quarta-feira, janeiro 11, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

O MAR REVOLTO
DA TEORIA
E DA REALIDADE

Enéas de Souza
12/02/2012


Não quero transformar esta coluna em arena de discussão teórica. Neste último ano sempre emergiram pontos que gostaria de abordar e de fazer uma incursão no nível das idéias. Volta e meia, faço umas aventuras; e, tenho dado desta forma uma escapada da análise conjuntural e esticado umas braçadas na beira desta praia. Mas, foram ficando alguns temas de discussão, que mergulham na travessia explicativa das análises e da conjuntura. Nos últimos textos que escrevi exalaram perguntas amplas. Vou dizer alguma coisa sobre uma e outra questão, conversar um pouco sobre um e outro tema, assim como os músicos dialogam numa reunião deles. Talvez, melhor seria dizer: estamos afinando os instrumentos para futuros comentários.

O SONO EXCESSIVO DOS HOMENS

Meu amigo Paulo Timm já me colocou várias vezes a questão do capitalismo e da teoria do Estado. E acho que ele tem razão. É preciso tentar ver que a gente deve olhar maduramente para estes teores. Timm indaga das razões porque muitos ficam apegados às ideias de Marx do século XIX. Talvez a gente tenha que deslocar o caminho da pergunta. O importante é perceber que o mundo se movimenta e que a teoria também. O teórico em economia, olhando com atenção, é um caçador que colhe a trajetória da caça. O mundo não segue as ideias; são as ideias que seguem o mundo. E o que queremos entender é o que está aí e o que anda por aí; que se move e que avança. Acho que temos que entender que o capitalismo é uma estrutura dinâmica e não estática. Trata-se de uma estrutura onde os seus elementos se modificam alterando as suas relações. Mas sempre continua como uma estrutura, só que é uma estrutura na qual o capitalismo põe um vestido novo.

Mas, o homem tem um sono muitas vezes excessivo. E este sono o leva a deixar de lado o que está acontecendo. Dorme. Assim é mais fácil achar que Marx tem razão e pronto. Ponto final. Nada mais equivocado, porém. Porque a estrutura que deu origem a “O Capital” já se transformou. Seguramente, carrega no seu DNA aquela estrutura, mas o mundo agora tem cara diferente, cospe fogo de canhões de outra potência.

A ESTRUTURA É UM NAVIO QUE NÃO PÁRA NO CAIS

Se a gente ler o livro III de “O Capital” de Marx, editado por Engels, a gente percebe o método dele: acompanhamento detalhado dos fatos empíricos; e ao mesmo tempo, uma exposição de dados e de acontecimentos que se organiza a partir de uma teoria que vai se fazendo na sequência da lógica do capital - que é a teoria desta estrutura dinâmica. Daí que o fundamental é seguir esta lógica que se altera e se transforma à medida que a história se modifica. As categorias desta lógica têm origem na própria realidade, mas são desenvolvidas conceitual e articuladamente, numa unidade e uma ordenação própria da teoria. É esta que dá sentido ao que está acontecendo.

A DANÇA DOS DIÁLOGOS POSSÍVEIS E IMPOSSÍVEIS

E nenhuma teoria se faz sem a conversa cruzada. O diálogo com autores economistas, marxistas e não marxistas, como Keynes, Schumpeter, Minsky, ou mesmo contemporâneos como Krugmann, Stieglitz, Borio, Aglietta, Orléan, Chesnais, Harvey, Carlota Perez, etc. valem a pena. Ouvir um pouco de política vinda de Agamben, Rancière, Hannah Arendt, ou mesmo Carl Schmidtt, e tantos outros de outras áreas como Eric Hobsbawn, como Guy Debord, como Claude Lefort, etc. etc., não faz mal a ninguém. E a maioria destes autores, acredite o leitor, são descartados. E isso sem considerar os “diálogos impossíveis” com Max Weber, Durkheim, Freud e Lacan por exemplo. E sempre nos perguntamos: que tal escutar a literatura, ler o cinema e ver a filosofia contemporânea? Nunca esquecer que Marx achava que Balzac tinha dado uma contribuição fundamental para a compreensão do capitalismo. Pensá-lo, é, portanto, pensá-lo junto com.

QUAL É O RITMO QUE TOCA O CAPITAL?

Assim, os temas do capitalismo financeiro e o avanço do capital pelas órbitas financeiras e produtivas são fundamentais. Também, a Maria da Conceição já tinha alertado que a dinâmica do capital passa pelas áreas do comércio e dos serviços. Aonde tiver uma trilha, uma trama, uma possibilidade (vejam a indústria da comunicação, da imprensa à TV) o capital está presente, funcionando como verdadeira caixa de bondade ou de maldades do mundo contemporâneo. Constrói e avança, mas destrói e inunda. E a sociedade liderada por ele e que tenta organizar a vida econômica, política, social e cultural, merece a nossa consideração. Porque vivemos a civilização (e a barbárie) do referido capital. E para criticá-la com rigor cabe saber como este personagem se movimenta. Daí neste momento a questão imprescindível do Estado. Como este se constitui, como se organiza, como se desintegra, como se une e se reúne, como é múltiplo e como é unitário, como é força e como é .... etc.

De qualquer forma, me parece que é preciso fazer um duplo movimento: ser o mais exaustivo possível na descrição do que está acontecendo e tentar uma interpretação que atenda a lógica do capital no seu movimento. E nesta lógica é obvio ver como os grupos sociais a encaram. No caso, o velho Marx tinha uma postura vigorosa: tratar das relações sociais de produção em face do desenvolvimento das forças produtivas. Em resumo: observar, tanto quanto puder o olho e a inteligência, como os homens brigam no dia a dia nas suas múltiplas atividades; e ver como isso rebate sobre as transformações das bases tecnológicas da história de agora. Pois é isso que está em questão: como o capitalismo vai se desdobrar em suas dimensões econômicas, políticas, sociais e ideológicas nesta necessidade de ir adiante? E ele só vai adiante se revolucionar a sua indispensável tecnologia. Quem vai ganhar, quem vai perder, como a sociedade vai se conduzir, como o Estado vai liderar - sim, está aí o ritmo do capital. Um ritmo de jazz e de tango.

CAPITALISMO DE ESTADO NO MICROSCÓPIO DA POLÍTICA

Tenho tentado mostrar que na fase atual a grande questão é como o capitalismo vai avançar. E o que tenho tentado dizer é que o impasse deste capitalismo gerido pelas finanças, dado o bloqueio do avanço das forças produtivas, vai sair do domínio do Estado. Pois, pode-se constar que o Estado está em pauta por toda a parte. Mais para um lado mais para outro. As finanças procurando manter o Estado subordinado a elas, a produção tentando descobrir um jeito de incliná-lo a seu destino. E as classes subalternas, com suas manifestações diversas, tem conseguido alcançar muito pouco da mudança. Contudo se manifestam, seja com as greves da Europa, seja com o movimento “Occupy Wall Street, seja com “a primavera árabe”, etc. Mas, nada é como Toni Negri pensava; que todo e qualquer movimento já é uma ameaça ao capitalismo.

Minha amiga Tania Faillace me escreveu dizendo que estou previlegiando o capitalismo de Estado. Estou sim. Mas, vamos ver as nuances. Há uma retomada do Estado em todo o mundo. Porque é a única forma de combater as finanças, que desregulamentou tudo, e deixou as funções sociais (saúde, educação, previdência e cultura) como fronteira de expansão do capital, diminuindo fortemente os investimentos e a expansão do emprego. O que teve como consequência, desde 2007/2008, uma paralisia da expansão da economia. O que coloca na frente do palco a luta aberta de todos os grupos sociais. Na minha visão, o único grupo que pode reunir tudo neste avanço é o capital produtivo. Só que ele tem que conquistar o Estado. Mas, o desenvolvimento geoeconômico não se dá sem o espaço geopolítico. E neste sentido, já existe um setor que tem o Estado no seu horizonte, que é o capital produtivo da China. Porque nela o Estado por visão política desenvolve a produção como um passo prioritário. E subordina, no avanço geopolítico, as finanças, que estão submetidas à estratégia do Estado.

É natural, nos dias de hoje, que se pense em apoiar o Estado. E pergunta-se: o Estado só sobrevive como capitalismo de Estado? Não, claro que não. O que estou dizendo é que o capitalismo de Estado chinês é o ponto do jogo econômico onde a unidade do Estado foi mais longe. E, como fruto disso, conseguiu dominar pelo menos, por enquanto, as finanças, colocando-a no rastro do setor produtivo. Mais do que isso: como instrumento do projeto estratégico chinês. Na China, a política está definindo a economia, e, por essa razão, é o polo mais ativo da economia mundial na realidade que corre.

O que não quer dizer que eu defenda o capitalismo de Estado, apenas estou salientando que na necessidade do capitalismo avançar partindo do Estado, o capitalismo de Estado chinês saiu na frente. E naturalmente, Tanya, numa dimensão, e meu amigo Fernando Saraiva, noutra, colocam a questão: quem mais atende ao bem comum? Certamente, não é o capitalismo de Estado. O mais importante no momento, a meu ver, com ou sem capitalismo de Estado, é a democracia, porque é ela que sacode o Estado quando ele é autoritário e pode afastá-lo do totalitarismo.

E o capitalismo de Estado pode ser uma tentação muito forte neste momento. Mas, contém um ponto fraco: o Estado sem o contrapeso da sociedade torna-se um poder abusivo, quem sabe incontrolável. A tentação do autoritarismo vai ser forte no próximo passo, pode inclusive vir junto com toda essa tecnologia de comunicação e informação. Basta só ver a discussão do futuro da internet, onde alguns governos, o poder econômico e as forças militares, etc. projetam em açambarcar e controlar o setor. Portanto, é um tema agudo.

A SINOPSE DA ÓPERA DO CAPITALISMO ATUAL

Passando decisivamente da teoria e das especulações à realidade, o que tentei colocar se encaminha na seguinte direção:

1) As finanças só serão derrotadas ou atuarão para a sociedade somente se o Estado for transformado numa entidade que beneficie e apoie a produção, o investimento e o emprego;

2) o capitalismo de Estado chinês está impondo à dinâmica geopolítica e geoconômica mundial a sua marca, inclusive por favorecer à produção e não necessariamente às finanças, em função de uma estratégia nacional bem concertada. Para o bem ou para o mal, a China é um exemplo;

3) para fazer frente ao capitalismo chinês só um fortalecimento da área produtiva dos demais países, principalmente dos Estados Unidos. Mas, é preciso transformar neles o papel do Estado, enfatizando o investimento e o emprego, e adequando o financeiro à produção;

4) toda a dinâmica econômica e política do mundo vai girar, então, em torno desse capitalismo de Estado e do papel do Estado nos demais países. E da passagem ou não da liderança econômica para o setor produtivo. E isto vai levar tempo. Precisa, no mínimo, reorganizar a estrutura da produção ao redor de um novo padrão de acumulação centrado nas tecnologias de comunicação e informação, nos novos materiais, na biotecnologia, etc;

5) não se pode descartar uma formidável resistência das finanças inclinando-se para um engessamento da economia e forçando uma gestão de política econômica obscurantistamente recessiva dos Estados Unidos e da Europa. E tendo ainda como meta atingir - e quem sabe alcançando - à China e os emergentes, usando inclusive elementos bélicos, para desorganizar por tempo indeterminado o sistema com o objetivo de triunfo do financeiro;

6) a questão política central é o tema da democracia, entendida não apenas como eleições livres, mas como a construção do bem comum, onde entram os temas da produção, da distribuição da renda, das políticas sociais, da retomada da cultura como uma forma de defender uma mudança, tão revolucionário quanto possível, do padrão de civilização do capitalismo. Este padrão atual, de corte financeiro, além de todos os problemas econômicos, políticos e sociais que estamos falando, ele é fulminantemente anticultural, antiartístico, antipensamento e antiético. Engana a população com um falso hedonismo e com os malabarismos do cálculo.

Assim, é preciso pensar o capitalismo para frente, observando que há dois adversários fundamentais para a sociedade: primeiro: a vitória indefinida das finanças; segundo, as formas não democráticas de gestão do Estado. Cabe, então, reativar fundamentalmente a democracia como ponto de resistência a natural selvageria do sistema. E claro, a democracia não é propriedade de ninguém, mas sim construção da maioria - e extensiva a todos. E é, irreversivelmente, uma conquista diária.





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