quinta-feira, julho 23, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
23 de julho de 2009

CONTRA OBAMA
Por Enéas de Souza

O que está por trás da estratégia de Geithner?

Thimoty Geithner, o secretário do Tesouro americano, é uma espécie de trapezista, anda na corda bamba por causa da crise, mas seu equilíbrio depende do equilíbrio de uma economia definida como instável. Pois este é o grande desafio de Geithner: equilibrar o que, por natureza, é desequilibrado. Tem ele a esperteza americana, que se baseia na sua absoluta confiança da capacidade dos Estados Unidos em solucionar o vendaval. E ao mesmo tempo, tem o sonho do gabinete econômico: usar o tempo para recomeçar o andamento da economia. Sua estratégia é simples. Há poucos dias em Paris declarou que ela se definia por tentar sustentar a demanda, por buscar reparar o sistema financeiro e por procurar restabelecer o crescimento. Olhe-se bem, verifique-se a sua estratégia, e ela parece efetivamente sensata. Mas, o que importa é ver o que está por traz destas palavras, quais são as intenções concretas do secretário do Tesouro americano. Ou seja, a pergunta vem fácil e natural: qual o seu jogo? E dentro do jogo: em que direção ele está jogando? A favor de quem?

Antes, de mais nada, para Geithner, a crise foi causada por uma perversão da inovação financeira. No seu conceito, foi na articulação entre o sistema financeiro e o sistema produtivo que ocorreu o ponto de resvalo, onde se construiu a rampa do desabamento do sistema financeiro e da economia americana. Ora, Geithner está apenas considerando um dos aspectos da crise. Ele nos diz também que é preciso estabilizar o sistema monetário e financeiro americano e internacional. Sim, mas a crise é muito mais ampla e muito mais profunda do que essa análise parcial. O sistema financeiro é, por natureza, instável, a precificação dos ativos se dá todo o dia no mercado; portanto, este sistema financeiro é instantâneo, altamente oscilante, volátil, errático. E o que é pior: ele tem essa face volúvel tanto para o setor financeiro quanto para o produtivo. E inclui nesse panorama, a repercussão dramática sobre as nações desde os Estados Unidos até o Brasil, passando pelo resto do mundo. Todavia, Geithner nos diz que é preciso estabilizar o sistema monetário e financeiro americano e internacional. O que traz outra idéia explícita: manter o dólar como a moeda reserva de valor. Ora, Geithner chega assim ao fundo da questão. Evitando as inovações perversas, estabilizando o sistema financeiro, agimos contra a explosão do dólar. E tudo está resolvido. Mas, a pergunta é: como é que ele vai estabilizar este sistema?

A questão que Geithner não coloca

A reforma é o ponto central de tudo. E a pergunta mais difícil do momento é: pode-se reformar este sistema financeiro? Porque as questões continuam as mesmas: é preciso uma regulação; é indispensável uma unidade nas regras e na supervisão; é decisivo definir o nível de alavancagem; é importante centrar esforços no controle da multiplicação dos produtos bancários; é substancial erradicar ou, no mínimo, reformular as agências de ratings; é radical desembaraçar o crédito, como definir a sua amplitude, seja para o sistema financeiro, seja para o sistema produtivo e seja para o consumidor, etc. Mas, a questão que Geithner não coloca é a seguinte: este sistema financeiro do jeito que está é funcional ao desenvolvimento do sistema capitalista?

A montanha mágica era uma montanha russa desregulada

Portanto, ao fazermos esta pergunta, estamos introduzindo uma questão que navega na absoluta profundidade do jogo do capital. O capital tem, no momento, um entrave ao seu desenvolvimento, que foi dado pelo alto grau de exacerbação da órbita financeira, que não só fez explodir o seu próprio desenvolvimento como o da área da produção, afetando o desenvolvimento do sistema capitalista. Por quê? Porque, as finanças, além dos seus mercados, financeirizaram totalmente a economia. Em primeiro lugar, a atividade produtiva, via a governança corporativa, o que significou que a produção foi submetida ao princípio de prioridade da valorização das ações, tornando esta esfera inoculada no mais profundo de sua operacionalidade. Em segundo lugar, porque as próprias remunerações dos assalariados foram financeirizadas. De um lado, os salários foram acrescidos de resultados monetários, oriundos da poupança dos trabalhadores aplicadas no mercado de ativos financeiros, causando o famoso “efeito riqueza”. E de outro lado, as poupanças destinadas às aposentadorias, colocadas em fundos de pensões, provocavam “investimentos” destes, sobretudo no mercado acionário e nos hedge funds. Todo esse processo transformou o sistema econômico em altamente movediço. Pois a economia passou a viver a emoção da instabilidade cotidiana, sob a música vigente da desregulamentação das finanças. Dito de outro modo: tivemos a poesia da auto-regulação das instituições financeiras. Ou seja, uma montanha russa cada dia mais arriscada, destravada, desregulada institucionalmente, com os bancos de investimentos, com os hedges funds e com os private equities à solta e que permitiram e desenvolveram uma chuva de “invenções” de títulos, que securitizava tudo o que viesse pela frente. Deu no que deu: uma inflação desesperada de ativos tóxicos, expressos, popularmente pelo rei de todos eles, os célebres sub-primes, que fecharam definitivamente as portas da mágica do sistema financeiro neoliberal.

Olha só o que fez Lampedusa como conselheiro das finanças!

E o curioso é que Geithner sugere que houve uma perversão nas inovações nos produtos financeiros: as hipotecas imobiliárias. Esqueceu - esqueceu sim - a desregulamentação, tanto que o seu “Finantial Regulatory Reform”, apresentado ao Congresso, arma o seu esquema “regulatório” em cima de um Conselho (o “Finantial Services Oversight Council”) e do FED. No Conselho participam todas as instituições reguladoras setoriais, tipo SEC (“Securities Exchange Comission”), que já existiam, sob a presidência do Tesouro. E o FED tem uma função acrescida, que dá uma maior amplitude de ação: atuar em qualquer momento e sobre qualquer instituição que cause ameaça de risco sistêmico. O que significa dizer que o nervo do sistema capitalista dominada pelas finanças desregulamentadas não seria, de fato, mexido fundamentalmente. Seria apenas aperfeiçoado com um conselho das mesmas agências dominadas pelo setor financeiro, dando não unidade, mas, quem sabe, coordenação. E haveria o fortalecimento do FED para atuar com rapidez ao se anunciar uma possível crise. Esta falsa ou precária regulação seria, em verdade, uma forma das finanças de encontrar uma maior segurança nas suas atuações. Assim, a estratégia do Geithner é a estratégia Lampedusa: mudar para que tudo fique como está.

Contra o projeto do Obama

Geithner, no concreto, está trabalhando contra o projeto de Obama, um projeto de longo prazo, cuja finalidade é a transformação do sistema capitalista. No confronto das posturas, ambos contam com o tempo para ajudá-los. Para Geithner, é preciso salvar a demanda para dar tempo de “reparar o sistema financeiro”, enquanto que, para Obama, é preciso dar tempo para que o sistema financeiro não atrapalhe o projeto da economia de longo prazo. Projeto que, já falei em outras colunas, abrange a mudança energética, a transformação da infra-estrutura econômica e a introdução de novas tecnologias. Por essa necessidade do presidente, Geithner seria útil impedir que as finanças tumultuem a mudança produtiva. Obama, é mais do que óbvio, não poderia ir contra a atual força política da área financeira. Esta é a razão porque visualiza uma pausa na tensão entre as duas órbitas da economia, evitando o conflito agora e, jogando-o para mais adiante. Só que, noutros termos, qual será o novo passo do sistema capitalista? Embora Geithner e Obama joguem em defesa do sistema, um olha para a restauração e a reparação, com pequenas substituições do que existiu, o finance led growth; o outro, visa à reformulação do capital, numa visão de uma outra funcionalidade das finanças, adequadas à nova etapa do capital, um growth led finance. É nesta oposição de concepções que se arma o impasse ou o futuro da sociedade capitalista. O impasse, se ocorrer, será entre os componentes do sistema. Isto quer dizer que não se vislumbra de nenhum modo, até agora, uma superação do capitalismo. O sistema está com as contradições à flor da pele, com o nervo exposto, mas por parte dos anti-capitalistas não existe nem teoria, nem prática que ameace a sua existência. De fato, só estamos numa tempestade, o navio da humanidade tem que chegar a um porto, e este porto está à mão. É, ainda, o amado ou detratado capitalismo. A diferença das soluções de Geithner e de Obama se revela numa opção: ou a liderança financeira, ou a funcionalidade das finanças à produção.

Os dramas do príncipe das finanças

Geithner trabalha numa articulação não apenas institucional, mas também política, para que sua estratégia triunfe tanto no nível dos Estados Unidos como no nível internacional. Prova disso é a sua movimentação na Ásia e na Europa, para que se alcance no G-20 alguns pontos decisivos. Geithner sabe que, afora a Inglaterra, altamente comprometida com os planos de Wall Street, é preciso tentar uma dupla ação internacional. Fazer o mundo crescer e conseguir uma reforma do sistema financeiro. A chave está nesse segundo ponto. É preciso então que no nível internacional haja um mínimo de controle das finanças, seja na supervisão, seja na capacitação financeira. De qualquer modo, trata-se de uma área muito complexa, porque a restauração das finanças vai encontrar um problema fundamental para o resto do mundo: como organizar e equilibrar a relação “esfera financeira e esfera produtiva”. Tudo está para ser discutido, uma vez que houve duas superacumulações de capital, a das finanças e a da produção. Logo, é preciso desfazer-se dos excessos dessas superacumulações. E isto muda muita coisa, inclusive internacionalmente. Pois, mesmo que as finanças continuem com o seu finance led growth, a reparação vai envolver, apesar de todo o conservadorismo, uma nova divisão internacional do trabalho. E é por isso que a restauração tem um caminho muito indefinido. Os níveis nos quais as finanças vão ter que negociar são patamares muito amplos e os desejos de concessões muito estreitos. A reorganização não terá como palco apenas os Estados Unidos, mas também o resto do mundo, e vai envolver, sobretudo, depois do rearranjo e reconcerto das finanças, uma forte reformulação dos papéis internacionais das nações. E um dos calcanhares vulneráveis dos americanos é, sem dúvida, o seu gasto fiscal, já extremamente elevado, e que, se aumentar em demasia, vai afetar o dólar. E a China já está avisando, denunciando, jogando forte, para que os americanos não tomem soluções que prejudiquem o valor das reservas chinesas. E ela, ao mesmo tempo, não sendo o novo motor do mundo, já está avançando para uma nova posição no cenário mundial. Ou seja, quanto mais se esmiúça a reparação do sistema financeiro, mais a gente enxerga, que o horizonte está inundado de inúmeros problemas, de inúmeras nuvens cinzentas e negras: regulação, reposicionamento do Estado, articulação finanças-produção, crescimento econômico, nova ordem econômica do mundo, etc. Como é que as finanças e, em seu nome e se tiver tempo, o príncipe da liquidez e da estabilidade do sistema financeiro, vão resolver tudo isso? A formiga que Geithner tenta achar se encontra no meio do formigueiro.

As cartas de Obama

Obama é um político perspicaz e arguto, no soft talk vai tentando organizar um apoio legislativo e um apoio administrativo, um apoio popular e um apoio internacional. Trabalha primeiramente por construir a imagem de um político definido. Um político que luta pela paz, pela invenção das saídas e pelo futuro dos Estados Unidos através de uma organização bem fundada das duas esferas do capital, a financeira e produtiva. Está procurando dar ao Estado uma função na política interna e externa, desde a saúde, passando por uma reforma na organização política e militar do mundo, até se aproximar de uma proposta e uma definição de uma nova civilização. Obama é um ambicioso good guy na terra de bad boys. Mas, um pouco como Dom Quixote, levanta a bandeira de um idealismo, saindo para enfrentar os moinhos de vento. Onde estão as suas armas nesse momento? Começa com um projeto de longo prazo para a economia, no qual as finanças devem ser funcionais ao setor produtivo. Isto significa dizer que, do ponto de vista econômico, está pensando que as lutas e as encruzilhadas do curto prazo são na verdade um pantanal, um furacão, um labirinto e uma prisão. Sua única saída para romper os entulhos deste tempo breve, é deixar que as forças em jogo se combatam e se desgastem o mais que puderem. Ele só pensa entrar no jogo para definir um limite. Para ele, jogar não é jogar o jogo econômico, mas o jogo político, para criar um ambiente e uma atmosfera progressiva que vá alterando a configuração do possível. Sua ação tem como objetivo deslocar-se constantemente para a política, sobretudo para a grande política, e nela estabelecer princípios políticos e econômicos que joguem a bola para o futuro, para o longo prazo. Pois só de lá, deste ponto imaginário criado pela política e por uma nova ideologia, a sociedade pode transformar-se. Trata-se de uma idéia frágil, uma delicada gota de porvir (e por isso vai perder pontos nas sondagens), mas que, em todo caso, se aposta for correta, pode mudar o mundo. É nisso que ele se contrapõe a Geithner, uma idéia contra outra idéia; nele, Obama, uma idéia diferente de sociedade. (A começar pela questão da saúde, projeto que está no Conresso)). E ela é tudo contra a qual o seu secretário do Tesouro luta. E a vida é assim; co-habitam no mesmo governo, duas forças contraditórias. Um fala em nome do poder econômico, outro tenta organizar uma nova economia e uma nova política. Não nos esqueçamos: o que está em jogo é, de fato, uma nova etapa do capitalismo.

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