CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
26 de maio de 2011
Coluna das quintas
O CAPITALISMO
NÃO É MAIS AQUELE,
MAS AINDA NÃO É OUTRO
Por Enéas de Souza
1) A grande crise mundial está entrando numa nova fase. De um lado, porque a economia está caminhando por pedras adversas e, de outro, porque agora, após a pólvora da crise financeira americana e européia, temos o fósforo aceso da crise fiscal, se espalhando por todo o conjunto Estados Unidos-Europa. Vendo as imagens contundentes da “revolução espanhola” da semana passada, a gente percebe que elas se juntam àquelas das populações da Grécia, de Portugal, da Islândia, da Irlanda – não citando Itália e França – que revelam tristes pontos de desespero e de revolta na realidade presente. A desfaçatez da fração de classe do capital financeiro é absoluta, pois suas instituições financeiras quebraram e foram salvas em detrimento do capital produtivo e dos assalariados. E depois de salvos, passaram a atirar contra o Estado e contra as conquistas sociais. E a coisa nesse nível é muito complicada, as práticas do capital financeiro são vorazes, predatórias e corruptoras e tentam, de todo o jeito, vender a mercadoria do neoliberalismo para resolver a multidão de crises, inclusive a crise política da decadência americana.
2) Assim, nos fixemos nos Estados Unidos. Lá, as finanças têm representantes nos principais órgãos econômicos do Estado, têm lobbies fortíssimos no Congresso Nacional, financiam as campanhas políticas de deputados, senadores e candidatos a cargos executivos. E através de sua aliança com a grande mídia – a verdade mais mentirosa do planeta – conseguem criar a ideologia do vencedor e que o valor das coisas tem o perfume e a cor do dinheiro. Exacerbam o que um dia Marx chamou do fetichismo da mercadoria, criando um ambiente de negócio e de vale tudo na sociedade. Nessa atmosfera, assumem a liderança dos capitais com uma hegemonia indiscutível. Apenas é preciso salientar e reforçar a idéia de que a crise econômica de 2007 não foi apenas financeira, mas foi também produtiva. E foi produtiva porque o padrão industrial e tecnológico dessa fase do capitalismo terminou. Está em curso a transição para um novo padrão baseado nas tecnologias de comunicação e informação, com mudanças e metamorfoses possíveis na infraestrutura energética.
3) Só que essa passagem depende de vários aspectos, entre eles: (I) o apoio do Estado para o financiamento em larga escala às diversas indústrias que virão para preencher esse novo padrão; (II) a mudança na estrutura de poder da sociedade e, consequentemente, do Estado; (III) o resgate de Estados altamente endividados, de tal modo que se restabeleça a capacidade desses de financiar as mudanças estruturais do próprio capital, levando, inclusive, a uma nova hegemonia da esfera produtiva; (IV) o retorno de uma política macroeconômica global, envolvendo política industrial, política tecnológica, política salarial, política de rendas, política agrícola e agrária, política financeira, política fiscal, etc. e (V) a submissão das finanças à sociedade, através de uma alteração profunda no controle desses capitais, principalmente, no estabelecimento de novas regras e no retorno a uma regulação financeira adequada. (Vários itens terão que ser encaminhados nesse teor: novos requerimentos de capitais para as instituições financeiras, uma regulação prudencial para proteger o sistema de novas crises, um controle efetivo do sistema bancário, um controle de perto do shadow banking system, um controle atento e restritivo quando for necessário dos produtos financeiros a serem comercializados, uma definição mais rigorosa e mais exata de regras contábeis para as instituições financeiras, etc.). O que não se pode esquecer é que o desenvolvimento da democracia com a presença da sociedade é uma das condições que é companheira dessas transformações, porque permite a presença dos trabalhadores e outros grupos sociais nas negociações da economia, da política e do bem estar da sociedade.
4) Assim, cabe dar ênfase no seguinte: a crise econômica se desdobrou como uma flor maligna da crise financeira e foi lavrando as estruturas sociais. Foi chegando, foi batendo, foi atingindo inúmeras camadas sociais, com uma companheira socialmente perturbadora, a crise produtiva. E as duas se vestiram de crise política, desembocando num forte desemprego em muitos lugares do mundo. Veja-se a Espanha com 25% de desemprego geral (e, particularmente, com 45% entre os jovens). Só que a crise financeira desembocou, desde logo, numa crise fiscal, presente muito fortemente nos Estados Unidos e avassaladoramente cruel nos Estados europeus. Apenas a Alemanha parece um pouco mais confortável. Ou seja, a grande concorrência entre os capitais (seja financeira e/ou produtiva) atravessa agora a competição interestatal. O que significa duas coisas: em primeiro lugar, uma violenta competição entre os capitais nas finanças, na produção e nos serviços, dando prosseguindo a um vasto processo de concentração e centralização de capital; e, em segundo lugar, uma disputa intensa entre os Estados para recondicionar a sua participação na nova geopolítica mundial que apenas está se formando. Ou seja, a crise está e se encaminha para uma nova fase, onde os confrontos econômicos e políticos vão favorecer a um clima tenso e rascante na sociedade mundial. E a conjugação deles tem a potencialidade de elevar as discórdias a novos pontos de vibração inquietantes, até que uma solução – ou a terra – esteja à vista.
5) O contraponto geopolítico e geoeconômico dessa crise é certamente a China. Porque a China, com um Estado forte, tem conseguido reformar a sua economia, a sua sociedade e tem enfrentado os Estados Unidos de uma forma muito astuta, questionando-o em situações candentes: o dólar como moeda de reserva mundial, a política inflacionária americana, a gestão da recuperação econômica em detrimento de outros países (o que não exclui a própria contribuição chinesa). Enquanto fustiga por esses caminhos o seu adversário, a China faz algumas ações concretas na direção de uma nova política industrial, de um apoio muito forte e constante às suas inovações tecnológicas, de uma busca mais perseverante na renovação de sua matriz energética. Claro, essas atividades fazem parte da ação do dragão chinês na reformulação de sua política econômica, agora centrada também na reorganização econômica e produtiva do Sudeste Asiático em torno dela, fato que fortalece sua moeda, preparando-a, para num médio prazo, converte-la em moeda internacional. Pode-se observar igualmente que uma desaceleração recente na economia chinesa tem conseqüências estratégicas nos Estados Unidos, já que afeta e bloqueia o crescimento das exportações americanas. Dito de outra forma, a China está cada vez mais ativa no plano econômico, mas com escaladas geopolíticas progressivas nas suas relações com a África, com a América Latina, sem deixar de avançar uma política face à Europa, visando contrabalançar a longa influência americana, mas principalmente para absorver tecnologias decisivas para o seu desenvolvimento. O que quer dizer, a China, para o bem ou para mal, é um pólo dinâmico da nova mundialização.
6) Dessa forma, a gestação de um pólo oposto aos Estados Unidos começa a se formar, cada vez com mais força. O que significa apontar para o decréscimo americano, que ocorre por seus travamentos internos: finanças, governo de Obama em fase de recuperação para as eleições de 2012, incapacidade dos Estados Unidos de começar a transição de um padrão produtivo para outro. Tudo isso é contrabalançado por uma ascensão da China. O que significa que a passagem da geopolítica da unipolaridade para a bipolaridade está se fazendo. Cada vez é mais nítido que as forças que impelem a economia a subir vêm da China e aquelas que são decrescentes brotam dos Estados Unidos e da Europa (salvo a Alemanha). Mas, como já vimos defendendo aqui, essa nova polaridade nos parece que virá acompanhada de uma multipolaridade que comporá a nova figura. Isso porque, o desenvolvimento econômico dos emergentes trouxe pelo menos uma nova trindade que vai participar do jogo: Brasil, Índia e Rússia. Todos vão se inserir na nova divisão internacional do trabalho, naturalmente a partir das potencialidades de suas formações econômicas. O caso brasileiro é muito visível: estamos prontos para viajar na matriz energética com as conquistas do pré-sal, avançar no fornecimento de matérias primas e desenvolver uma exportação vigorosa nos produtos alimentares. E para que possamos crescer e ampliar o desenvolvimento da nossa sociedade será indispensável uma política industrial e uma política de ciência e tecnologia bem concebida, para que se esteja blindado economicamente, evitando cair na posição da Argentina no século XX. E com essa estratégia, o Brasil vai acumular poder para oscilar numa vinculação flexível frente à China e frente aos Estados Unidos. Parece, no olhar de agora, que nosso movimento é mais econômico com aquela e mais político com esse.
7) Encerrando essas observações, o analista encontrou uma forte crise econômica que se desdobra numa crise política, crescendo como serpente eriçada. A primeira, entrando numa fase aguda por causa da crise fiscal, e a segunda, desembocando num processo de formação de uma dualidade Estados Unidos e China. Nesse ponto, pode-se dizer que, por incrível que pareça, o assassinato de Bin Laden está permitindo que Barak Obama possa lançar uma nova política para o Oriente Médio. E constituir uma das bases da geopolítica vindoura, do face a face e do esconde-esconde com a China. Ou seja, finalmente a era Bush começa a ser ultrapassada. E, portanto, se os americanos se encontram em fase crítica na sua dinâmica econômica, no campo da política internacional, eles esboçam um passo para avançar na calçada muito delicada da competição entre os Estados. Dito de outra forma: a incerteza se mistura por toda parte, mas não se pode dizer que não haja movimento. Só que não sabemos se os movimentos destrutivos são maiores que os criativos. De qualquer forma, o mundo tem USA-China em disputa, como tem distintos emergentes em continuada ascensão. Para a tentativa de coordenação global está na arena o G-20, que, se não atenua os interesses conflitivos entre os países, permite, ao menos, algum fórum de negociação. Pois a metamorfose da geopolítica mundial, além de passar por concordâncias e divergências, deve também incluir na sua trajetória, à medida das necessidades e da evolução da configuração geopolítica, a alteração de antigas e a constituição de novas instituições com a finalidade de uma regulação das múltiplas facetas de uma nova etapa da mundialização. Será a tentativa de regrar o novo se desembaraçando do velho. O problema é que para chegar à aurora é preciso passar pelos perigos nada românticos do crepúsculo de um padrão econômico e político. E a questão é que ainda é noite, o neoliberalismo tenta descobrir forças para um último suspiro, a última bebida na madrugada. Mesmo assim, o panorama é claro: o capitalismo não é mais aquele, mas ainda não é outro.
Será outro?
Será outro?
Um comentário:
Nestas bases,não cabe dizer que o neoliberalismo foi a pior praga que o mundo já conheceu?
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