quinta-feira, maio 05, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
05 de maio de 2011
Coluna das quintas




OBAMA E OSAMA:
DUAS CABEÇAS A PRÊMIO
Por Enéas de Souza





1) Osama Bin Laden morto é o maior cabo eleitoral de Barack Obama. Isso é tão evidente que não mereceria nenhum comentário mais expressivo. Só que queria acrescentar, ou reafirmar, uma ou duas idéias nos fios de novelo. Esse episódio não é apenas um apoio à campanha de Obama. Mais que isso, para mim, ele é um turning point na trajetória do presidente americano. Trata-se de um vento de cauda, como dizem os pilotos dos aviões. Em primeiro lugar, é preciso ver que Obama vinha sendo um presidente totalmente batido pelas iniciativas dos conservadores, dos republicanos e dos financistas (veja-se que os três não são a mesma coisa). E a cachoeira de fatos caindo sobre sua cabeça trazia largos jorros de crítica da população. E não apenas da classe alta, mas gente de todas as classes. O governo do Obama, então, estava assim, parecendo um náufrago à deriva, se afogando lentamente, E o que aconteceu com ele? Há muitos aspectos – muitas determinações, diria Hegel – a respeito desse acontecimento. Há o aspecto simbólico, há o aspecto político interno, há o aspecto internacional, há o aspecto ideológico. E etc. Ou seja, as análises poderão ser longas. Longas e com muitos ângulos. No caso deste artigo vamos pegar apenas dois pontos: a política interna e os valores em jogo.



2) A morte de Osama Bin Laden mudou tudo. Ela faz parte de uma jogada de Obama para voltar ao centro das iniciativas da política americana. Sempre houve uma sombra na sua trajetória depois de eleito. A crítica feroz, sobretudo dos republicanos, a respeito de sua origem e da sua fraqueza política em defender os valores americanos, pelo menos. Na verdade, a coisa aqui é complexa, porque existem duas correntes ideológicas fortes nos Estados Unidos – a corrente guerreira e a corrente liberal – que enxergam o mundo, a presidência e a ação dos Estados Unidos de modo diferente. Obama navegou nessa última, prometendo uma diplomacia de paz, uma luta contra o sistema financeiro, uma série de pesquisas para mudar a matriz energética, uma reorganização da indústria americana e, politicamente, uma nova – ou um retorno – à liderança liberal. Tudo para fazer face à postura guerreira e canhestra do inefável Bush. Não conseguiu mover nada. “No meio do caminho tinha uma pedra”. Os financistas ocuparam todo espaço econômico do governo, o desemprego continuou alto e intolerável, a produção, indústria velha, vem se recuperando pela produtividade e nunca pela mudança do paradigma industrial. A dívida e o déficit americano, por causa da herança da crise, visitaram níveis muito altos. E as guerras, para desespero dos pacifistas, continuaram matando gente. O propósito da retirada das tropas do Iraque e do Afeganistão, e o fechamento da base de Guantánamo tiveram datas alteradas e tornaram-se figuras de histórias fingidas. Até o último fim de semana, Obama mergulhava no pântano político. A vizinhança da eleição e a sua queda de popularidade davam esperanças aos republicanos. Era o anúncio da dança da eleição perdida.



3) E aí aparece Bin Laden. E aparece morto. E isso muda tudo, sobretudo muda a estrada da re-eleição. A grande jogada de Obama foi conseguir que os Estados Unidos matassem o terrorista-mor, num momento inclusive em que o fracasso da política externa americana era uma realidade de nu frontal. O que Obama fez, ao anunciar a morte de Bin Laden, e ao expressar o seu discurso de reivindicação de justiça e de grandeza americana, foi matar um “inimigo jurado dos Estados Unidos”. Praticou a jihaad americana. Por que? Porque Bush forçou sempre a linha contra o terrorismo, consolidando a figura da “guerra ao terror” na imagem de Osama. Por oposição, esse se constituiu num símbolo, símbolo do terrorismo, símbolo da invasão do território americano. Por negação, esse símbolo unia os americanos. As Torres foram uma humilhação no orgulho pátrio. Tio Sam clamava por vingança. E o desejo de vingança expresso no desejo de matar estava presente na alma dos americanos. Desejo de vingança, sim; mas óbvio, claro, em nome da justiça. Antes de avançarmos na análise devemos atentar bem, quem foi morto não foi Osama, foi a materialização do símbolo que feriu os Estados Unidos.



4) Pois, Obama apostou alto. Jogou em cima do símbolo negativo de Osama Bin Laden trabalhado pela administração Bush. Esse símbolo negativo permitiu aos americanos fazerem a guerra do Afeganistão e do Iraque, construindo fortemente o avanço da unipolaridade geopolítica. Ponto para a indústria bélica, ponto para a indústria petrolífera, ponto para a construção civil. E naturalmente, ponto para os conservadores e os republicanos. (Enquanto isso, as finanças devastavam a economia). Todavia, o símbolo negativo, indiretamente, passou a ser o grande desafio para Obama. E emergia, no rastro do símbolo, toda a sua fraqueza política, ao mesmo tempo, que recebia as acusações de que não representava e não defendia os valores americanos. Apanhou como cão danado. Sua saída, para ultrapassar a desmoralização completa, foi fazer o lance do assassinato de Osama. A história do vivo ou morto. E a administração Obama preferiu Bin Laden morto.



5) Pois o gênio da jogada do assassinato de Osama Bin Laden é que a estratégia de Obama trabalhou sobre o símbolo que falamos acima. Ou seja, Obama não visou apenas um acréscimo de popularidade, uma recuperação de seus fracassos. Buscou a recuperação, pela direita, pelo lado guerreiro, do prestígio americano. Produto extremamente válido para o plano interno provocou, por consequência, uma reviravolta na re-eleição. Um cavalo de pau. E, sobretudo, ficou visível, Obama renasceu no calcanhar de Aquiles, ali onde os americanos se vêem como grandes guerreiros, como batalhadores da justiça, como povo líder do Ocidente e do Mundo. Imagem que estava rota e que foi usada pelos adversários do presidente contra o seu mandato. Como contraposição, veio uma caçada que termina por fulminar o terrorista que zombou dos Estados Unidos. Uma metamorfose singular, um feito absolutamente notável na imagem interna da política americana. Porque agora sim, o governo de Obama vai recomeçar. Ele é confiável, ele é americano, ele recuperou a auto-estima da população, ele conseguiu “o que todo mundo queria”. E colocando a sua bandeira na história do país (a morte do terrorista que humilhou os Estados Unidos) ele, agora sim, pode mudar, dar novas expectativas para poder reorganizar o país. Prova disso é o resultado de uma sondagem onde 96% da população americana aprovou o ato de Obama.



6) Do ponto de vista, da política como espetáculo, Obama consegue inflar de novo o seu prestígio. A partir de agora, como todos os personagens épicos americanos – dos filmes de história policial aos filmes de cowboys – ele entra no caldeirão dos vencedores. Fincou a bandeira na destruição do símbolo negativo, de onde poderá sair à re-eleição, de onde poderá superar os seus fracassos de política econômica, de política social, de política internacional. O meu sentimento é que Obama virou o jogo e vai passar ao ataque. Pela primeira vez desde que foi eleito.



7) Na política interna, em função da proximidade das eleições, em função das derrotas sucessivas em múltiplas questões (salvo na votação do plano de saúde), a paralisia do seu governo chegou a ser cogitada na votação do orçamento deste ano. Obama rumava para o despenhadeiro, a sua história política fazia amizade com o abismo. Pois bem, é nesse ponto que matar Osama Bin Laden foi a jogada de gênio. Por que? A primeira coisa: arrancou dos republicanos a liderança ideológica e destruiu o símbolo negativo. Obama se apossou do centro do espectro político e se transformou no super-herói da alma americana. Bin Laden tinha posto em cheque e tinha humilhado o orgulho do país, o primeiro a atacar, com êxito, Tio Sam na sua própria terra. Na política como espetáculo, matar o terrorista faz toda a diferença, provoca a metamorfose da figura de Obama, permite que haja um avesso na sua trajetória. E assim, lanhado o símbolo negativo, agora vai assumir efetivamente a política americana como líder legítimo. Tanto que hoje vai ao “Ground Zero” para dar a virada de página definitiva da era Bush. São aqueles jovens, sedentos de bravura indômita, que agora vão apoiá-lo, como se o marido de Michele fosse um deles.



8) O segundo ponto que queria assinalar são os valores do governo americano. Eles se colocam como vítimas, como justiceiros. Os outros são vilões. E mais, eles podem intervir em qualquer parte do mundo. E podem fazer uma caçada de morte. Tudo em defesa da democracia... E podem se rejubilar com a morte de um cara – para não dizer de um homem. Ora, esses acontecimentos me lembram as peças de Ésquilo, a trilogia chamada Orestíade. Nela, o que existe como pano de fundo e pano de frente é a idéia de olho por olho, sangue chamando sangue, morte se empilhando em cima de morte. E quando Orestes vai ser julgado, o resultado final é o estabelecimento da necessidade de um tribunal para resolver os conflitos da humanidade. Os romanos fizeram algo notável e o direito canônico deu continuidade a isso. A primazia da lei. É a lei que permite a civilidade – e não o tacape como forma de organização do mundo. Mas, como sempre afirmamos neste blog, o conflito está na base da política. Mas se ela não dá uma acalmada e não controla a violência, engendra, anima e amplia o teatro dos conflitos. Só que, se os homens permanecem constantemente na belicosidade, o que nós temos é a vitória da famosa expressão do Hobbes, “homo homini lupus”. O combate em toda a sua extensão. Uma faca puxa outra, um tiro traz o segundo, e o segundo encaminha a série na direção do infinito. Como observava Borges: existe um apelo de dinâmica ativa quando seguro um punhal na minha mão.



9) Por isso, a política é a forma de negociar e deter a violência na sua manifestação mais acerba de exercício da brutalidade. A cultura surge por bloquear, senão duradouramente, mas, pelo menos por um tempo, a agressividade progressivamente letal. E o que nos espanta nesse episódio de Osama Bin Laden é, em primeiro lugar, que o presidente dos Estados Unidos, uma das figuras importantes do século XXI, venha à televisão americana e mundial e diga – imagem diante dos nossos rostos, diante dos nossos olhos, diante da nossa inteligência – que assassinar Bin Laden significou que “a justiça foi feita”. E não deve deixar passar batido que se pode invadir um país assim na pura vontade de invadir, como ocorreu no Paquistão. E que essa interdição possa ser suprimida só porque o presidente americano avisou (a posteriori) ao presidente do Paquistão. Foi invasão sim e assassinato também. Ora, que retórica política mais miúda essa do domingo! O que está em jogo é o problema da Orestíade: o desejo de vingança. A lei ficou grudada no artefato que matou Bin Laden. Isso põe o século XXI de volta na atmosfera dos séculos antes de Cristo, ou naquele mundo dos animais que aparecem no início do filme de Stanley Kubrick, “2001”. Um darwinismo muito cortante, uma lâmina vastamente afiada. Barack Obama sucumbiu à direita norte-americana e mundial. Onde estava o seu discurso de paz? Onde ele colocou o seu diploma de Prêmio Nobel da Paz? Certamente, Bin Laden deveria ser julgado e condenado. Mas o desejo de vingança triunfou sobre o desejo de legalidade. Tivemos, depois da Páscoa, uma Aleluia sangrenta e conservadora.



10) Não há dúvida, dentro da “realpolitik”, Obama vai ao lado destro do cenário político para se salvar. São concessões políticas que tem que fazer para que o poder possa ser mantido. Pois veja, leitor eventual, Osama vem sendo superado politicamente pelas novas formas de resistência das democracias do Norte da África e pelos movimentos por mudanças políticas no próprio Oriente Médio. Então, a operação Bin Laden foi, de fato, uma operação política, ilegalidade gritante, com predominância interna e com grande ênfase no caráter simbólico, para permitir que Obama seja respeitado no plano interno e quiçá no plano externo. Não queremos dizer que ele será necessariamente vitorioso nas eleições do ano que vem; apenas salientamos que a sua candidatura já está na pista de decolagem. Decolará? Os seus fins justificarão seus meios?



11) Porém continuam a vigorar inúmeras questões. As perguntas são as seguintes: o desejo de justiça deve funcionar como desejo de vingança? E onde fica a lei? O que é bom para os Estados Unidos é bom para o mundo? O que vale para mim vale para os outros? E, finalmente, a questão decisiva: qual é o contrato contemporâneo que nos salvará da guerra de todos contra todos?

Um comentário:

charlles campos disse...

Muito a ver com minha visão sobre o assunto:

http://charllescampos.blogspot.com/2011/05/queimar-casa-para-assar-o-porco.html