quinta-feira, julho 30, 2009

A CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
30 de julho de 2009

A ESTRATÉGIA DE LULA
Por Enéas de Souza

Das estratégias do presidente

Quando falamos da estratégia de Lula temos que dividir a questão em duas partes: a primeira, se refere à estratégia do governo Lula diante da crise internacional e nacional; a segunda, trata-se da estratégia de Lula e do seu grupo político na busca da manutenção do poder no Brasil. Estas duas estratégias, por si só complexas, têm uma exigência de sofisticação muito alta e muito nítida. E estão encaminhadas para um espectro de atos, autônomos e simultâneos, que atravessam tanto o campo político como o campo econômico. Por essa razão, a energia a ser gasta nos conflitos de uma e de outra seara criam um circuito de influências mútuas que geram combinações dinâmicas amplificadas e crescentes na realização das duas estratégias citadas. O tempo vai exigindo correções incessantes e necessárias.

É bem verdade que já sabemos, por antecipação, que vamos ter que misturar os múltiplos ângulos de análise, como um cineasta que filma uma cena de muitos pontos de vista. De qualquer modo, este é um assunto que vale a pena, mesmo não tendo dúvidas de que é também um tema escorregadio, errático, propício a erros e equívocos tremendos. Nele estão à espreita inúmeras surpresas e inesperadas ciladas. Logo, trata-se de um objeto analítico delicado e temente a miopias de todos os cunhos. Mas, um analista de conjuntura é como um piloto de fórmula 1, pode receber, em qualquer trecho da corrida, o impacto de uma mola perdida no rosto. E perder, na dureza de uma reversão de expectativas, a sua aposta interpretativa. Assim, o âmbito de nossa análise cativa as curvas barrocas e as derrapadas perigosas. Todavia, temos que avançar na nossa compreensão, já que é substancial a percepção desse momento, que envolve o ambicioso e imprevisível embate no qual está metido Lula.

Lula pensa na nova divisão internacional do trabalho

Para a compreensão das estratégias de Lula, não se pode deixar de partir da presente conjuntura mundial com a finalidade de discutir a realidade da economia e da sociedade brasileira. Estamos metidos numa crise de altas proporções, pois temos uma crise global centrada na ruptura da liderança – ou, ao menos, num estilo de liderança – dos Estados Unidos. Ela se baseia no desmanchar-se de um sistema financeiro, construído (sic!) para ser propositadamente desregulado. Então se trata de uma crise de superacumulação de uma esfera do capital, mas que não está sozinha, vem acompanhada de uma outra crise, a crise da esfera produtiva. Estas duas fraturas requerem uma reformulação completa de ambas as esferas. Diante de uma aparente crise de curto prazo, o mundo descobriu e está descobrindo uma frontal crise de longo prazo. Uma vez que o que vai ser resolvido é um novo modelo de acumulação capitalista, uma nova fase da economia do capital. Está em jogo uma distinta divisão internacional do trabalho, de cores ainda indefinidas, onde as perspectivas estão sendo acolhidas, preparadas, e cuja temporalidade se mede em anos. A solução da crise não se mede por melhoras passageiras, ela se mede pela construção de um novo patamar de acumulação.

O panorama visto do longo prazo

Então, a primeira clareza que tem que se ter é que qualquer solução definitiva do Brasil passa por esta transformação da economia internacional. E o que temos no momento é um grande embaraço no curto prazo, mas os Estados Unidos – na verdade, o governo Obama – já tem um esboço de uma estratégia de longo curso. Baseia-se numa metamorfose profunda da economia mundial, tanto pelo lado da infra-estrutura da base energética, quanto pelo lado da mudança da concorrência intercapitalista no conjunto dos mercados. É preciso apontar a economia para este ponto futuro, organizando a sociedade para estas alterações, o que envolve um agrandado pacto e um viável contrato das forças sociais na direção destes objetivos. Objetivos que passam por uma reformulação das condições sociais de educação, saúde, previdência, segurança, e inclusive pelo tratamento das questões climáticas e ecológicas, incompatíveis com esse modelo de acumulação financeira que dominou nos últimos anos. Nesse sentido, o conflito desta política – que angaria forças produtivas, forças assalariadas, forças mercantis, forças do setor de serviços, forças da burocracia pública, forças de marginalizados, etc., – se dá claramente contra o desejo de restauração e conservação do capital financeiro. O grande combate se decide aqui. Não a derrota e submissão total das finanças, porque isso parece sem horizonte no momento. Mas uma subordinação política delas. No mínimo, uma negociação adequada para que participem na nova fase do capitalismo, onde o objetivo prioritário seja de rendas vindas da concessão de créditos, e nunca das atrevidas e fortes especulações que terminam por levar de arrastão a economia produtiva e a sociedade como um todo.

Qual será a dança brasileira do futuro?

Admitindo, porém, que haja uma reformulação da economia mundial, o que se evidencia aqui é um ponto de tremenda incerteza para o destino do Brasil. Contudo, o governo Lula já tem um projeto de inserção brasileira nesta economia. Parte da necessidade de afrontar os impactos da crise atual com o direcionamento do país para esta nova trajetória. Neste particular, o projeto do país é nítido. Começa pela reafirmação da presença do Brasil na questão energética. Olhando para o petróleo, o pré-sal e biocombustível, vê-se, sente-se, desassombradamente, que ele tem projeto. A flor ainda está em botão, mas as pétalas estão prontas para celebrar a sua emergência. E só isto, esta montanha de recursos energéticos, vai re-posicionar o Brasil no contexto mundial. Na transição da matriz energética, não há dúvida que estaremos na primeira linha. Talvez aqui, com esta vocação neste campo o país tenha que ser mais ambicioso e ver mais longe. Os grandes resultados econômicos, que podem advir desta política, serão suficientes para garantir e constituir um fundo com o objetivo de alcançar um avanço também nas novas tecnologias de energia eólica, solar, etc. Ou seja, podemos criar uma perspectiva de trajetória segura, longa – e secular. De outro lado, o Brasil também pode continuar a atuar no mercado de alimentos, de matérias primas, pois este senda se mostra igualmente viável. Mas, o que nos parece fundamental é que o Brasil não deixe de perseguir a participação de empresas brasileiras ou multinacionais aqui instaladas na área industrial, mesmo que seja uma participação na região que está adstrito. Coisa que poderia acontecer também no setor da infra-estrutura, onde já tem presença assegurada no continente sul-americano. Ou seja, o Brasil não pode aspirar a ser um país líder, um cristal de primeira grandeza, mas certamente pode integrar-se no conjunto de países que vão formar as estruturas principais do novo processo de acumulação, onde até uma internacionalização de bancos nacionais, numa escala modesta, tem condições de acontecer. O mundo não dançará o samba, mas o novo rock poderá ter um trecho sonoro de uma nota só.

A devolução do que o gato comeu

Porém, o que nos parece complexo é um projeto de sociedade, onde a solução para as questões sociais não parece equacionada. No momento atual, o Brasil conseguiu, num pacto peculiar – envolvendo capital bancário, capital industrial, capital do setor de serviços, capital midiático, capital comercial, assalariados dos mais diversos setores – dar um grau mínimo de satisfação à população operária, aos trabalhadores dos mais diversos setores, aos pobres, etc. Todavia, este pacto, organizado pela estratégia Lula, pode permanecer e até se ampliar na busca do objetivo de uma nova inserção da economia brasileira na economia mundial. Porém, o que não nos parece ser contemplado pelo pacto são algumas peças importantes de um projeto social: educação, saúde, previdência, cultura, etc. Aspectos que são pontos determinantes para constituir um poder mais amplo no concerto das nações. Poder que o Brasil aspira e que, seguramente, não é apenas de uma integração econômica. Para uma presença mais encorpada há que ter presença política, o que já vem acontecendo. Tem que ter uma política externa audaciosa, onde o Itamarati continue a ser uma peça de vital importância como foi desde primeiro instante no governo de Lula. Mas, há outras figuras do jogo. Há que ter presença cultural, coisa que acontece muito pouco; há que ter presença na formação de uma sociedade mais justa e mais equilibrada, coisa que estamos no nível quase das migalhas; e há que ter uma nação inventiva com uma coesão renovada e incisiva e mais organizada em torno de um projeto nacional. Para isso, o Brasil tem que atuar fortemente no nível internacional como ainda não o fez, apesar da grande revolução de 2003 para cá.

As duas linhas da inclinação brasileira

Pois bem, este projeto brasileiro, depende na sua inclinação – um pouco mais para um lado, um pouco mais para outro – do destino que o Brasil escolha, a partir da decisão política que der aos contornos eleitorais da próxima contenda. Parece que se advinham duas linhas, materializadas nas figuras de Dilma e de Serra. O que significa isso? Significa que descemos agora da estratégia nacional para os combates políticos entre agrupamentos partidários nacionais. Não vamos discutir aqui o caminho de Serra, mas o itinerário da estratégia Lula, do grupo político que se constitui no “lulismo”. Pois, para que a estratégia brasileira de Lula seja a realidade sonhada pelo seu governo, é preciso que consiga fazer a próxima presidência. E aqui está em jogo uma astúcia exemplar, conseguir que Dilma se apresente como candidata, e como uma candidata vencedora. Já que Lula identificou na ministra da Casa Civil as condições intelectuais, administrativas, políticas e estratégicas, e de fidelidade pessoal, para ser a sua sucessora, sem fraudar esta estratégia nacional concebida por ele. Todavia, a eleição da ministra se depara com diversos problemas. Além dos problemas médicos, avultam problemas econômicos e problemas políticos.

O curto prazo passa pela sustentação da demanda

Para entender bem toda essa configuração, temos que partir da situação econômica do Brasil. O que vale ter a compreensão de como é que está sendo a nossa resposta à crise. Temos, é bom dizer, uma dupla estratégia: a de longo prazo, aquela que escrevemos lá em cima, e a imediata, a de tempo breve, que é a que falaremos agora. Sabemos que hoje, diante do vendaval, o Brasil procurou recuperar, sem hesitar, a posição do Estado. Como já falamos em outros lugares, o Estado no Brasil, desde FHC, vinha sendo dominado pelas Finanças, cuja trama e cuja tática visava desfazer qualquer intervenção dele no contexto econômico. Tínhamos constituído um Estado Financeiro. Pois, até o BNDES estava se financeirizando, deixando de ser um banco de desenvolvimento para ser um “banco de investimento”, um banco de aplicações financeiras. A crise permitiu algo que já tinha começado em 2007 com o PAC, uma retomada da visão produtiva com o incentivo do investimento real.

Com a crise, a necessidade de intervenção do Estado foi consumada, mas de uma forma diferente do desenvolvimentismo. A intervenção veio sob a forma de isenção de impostos, para o setor automobilístico e para a linha branca dos eletrodomésticos, o que garantiu parte do emprego. Todo o esforço foi de deter a queda de toda a demanda, amparando o consumo, diminuindo o ambiente negativo das finanças e do comércio internacional, cujos efeitos vararam principalmente na indústria. A idéia era permitir que esta, ou parte desta, garantisse o “desovar” dos seus estoques e que, terminada a operação, em seguida, passasse a aplicar na produção de forma a recuperar a taxa de investimento do setor privado. No entanto, até agora ainda não houve o ressurgimento desta taxa. Com este fato e com a brutal queda do setor externo, o país ficou na mão do consumo. E o governo acertou, deu a ele o estímulo indispensável. A diminuição dos impostos, já vimos, consolidou um apoio fundamental, ainda mais que o crédito se ampliou no país regado pela presença dos bancos estatais Veio, assim, um passo importante: eles forçaram a queda dos juros, destacando o posicionamento da Caixa em favor da construção civil, agora que o governo tem um programa especial para habitação popular. Ou seja, procura-se deter a queda da demanda generalizada, enfatizando a propensão a consumir, alimentando um ânimo na população. Com esta manobra, o Estado principia um processo de recuperação da liderança da economia, cujo êxito se dará quando o investimento for novamente a estrela da recuperação do desenvolvimento.

O que e quem vai ligar o curto ao longo prazo?

A questão toda é como articular o curto e o longo prazo. Cabe, numa economia como a brasileira, onde o ator essencial seja o Governo, numa ação intensa de re-configuração do papel do Estado. Toda a sua ação visaria bloquear e parar a prevalência das finanças. E isso só poderia acontecer concretizando uma política de impulsão ao investir. Uma política que continuaria o PAC, que passaria pelo Sistema de Habitação Popular e que se desdobraria na clara presença da Petrobrás e do futuro Petrosal. Esse conjunto dá e daria o Estado um papel adequado na liderança, na difusão e na cultura do investimento. E com isso, contrabalançaria, um pouco mais, o feroz atiçamento, demasiado em outros tempos, do setor bancário, com o seu crescimento financeiro, principalmente cultivando títulos públicos. Por isso, o “lulismo” tem um projeto político para o Estado, almejando construir um projeto econômico de atamento do curto prazo com o longo prazo. Mas, não só a ligação dos dois prazos. Tem que se considerar quem vai fazê-la. E Lula instaurou o projeto Dilma. Ela viria com duas pautas fundamentais: de um lado, estratégia de inserção do Brasil na nova divisão internacional do trabalho, tentando manter uma presença econômica e política do país no novo processo de acumulação de capital. Aliado a isso, com uma base popular forte – desde os sem renda, os sem teto, os sem terra, passando pelos assalariados, entre eles os operários – a estratégia se prolongaria com o apoio prioritário do capital produtivo, integrando tanto quanto possível os bancos, numa aliança populista-capital produtivo-capital bancário para projetar o Brasil no mundo. E obviamente, para preparar o retorno de Lula em 2014.
Esta estratégia do “lulismo” estaria em forte e decisivo contraste com o projeto de Serra. Não que Serra iria contra a estratégia de integração do Brasil no mundo. No entanto, a aliança que estaria subjacendo a este projeto seria uma aliança capital produtivo-capital bancário, antes do que um pacto que envolvesse uma integração popular. Não que Serra não queira cativar a população de operários, trabalhadores do setor de serviços, dos deserdados. Só que a base de apoio para a sua eleição seria outra, e, portanto, o projeto de integração estaria numa direção em torno do capital. Mais Estado para desenvolver o capital, e mais capital para aumentar o emprego. O projeto de Dilma seria outro: mais Estado para direcionar o capital, e mais capital para que o Estado possa também desenvolver uma economia social. A estratégia de Lula para o longo prazo do Brasil passa por uma estratégia de poder. E ela vai de Lula à Dilma e retorna de Dilma à Lula. Uma longa viagem dentro da política. Certamente cheia de ciladas, labirintos e areia movediça. A pergunta durante todo o tempo será: a realidade seguirá a concepção prévia?

Nenhum comentário: