do Executivo é um prolongamento do setor financeiro, uma vez que o Banco Central puxa a Fazenda. Ocorre assim um reforço no esquema de poder das Finanças, que provoca um racha potencial e profundo no Governo, porque, além de tudo, a execução do orçamento, bem como a política fiscal, fica definida pelo Tesouro/Fazenda. Sintam assim a efetiva irradiação deste domínio político, econômico e social.
Agora, passamos para um segundo ponto. A proposta do neoliberalismo é que o Estado deve a ser encolhido, e foi concebido o “Estado Mínimo”, essa arrogância do triunfo das Finanças. Porque? Porque essa construção abriu um buraco no espaço estatal e no espaço público e no espaço social. Procurou-se anular qualquer veleidade da democracia em atuar na saúde, na previdência, na educação, na cultura, nas artes, na segurança, etc. E até mesmo na gestão das cidades, subordinadas que estão à insólita especulação imobiliária. Construiu-se, isso sim, a passagem de um serviço público para serviços privados. Os direitos foram transformados num processo de compra e venda. E então, o Estado financeiro foi alimentado pela transformação do financiamento do setor público num processo de capitalização dos serviços. Houve um passo em favor de uma aplicação extensiva do capital. Na realidade, tivemos a supressão do setor público e a financeirização dessas atividades. O que não serve a democracia.
A dor de cotovelo da economia
Qualquer coisa a mudar no Estado passa por alterar as configurações do Estado financeiro, a divisão interna do Executivo e a democracia neoliberal, onde há um fosso entre a população e os eleitos. Obama, por exemplo, está pagando por essa condição. O problema, de fato, é a rearticulação da sociedade em toda a extensão dos conflitos sociais. E, diga-se de frente, que o processo de transformação é longo. Primeiro, porque o que aconteceu até agora foi apenas um abalo paradoxal. Abalo que foi leve porque a promessa de transformação se mostrou muito sutil, já que só foi sacudido o domínio ideológico do neoliberalismo. E abalo que foi forte, porque a retirada da credibilidade deste neoliberalismo foi como tirar a roupa do rei, ele ficou nu. Há, como a passagem da semente a árvore, um longo processo para chegar a novos equilíbrios políticos e econômicos.
Na verdade, estamos na mais completa incerteza, que talvez se prolongue. Nem terminou a crise, nem a crise avança. Na verdade, na verdade, o que temos nesse instante é uma encruzilhada, entre um seguimento longo e vasto de uma estagnação - à la Japão, como trabalha meu colega André Scherer - e uma extensão abissal da crise. Estou também de acordo com a primeira hipótese. Mas, a mim, como a Sócrates, me fala um demônio interior. Lendo as múltiplas lógicas econômicas envolvidas na atual crise, percebo a formação de um vento cuja força pode dar origem a uma nova e tardia síncope. Um repique da crise para complicar o jogo. Naturalmente, oscilo entre os dois pontos. Por um instante, acho que o que vai acontecer é uma longa e obstinada viagem na imobilidade. Mas, olhando o encurtamento do espaço financeiro; a digestão lenta e atrapalhada da atual estrutura produtiva; o atrofiamento do comércio internacional e a incapacidade do Estado de suportar um apoio econômico expressivo sem afetar o dólar, não posso deixar de pensar que pode dar o segundo termo da disjuntiva. Tudo isso me leva a conjetura de que logo ali, no pátio do quintal da estagnação, existe a virtualidade de um buraco capaz de sugar a economia americana e mundial. Porque não acredito – não existem razões de lógica econômica, nem de indícios empíricos – que a crise já tenha passado. Esta é uma postura inexata da mídia salvacionista, que amplifica geralmente um resultado muito parcial como se fosse a revelação da totalidade. Ela não enxerga a dor de cotovelo da economia.
Coluna das quintas
13 de agosto de 2009
O OVO DA SERPENTE
Por Enéas de Souza
Quando se comenta a crise atual, a gente vai colecionando diversas questões que, como frutas, algumas indigestas, colorem o balaio dos acontecimentos. Fazem parte destas florestas de indagações que povoam a superfície ou a profundidade do nosso tempo histórico. De uma forma ou de outra, são balizas que norteiam o transcurso e os territórios de nossas vidas. Colocamos para os leitores, hoje, quatro delas; perguntas que são também versões das inquietações mais fundamentais, o que quer dizer que se situam entre as mais densas do presente. Abrem todo um horizonte e um espaço, alargando a travessia da barca dos humanos como se fosse um despertador de consciência, de temas, de propostas, de soluções, de adversidades, de conflitos, de futuros. Comecemos.
É a atual crise uma crise de civilização?
Talvez seja a pergunta mais contundente que veio do mar das dificuldades e chegou, com força, até à praia das considerações. Porque uma crise de civilização embute uma crise de desconfiança dos padrões no qual vivemos. Vejam o tema da pergunta: crise de civilização. E não choque de civilização. Pequena diferença de acento, que desqualifica a belicosidade de alguns americanos e a fúria dominadora de uma certa elite dirigente que, nos tempos de Bush e Dick Cheney, quis – e talvez ainda hoje queira – transformar a sua ambição, o seu estilo de vida e mesmo o seu fracasso na guerra do Iraque, numa atividade predatória, em nome da segurança americana, contra os homens e contra o Oriente, em particular.
O que revela esse projeto decadente? Um fracasso de toda a consolidação de uma cultura, que está constantemente colocando a guerra pela guerra como um ponto chave de sua existência; que propõe a abundância material de coisas inúteis como o padrão máximo de civilização; que atenta contra a solidariedade como forma prioritária de relacionamento humano; que propõe o niilismo e o cinismo como os valores concretos de uma forma de viver; que pensa que o estado atual do mundo é o ponto culminante da forma de relacionamento entre os homens e que desqualifica outras civilizações como atrasadas por não seguirem o modelo da competição mesmo que desleal; que faz do domínio material uma indispensável rejeição da espiritualidade viva; que faz da religiosidade burocrática um instrumento para a dominação interna e externa das sociedades; que faz da riqueza de poucos um elemento fundamental de criação da pobreza de muitos, como se a disparidade econômica extrema dos homens fosse natural; que faz da violência o modo de ser vigente para impor o seu triunfo; que faz da guerra uma forma perpétua e básica de comércio; que faz da acumulação desesperada de valores banais uma forma de exemplaridade cultural; que tenta fazer de tudo um espetáculo para a acumulação do capital, desde a saúde até a própria cultura; que emprega o gasto desbragado de energia como se fosse um modelo de qualidade de vida e de exuberância material; que trabalha pela exaltação do objeto vulgar como o objeto nobre de sua cultura; etc.
Repito: talvez a questão em pauta sobre a crise de civilização seja a mais distante das pessoas. Mas, certamente, é aquela que se estabeleceu no mais profundo da sociedade. É aquela que, como um tumulto escondido, se põe a provocar a emergência de um vulcão. A cada momento, a cada compasso da crise, o ritmo da civilização mostra a sua face escoriada. E se olharmos com firmeza e sem remorsos vemos que ela é a nossa fisionomia mais viva e a interrogação mais oculta e a que mais sangra na carne de nossos dias. É como um punhal invisível que fere a alma dos habitantes do planeta, mas que muitos nem sabem que é aí que está a sua dor.
Para onde vai o capitalismo?
Esta pergunta traz outro itinerário. A moçada que defende com unhas e dentes os seus ganhos sabe que as coisas agora ficaram mais apertadas para que todos ganhem. O que significa que vai haver uma nova concentração e centralização de capital. Quem está na ponta, tipo Goldman Sachs, festeja e promove o seu entusiasmo. Só que, quebrada a jura antiga, há que ter uma nova estrela que não seja de amargura, uma estrela norte, advinhando uma nova constelação. A questão então se divide entre a hegemonia financeira e a hegemonia produtiva. De um lado, as finanças não construirão a mesma configuração da atualidade, tem que inventar novas artimanhas e novas astúcias que chamem a população para o sucesso dos seus ativos como se este triunfo fosse seu próprio. Mas, “O galo já não canta mais no Cantagalo” diz o samba de Paulo César Pinheiro. E, de outro lado, esta estrutura da produção está a exigir reformulações tecnológicas profundas para que a eficiência marginal do capital volte a subir. Assim, entre San Juan e Mendoza, entre o capital e o capital, o limite instaurou um desafio para o capitalismo, há que renovar a forma de produção, o plantel de produtos e as esferas de produtivas. Os sertões do capital vão passar metamorfoses inéditas. Quais são elas? Estará a guerra funcionando como uma mola destruidora entre elas?
José Luís Fiori usa a metáfora dos cosmos para tratar de uma nova expansão do capitalismo, pois o capital seria este cosmos em dilatação, em aumento de volume, de robustez, de engordamento, se organizando, e recompondo os espaços, a hierarquia e os conflitos dos diversos países. E nesse caminho resultante de uma pressão competitiva, o cosmo vai se arrastando para um novo ponto de sua trajetória. E no fim, Fiori acredita que os americanos continuarão com o seu passo de comando. Todavia, há toda uma metamorfose a ser ativada que tem um acompanhante privilegiado: a expansão da estrutura material leva junto uma outra estrutura de cultura. Trata-se de um movimento dialético que acaba por compor uma nova máscara de formas de novas relações sociais. Como se dará a articulação da situação atual com a volúpia da disputa dos países e a expansão do espaço sideral do capital? E o tema imprescindível: qual será a face humana e desumana desta nova aventura?
Temos uma crise do pensar, da decisão e da resolução dos problemas atuais?
Há um punhal que rasga a carne da atualidade: a indigência do pensamento, a perdição do decidir e a incapacidade de propor uma solução global. O que encontramos no momento é que está faltando teoria, seja para compreender o real, seja para propor a sua alteração. Mandando em tudo, as finanças e o capital transformaram o pensar em cálculo. Ninguém se guardou para repensar o mundo. E ter alguma idéia sobre a metamorfose dele bem como do desenho de uma forma de futuro novo. Pensar, claro, dói – sempre cito Pessoa – porque o que as finanças sempre quiseram é a transformação de tudo em ativo financeiro. O cálculo pode trazer até o cosmo com um ativo financeiro, mas o pensar jamais, porque o pensar é por em questão a forma como se vive. E é isto que recusam as finanças, no seu desespero à borda do túmulo desta atual forma de capitalismo. Onde está filosofia, onde está a teoria econômica, onde está a visão sociológica, onde estão as proposições antropológicas, onde está uma concepção de direito e de justiça, que poderiam transformar a sociedade? Ou seja, de uma forma ou de outra, esta questão retorna ao tema da crise da civilização, só que do ponto de vista que combina a reflexão com uma nova ação e uma outra forma de relações sociais.
Agora, vejamos, a crise do pensar se canaliza para a crise da política econômica, uma vez que não querendo ceder nada, o capital acaba por não ter proposta para sociedade. Pois, o capital só pode triunfar se tiver um projeto de organização e de hierarquia para esta. E no fundo, não tem. Ele está como o náufrago querendo apenas salvar o seu corpo e a sua dinâmica expansiva. E para tal se agarra a aquilo que passa, se prende ao que lhe pode aumentar imediatamente o volume de seus recursos. Na verdade, é cada capital individual querendo salvar o seu. A classe não tem proposta. E ao agarrar-se como o perdido no mar, em verdade, leva a todos para o seu desastre, inclusive aqueles que poderiam lhe apoiar. O náufrago financeiro está conduzindo para o abismo o capital produtivo e para o desemprego os assalariados dispersos e fracionados. Assim, não tendo pensamentos, não tendo política econômica que abarque a sociedade, o seu poder de resolução é precário e sem sutileza. O capitalismo financeiro está sem inspiração, está dividido, está sem capacidade de pensar, não tem uma política econômica para a sociedade e deixa escapar possibilidade de resoluções.
(Assim, a crise neste momento está num estado de suspensão, e as finanças apenas estão deixando o barco navegar. E por outro lado, os assalariados, ou a população, o pólo adversário das finanças, eles próprios, não têm nenhuma proposta para contra-ataque. Nesse sentido, o que vemos é que, pelo impasse, pelo estado de intervalo de jogo, de pausa dos confrontos, isto tudo serve ao capital. A incerteza ainda é capitalista. Um exemplo: o fato da nacionalização dos bancos não ter sido posta em prática mostrou que, ao bloqueá-las, o capital não avançou, mas não perdeu terreno. É como no tênis, o set point ainda está do lado do capital. Mas esse fundo do oceano insiste! Virá algum maremoto? Ou tudo é uma ilusão e um excesso de questionamento?).
Está em causa a transformação do Estado?
Passamos para um problema que é o nó da questão: o desacordo entre o estado caótico e complexo da economia financeira e produtiva do momento; e o futuro do capitalismo e o porvir da civilização. Pois é aqui, nesse cruzamento, que se exalta cada vez mais a força da luta de classes e dos grupos sociais. As finanças na sua tentativa de mostrar o seu espetacular triunfo, após a derrota da União Soviética, expunham uma idéia que muitos acreditaram. Tantos disseram que a luta de classes tinha terminado. Essa era também a idéia de Fukuyama. Na verdade, o tema era outro. A vitória do capital era de tal porte que ele fragmentou, fracionou e estilhaçou o movimento dos assalariados, dando a impositiva impressão que o mundo das oposições tinha terminado. Houve apenas um adormecer das forças subordinadas. O triunfo tinha chegado ao extremo. Nunca, em política, os conflitos terminam, nem a derrota é definitiva, a estrutura do mundo continua permanentemente de oposição. Pois, o que parece é que, lentamente como um sopro das ervas, ouve-se o ronronar dos de baixo. Mas, o mais interessante no momento não é isto. É que o andar de cima, como diz o cronista, está se dividindo. Sim, os caras que estavam no salão de banquetes agora brigam pelos pratos festejados que sobraram e pelas sobremesas incandescentes que restam. E não há como, toda esta confusão, toda esta luta, vai se expressar e está se expressando na arena do Estado.
E quem fala em Estado, nos dias que correm, fala em democracia. E a democracia atual tem um monstruoso problema, que serve obviamente para quem está no comando da sociedade. Vejamos o que acontece. Há como uma festa cívica e republicana nos dias das eleições. Um candidato é eleito pela população, mas fica acorrentado ao poder econômico, incapaz de frasear uma postura de desequilíbrio do capital. Como? Primeiro, porque logo depois da votação, onde a união do candidato com os votantes se faz presente, logo em seguida, há um corte que separa a população e o eleito, pois as decisões políticas, as decisões econômicas, todas as decisões, se dão face à articulação Estado e instituições dominantes. Assim, decisões sobre a produção, relacionam governo e empresa, mas dificilmente governo e assalariados. Este é o primeiro corte na democracia. O segundo, vem de um outro ponto. O presidente é eleito, mas o presidente do Banco Central escolhido pela presidência é sancionado pelo Senado. Passa a ter um mandato independente do Governo. Ora, isso significa que há uma carapaça enorme para protegê-lo; naturalmente, uma proteção invulgar. Esta forma instaura no poder da democracia uma fenda, uma ruptura profunda, porque dá ao Banco Central uma distância e uma autonomia diante do Executivo. Isto significa a infiltração das finanças no coração do Governo. Um poder dentro do poder. E sem que haja sequer algum tipo de controle democrático ou popular. E, no limite, nem o comando do Presidente da República.
Que mudanças podem ocorrer no Estado?
O neoliberalismo nos trouxe uma forma de organização do Estado perversa. Primeiro de tudo, o Estado foi financeiro, pois passou a ser regulado pela política financeira e pela política monetária. A moeda, de um modo geral, é construída pela taxa de juros, definida pelo Banco Central e pelos títulos do tesouro, lançados no caso americano pela Secretaria do Tesouro e no caso brasileiro pelo Ministério da Fazenda (Brasil) Ora, com isso, toda a parte econômica do Executivo é um prolongamento do setor financeiro, uma vez que o Banco Central puxa a Fazenda. Ocorre assim um reforço no esquema de poder das Finanças, que provoca um racha potencial e profundo no Governo, porque, além de tudo, a execução do orçamento, bem como a política fiscal, fica definida pelo Tesouro/Fazenda. Sintam assim a efetiva irradiação deste domínio político, econômico e social.
Agora, passamos para um segundo ponto. A proposta do neoliberalismo é que o Estado deve a ser encolhido, e foi concebido o “Estado Mínimo”, essa arrogância do triunfo das Finanças. Porque? Porque essa construção abriu um buraco no espaço estatal e no espaço público e no espaço social. Procurou-se anular qualquer veleidade da democracia em atuar na saúde, na previdência, na educação, na cultura, nas artes, na segurança, etc. E até mesmo na gestão das cidades, subordinadas que estão à insólita especulação imobiliária. Construiu-se, isso sim, a passagem de um serviço público para serviços privados. Os direitos foram transformados num processo de compra e venda. E então, o Estado financeiro foi alimentado pela transformação do financiamento do setor público num processo de capitalização dos serviços. Houve um passo em favor de uma aplicação extensiva do capital. Na realidade, tivemos a supressão do setor público e a financeirização dessas atividades. O que não serve a democracia.
A dor de cotovelo da economia
Qualquer coisa a mudar no Estado passa por alterar as configurações do Estado financeiro, a divisão interna do Executivo e a democracia neoliberal, onde há um fosso entre a população e os eleitos. Obama, por exemplo, está pagando por essa condição. O problema, de fato, é a rearticulação da sociedade em toda a extensão dos conflitos sociais. E, diga-se de frente, que o processo de transformação é longo. Primeiro, porque o que aconteceu até agora foi apenas um abalo paradoxal. Abalo que foi leve porque a promessa de transformação se mostrou muito sutil, já que só foi sacudido o domínio ideológico do neoliberalismo. E abalo que foi forte, porque a retirada da credibilidade deste neoliberalismo foi como tirar a roupa do rei, ele ficou nu. Há, como a passagem da semente a árvore, um longo processo para chegar a novos equilíbrios políticos e econômicos.
Na verdade, estamos na mais completa incerteza, que talvez se prolongue. Nem terminou a crise, nem a crise avança. Na verdade, na verdade, o que temos nesse instante é uma encruzilhada, entre um seguimento longo e vasto de uma estagnação - à la Japão, como trabalha meu colega André Scherer - e uma extensão abissal da crise. Estou também de acordo com a primeira hipótese. Mas, a mim, como a Sócrates, me fala um demônio interior. Lendo as múltiplas lógicas econômicas envolvidas na atual crise, percebo a formação de um vento cuja força pode dar origem a uma nova e tardia síncope. Um repique da crise para complicar o jogo. Naturalmente, oscilo entre os dois pontos. Por um instante, acho que o que vai acontecer é uma longa e obstinada viagem na imobilidade. Mas, olhando o encurtamento do espaço financeiro; a digestão lenta e atrapalhada da atual estrutura produtiva; o atrofiamento do comércio internacional e a incapacidade do Estado de suportar um apoio econômico expressivo sem afetar o dólar, não posso deixar de pensar que pode dar o segundo termo da disjuntiva. Tudo isso me leva a conjetura de que logo ali, no pátio do quintal da estagnação, existe a virtualidade de um buraco capaz de sugar a economia americana e mundial. Porque não acredito – não existem razões de lógica econômica, nem de indícios empíricos – que a crise já tenha passado. Esta é uma postura inexata da mídia salvacionista, que amplifica geralmente um resultado muito parcial como se fosse a revelação da totalidade. Ela não enxerga a dor de cotovelo da economia.
(Espero que toda essa avaliação seja conseqüência de uma noite mal dormida e do demônio socrático que me chegou sob a forma de pesadelo. Se o rumo for o aprofundamento da crise, estaremos numa enrascada. O ovo da serpente se romperá diante de nós!)
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