A CARA VISÍVEL
DO ANO NOVO
Enéas de Souza
05 01 2012
DO ANO NOVO
Enéas de Souza
05 01 2012
Um analista de conjuntura tem que ter, como os antigos adivinhos, uma arte especial, o dom de ler as tendências que já estão presentes. Ou os signos da realidade, diria Nietzsche. Calcas da Ilíada, “ótimo augure de pássaros”, Tirésias que, no Édipo de Sófocles, por causa da sua cegueira, descobre os indícios e as informações ocultas que lhe chegavam ou possuía. Pois o analista de conjuntura tem um pouco de Calcas e de Tirésias, mas também tem um pouco de Lênin, quando chega à Rússia e lança as “Teses de Abril”; e tem um pouco de Keynes tentando propor o Bankor para organizar o capitalismo e salvar a Inglaterra. E todos – todos! – na razão ou no desespero, lemos a conjuntura. O problema é conseguir captar a abertura que os seus sinais nos dão. Hoje, se temos o entendimento adequado, eles nos revelam o movimento, o sentido e a direção do capital. Se não, somos como os pilotos de Fórmula 1, o pára-brisa é a nossa interpretação; se o carro bate, as nossas ideias voam aos pedaços.
2012 é um ano complexo, deve ser um ano de inflexão. Primeiro, porque no contexto do conflito entre os eixos americano e chinês, o elemento dinâmico do sistema é esse último. A China está se preparando economicamente para dominar o mundo a médio prazo. (Mas também se condiciona, a mais longo prazo, no lado militar, para encarar os americanos). Na economia, sua manufatura está sobrando, sua competitividade aumenta, talvez – e aqui está o decisivo – comece a entrar nas tecnologias de ponta. Monetariamente prepara o Yuan para ser moeda de reserva, a partir de acordos bilaterais com diversos países, para, logo adiante, torná-lo reserva de valor. A China vai ter que arranjar um modo de sua moeda ser aceita de uma maneira generalizada sem que suas manipulações sejam consideradas abusivas. (Atenção: não vamos entrar na ideologia americana de que o fluxo livre do dólar não é manejado, nem manipulado, por favor!! É só ver o que o FED andou fazendo e faz, ou o que os oligopólios financeiros fazem com as moedas. Livre mercado? Argh!).
Voltando à China. Com o processo de protecionismo agora avançando fortemente no mundo, ela vai ficar bem posicionada no mercado externo, com a hegemonia sobretudo na Ásia, e tentando destruir seus competidores – o Brasil que se proteja. E, ao mesmo tempo, vai voltar-se cada vez mais para o mercado interno. E a China tem estratégia nacional e tem uma postura de liberdade na política econômica para efetuar tal atuação. Tudo porque a China tem um Estado unitário. (Vejam bem, amados e contrastantes leitores: não estou defendendo a China e suas soluções, estou mostrando como as soluções que eles acharam estão incidindo sobre a realidade! É mais que evidente que há uma questão de fundo na realidade contemporânea, valendo integralmente nesta mundialização: qual é o Estado que servirá ao bem comum?)
O adversário imediato, o rival mimético, como falaria René Girard, é os Estados Unidos. Só que aqui a coisa está muito complicada. A classe dominante está dividida, até mesmo os financistas estão em disputa, o processo de concentração e centralização de capital continua, e mesmo se as finanças e as empresas crescem, a economia patina, porque uma economia só é de vanguarda e forte se o emprego cresce e transborda. No auge dos anos 90 do século passado, os Estados Unidos tinham 4% de desemprego, considerada uma taxa de pleno emprego. Hoje, a verdadeira taxa é de 16%. Bom, e não se conta o emprego clandestino que existia naqueles anos, quando mexicanos, brasileiros, europeus do leste, asiáticos e africanos estavam empregados, mas não entravam nas estatísticas. Hoje, esse pessoal emigra para outros lugares. Para o Brasil, inclusive.
Politicamente, os americanos estão, por consequência, divididos. O Estado está paralisado pelas resoluções dos deputados sobre o limite da divida e o controle os gastos. E o Fed continua mandando a serviço das finanças. E as agências de ratings – expressão do capital financeiro – estão entrando na linha de suicídio, jogando contra o Estado americano e contra os estados europeus. 2012 vai ser mais um ano de paralisia ou de lento crescimento nos “States”. E vejam, o problema da economia americana, que é uma economia líder, não é só crescer. É crescer para ampliar a sua liderança. Como? Construindo um conjunto de novas indústrias com novas tecnologias para comandar a arquitetura de um novo padrão de acumulação. Aqui é que está o ponto: os americanos têm política econômica para tal? Não! Por quê? Porque as finanças não cedem. E nem pensam e nem compreendem o seu novo papel neste padrão. E a atividade produtiva – dada a sua estrutura financeirizada, através da corporate governance (governança corporativa) – não tem bala para bater as finanças. Os lucros das grandes empresas ainda têm um componente financeiro elevado. Falta, então, a reorganização da economia, do planejamento, do financiamento, ou, no mínimo, de uma programação do investimento de natureza estatal em diálogo com as multinacionais, o que depende da política. E enquanto isso não ocorrer, a tentação bélica pode se antecipar, pois como o poder estatal do país está cindido, o gesto das armas pode ocorrer. (Olha o Irã e o estreito de Ormuz!)
A Europa, graças à vocação financeira dos seus países, está sendo empurrada para o fundo do poço de uma maneira grave, porque não só vai perder posição no contexto das economias (para Brasil, Rússia e Índia), como vai dilapidar sua socialização, vai incrementar a luta de classes através de uma direitização absolutamente visível – de Portugal à Alemanha. Não vai ser fácil os socialistas ganharem na França. E a política das finanças é corte de gastos, limitação do déficit e da dívida pública, corte de funcionários, corte de salários, diminuição dos gastos sociais, etc. Tudo aquilo que uma recessão/depressão gosta: a espiral do suicídio. Dessa forma, não há investimento autônomo do Estado e muito menos do setor privado. E claro, não teremos consumo e nem investimento derivado desse. Logo, o desemprego vai ficar mais sombrio. Pobre população desta Europa das Finanças, que não pensa sequer num Estado político europeu!
Já o Brasil está numa situação aparentemente boa. Primeiro, estamos já inseridos na nova mundialização através do petróleo, da produção de alimentos e dos minerais. O nosso desafio é não ficar estourando de felicidade por estarmos bem. Precisamos reposicionar a nossa indústria, seja para a competição internacional, seja para o retorno à expansão do mercado interno. A dificuldade maior será articular a relação de força dos grupos sociais que desequilibre a atual posição das finanças (bancos nacionais e instituições financeiras internacionais) em favor da indústria e dos trabalhadores. E ainda, na dimensão ideológica, que rompa com a possível direitização das classes médias ascendentes, que adoram o governo, mas que a qualquer solavanco maior da economia estarão brigando contra ele. E com um problema mais complexo. Como articular o desenvolvimento dessa relação de grupos sociais com a composição política partidária e a reforma política encravada em dúvidas, visando um poder maior do país?
Dessa maneira, o que se pode ver neste início de 2012 é o eixo econômico chinês – composto da Ásia, da América Latina (Brasil, incluído), África – se mexendo para um movimento dinâmico, obviamente com a China correndo a maratona, e os demais, corridas de média e curta distância. E o eixo americano, senão parando, pelo menos mais lento, com os Estados Unidos bloqueado por lutas internas, a Inglaterra no meio do barulho americano e europeu, e a Europa, talvez passando sem pudor, do purgatório da economia e da política para a sem esperança do Inferno. (É o que diria o nosso amigo Dante: “Lasciate ogne speranza voi ch´intrate”). E, quem sabe, nessa passagem é que pode estar a grande ameaça do conflito bélico, talvez algum Napoleão europeu tente puxar a espada da guerra contra o Irã, numa busca de votos e dominância geopolítica de desespero, antecipando o desejo militar americano.
Esso é o sentimento que aparece agora, na virada do ano, quando a maré está enchendo. Mas, no preamar, o medo da ressaca existe. E, portanto, a pergunta assustadora: se a maré alta se expandir mais longe do que devia, haverá uma certa devastação no mundo, como a voluptuosidade que Capitu fez no coração de Bentinho, no romance “Don Casmurro” de Machado de Assis?
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