CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
CADÊ A EUROPA
OU
A CANÇÃO DO TRIPLO A
Enéas de Souza
19/01/2012
1) A canção do triplo A é uma canção de ninar das finanças. Se uma Agência de Ratings canta a música, as entidades financeiras e os Estados adormecem, e viajam no mundo econômico na leveza da lucratividade do capital. Quando a melodia escasseia, as pausas e o silêncio do som acontecem. Meu Deus, o mundo vem abaixo. E a sociedade também.
2) As finanças são com as aranhas e soltam uma teia sobre os humanos e suas instituições. Primeiro ponto: desregulamentam a economia e retiram o Estado de possíveis e quaisquer controles. E elas chamam Estado mínimo a essa desregulamentação como chamam as negociações diárias dos mercados – que tendem muitas vezes à anarquia – de mercado livre, de “free market”. (Não há mercado que não sofra indefinidamente de desgaste e deformação, nem que seja isento de violência e de caos. Olhem a história de cada mercado, de cada produto. O de automóveis, por exemplo. Lembram-se das histórias do Ford? Pensem sobre o petróleo. Foi sempre um mercado puro?).
3) Pois não é que as finanças levaram o tombo avassalador de 2007/08 e até agora não tomaram jeito. Caíram, só que não foram derrotadas. E inventaram, via Estado, a sua salvação: dos Estados Unidos à Europa. Jogaram o filho que era delas – os ativos podres – para a entidade estatal: toma que o filho é teu. Conclusão: o Estado transformou e ampliou e fez – para gáudio e júbilo das finanças, e tristeza e infelicidade dos trabalhadores e da população – de uma crise financeira, uma crise fiscal também. E as finanças, que tinham armado o cassino especulativo com sucesso, quando deu a pane, correram para o Estado, clamando para que fosse protagonista do que os americanos chamam de “bailout”: a salvação das instituições financeiras. Mas, depois, Madalenas arrependidas, o que fizeram as finanças? Usaram os lobbies para impedir, nos Legislativos, qualquer busca de regulação do mercado financeiro e usaram as Agências de Ratings para chantagear os Estados e os títulos soberanos deles. Mas, paralelamente, atacaram igualmente os títulos privados de capitais mais fracos. Ou seja, duplo movimento: paralisar o Estado para impedir transformações sociais, e prosseguir, à custa do Estado e dos seus concorrentes, o processo de concentração e centralização de capital.
4) As finanças tem um projeto de mundo. E nele está uma visão de civilização, como está também uma visão de política econômica. Essa se resume nas seguintes etapas: (a) na fase de ascensão do ciclo, o que interessa é desregulamentação e Estado mínimo; (b) na fase do estouro da boiada, salvação do setor financeiro com endividamento do Estado (vejam só: com a parte saudável da própria finanças) instalando uma dupla crise: financeira e fiscal. É possível o desdobramento de uma terceira crise, a crise monetária dos países ou até, in extremis, da moeda mundial; (c) e na fase do descenso cíclico, as finanças são ditatoriais: controle da ação do Estado, controle de gastos, suspensão de investimento e de consumo, cortes de salários e de funcionários, de saúde e previdência – de aposentadorias, evidentemente – de educação e cultura. Nesse projeto itinerário, as finanças vão ao extremo, como nos Estados Unidos, onde chegam a paralisar o Estado com controle de gastos e teto do endividamento. Ou vão ao extremo, como na proposta da Alemanha: punição para quem avançar sobre o teto do déficit e se endividar mais do que um limite, ambos propostos como um percentual do PIB. E, se possível, inscritos na Constituição.
5) Obviamente, que tanta lucidez dá escuridão. Pena que não possamos usar a beleza da palavra inglesa, que Shakespeare usa iluminadamente, “darkness”. O resultado é um efeito dramático sobre o Estado, sobre a esfera produtiva, sobre a economia, sobre a sociedade. Logo, dá-se o efeito recessivo. E por que buscam elas a recessão? Porque as finanças só conseguem multiplicar o seu cabedal com estabilidade. E essa é alcançada através de um endividamento aceitável e de um gasto comprimido do Estado, que, ficando em ordem, permite uma economia sem regulação. Mas, as perguntas fatais vêm agora: e a produção durante esse tempo foi salva? Começou-se a fazer investimento e a dar empregos? A sociedade avançou, depois da salvação dos bancos, para novos patamares de bem estar? E os bancos podres foram eliminados? E o Bem Comum foi privilegiado todo esse tempo?
O povo pode até ser ingênuo e pode até ser enganado, mas não é burro.
6) É aí que entra a canção de ninar. Para fingir seriedade –quando é arma de chantagem – as finanças enjambraram um instrumento maravilhoso, as Agências de Ratings. Elas têm uma escala de notas que servem para classificar empresas, instituições financeiras e os Estados. E atenção: essas notas servem para balizar aplicações de entidades privadas e públicas. De um lado, podem permitir que no futuro se suspendam essas aplicações; ou que os banqueiros e os chamados “investidores” – na verdade, especuladores – aumentem as taxas de juros em seu benefício. E de outro lado, no campo macro, com repercussões em toda a economia, podem assegurar que aumentem desbragadamente o interdito, a proibição de empréstimos aos Estados absurdamente endividados (endividados, é claro, com a ajuda deles). E dependendo do tamanho do país, da potencialidade de sua economia, da capacidade de segurança dos pagamentos dessa nação, a ameaça é grave. E vejam, um escândalo, basta uma rebaixa da nota de uma agência apenas. Estamos no samba e nas finanças de uma nota só.
7) Qual é a estratégia das finanças? É impor, no mínimo, ao que eu chamo de “eixo econômico americano” da mundialização, uma ordem. Uma ordem que diz aos Estados Unidos: controle do orçamento, dos gastos e da dívida. No subtexto dizem: dêem dinheiro para nós via FED, que nós damos crédito para a sociedade. O que é uma mentira. Eles voltam a especular ou tentam se capitalizar. Na realidade, impõem uma contração ao resto dos agentes econômicos com a picante observação: não perturbem o saneamento do Estado e da economia (sic!). E para a Europa uma ordem semelhante, com uma ameaça nítida: vamos acabar com vocês porque vocês estão em nossas mãos. Façam a recessão ou nós acabamos com qualquer veleidade de Europa, seja ela a que for: seja a dos capitais, seja a da população.
8) Vamos olhar ainda mais de perto para a Europa. Primeiro: a Europa não tem um Estado, tem um Banco Central e um Fundo Financeiro. Segundo: o alvo das finanças é o mesmo da Alemanha. Controle de gastos, da dívida, nada de investimentos e preocupação com o emprego. Terceiro: constata-se que as finanças jogam no campo financeiro e a Alemanha atua no campo político. Quarto: desqualificar a França como interlocutora econômica e política. A perda do triplo A faz isso, anula a liderança política dos franceses. Logo, vitória para Alemanha. Quinto: percebe-se o pacto subterrâneo – a ação conjugada das finanças e da Alemanha – sobre o resto: as finanças rebaixando as notas de vários países, ameaçando rebaixar a nota do Fundo Financeiro Europeu e criando ameaça para os países e para os bancos desses países. E a Alemanha insistindo permanentemente numa política econômica de austeridade, batalhando para não quebrar e para ampliar as regras europeias de restrição, sendo uma delas a que impede que o Banco Central faça empréstimos diretos aos países. Vejam, são regras que favorecem aos bancos, que simplesmente tomam empréstimos a 1% do Banco Central europeu e emprestam a 3, 4, 5, 6, 20% à França, Espanha, Itália, Grécia, etc. É ou não é um esquema que favorece os bancos? São regras que quebram qualquer mobilidade ativa dos países e dos Estados.
9) Desçamos um pouco mais para o efeito do rebaixamento das notas, que funciona como um efeito cascata, uma cachoeira em cima dos países e de suas entidades econômicas e da sociedade como um todo. Pego, como exemplo, a França. O rebaixamento da sua nota afeta diretamente bancos, companhias públicas, companhias territoriais, companhias aéreas, etc., etc. O que se pode perceber é que esse ataque conjugado economicamente das finanças (via, sobretudo, Agência de Ratings) e político, via Alemanha, leva o jogo para um triunfo político e econômico da Alemanha e uma derrota monumental da França (e de Sarkozy, em particular). E, ao mesmo tempo, conduz a economia europeia para uma recessão prolongada.
10) Quais os efeitos geopolíticos dessa pausa que não refresca do ataque das finanças? O efeito global dos ataques são enquadrar o Estado americano e europeu aos desígnios financeiros, mantendo a desregulamentação; criar estabilidade para novas expansões especulativas; e desequilibrar o mercado em favor das finanças americanas, obviamente as mais fortes. Nos Estados Unidos, uma busca de ganho delas pela concentração e centralização de capital. Talvez por pressão social, e se Obama ganhar as eleições, ocorra uma busca de retomada produtiva via algum programa modesto de estímulo fiscal. Geopoliticamente, pode-se prever que os americanos vão incentivar a indústria bélica em função de sua nova política de estratégia militar e de cerco à China e ao Irã. Claro, decorrerá daí, dependendo da extensão dos conflitos, um avanço na indústria bélica, principalmente na tecnologia aeronáutica. Não se pode desconsiderar que essa estratégia militar vem condicionada por uma tentativa de bloquear a China militar e economicamente, principalmente pelo lado comercial. Daí que o cerco vai se expressar também no campo marítimo, dada a vantagem americana em porta-aviões. O conflito trará um capítulo centrado em combates localizados, com predominância estratégica da aeronáutica e da marinha.
11) Na Europa, a consequência é o apequenamento do continente, o triunfo da política econômica de austeridade da Alemanha, a decadência da França, a diminuição da finanças europeias (salvo, talvez, aquelas da Alemanha), uma queda da produção e da competição da Europa no mercado mundial. Conclusão: recessão comprida, com inclinação política para a direita (talvez escape a França, onde teríamos um governo socialista frágil). Na mexida geral, assusta os reposicionamentos claros da Grécia, de Portugal, da Espanha e da Itália e, inclusive, da França, no contexto europeu e mundial. O que vemos são políticas econômicas que não trarão nem investimentos, nem renovações tecnológicas e muito menos empregos. A boa notícia será a tentativa de reencontrar dentro da ainda hegemonia das finanças americanas (do eixo Wall Street–City, melhor dito), um novo lugar (e hierarquicamente inferior) para os setores financeiros e produtivos da Europa. E tudo isso, numa realidade que se torna voluptuosa, porque o reposicionamento começa pela disputa surda e aberta entre os Estados Unidos e a China nas múltiplas lideranças do mundo (industrial, agrícola, tecnológico, militar, cultural, social, ideológico, etc.). O movimento geral da dinâmica do capital financeiro desloca os atores dos seus lugares no jogo de cena mundial, enquanto ouve-se ao fundo a canção de ninar do triplo A.
CONTO FUTURISTA ATUAL
Estão no Juízo Final, Sarkozy, Angela Merkel e banqueiros europeus e americanos. Deus pergunta: “Cadê a Europa?” Ouve-se a canção de ninar do triplo A. E escuta-se, de modo sepulcral, um silêncio prolongado. Deus pergunta de novo: “Cadê a Europa?”. E aí, a turma da política e da economia, envergonhados, respondem em coro sussurrando: “As finanças comeram!”.
(A cortina do palco, ao contrário da alta velocidade das comunicações do sistema financeiro, fecha-se num ritmo lento e continuado.)
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