O sistema financeiro mundial continua em crise. Os grande bancos norte-americanos foram salvos graças aos aportes financeiros do Estado e, atualmente, dedicam-se ao business as usual, envolvidos em apostas tão ou mais arriscadas do que as que faziam até 2007. Por que acreditar que desta vez os resultados serão diferentes, se o sentimento de impunidade com que os grandes bancos tocam habitualmente seus negócios está agora respaldado pela certeza do salvamento estatal? Os bancos menores lutam desesperadamente pela sobrevivência em um ambiente cada vez mais hostil, pois sua base de clientes (pequenos negócios, imobiliário local e pessoas físicas) também está em crise. Na Europa, o salvamento dos bancos colocou o continente à beira da crise fiscal e o processo de "socialização" dos prejuízos prossegue, como mostra a discussão essa semana da necessidade de absorção de mais prejuízos privados em um país na mira dos "investidores" internacionais. A solução dada para a Grécia – uma garantia mista entre Europa e FMI em caso de agravamento da solvência do país - já suscita a desconfiança do "mercado". A venda de títulos da dívida grega nessa semana ocorreu a um custo muito alto, mostrando que as iniciativas de solução do problema ainda não surtiram o efeito desejado.
Essa situação de incerteza radical, da qual anedoticamente me utilizo de fatos da conjuntura para mostrar sua validade, tem levado, em um plano estrutural, à busca incessante de novas fontes de lucratividade e de novos modos de funcionamento do sistema de hegemonia financeira. E think- tanks, universidades, consultores não faltam para isso, não apenas nos países desenvolvidos, em especial os EUA. Seus epígonos estão por aí, espalhados pelo mundo, sempre prontos a apoiar as idéias dos "mestres" e elevá-las em seu discurso ao mais alto interesse público local. É a fome e a vontade de comer... dólares, of course.
É nesse contexto que tem de ser entendido o chamado Plano Ômega. Dada a fragilização dos mercados financeiros tradicionais, busca-se descentralizar as operações financeiras para locais com maior potencial de crescimento econômico nas próximas décadas. Obviamente, isso tem de ser entendido como um movimento de extensão geográfica do centro pensante da globalização financeira e não como uma disputa "vencida" pelos mercados emergentes. O Brasil, e mais apropriadamente a cidade de São Paulo, tem sido lembrada nessas discussões sobre os rumos do capitalismo global. O Plano Ômega seria um conjunto de mudanças institucionais que, em conjunto com a movimentação dos bancos de investimento globais, colocaria a cidade como centro de fornecimento de serviços financeiros para a região latino-americana. O financiamento das empresas da América Latina como um todo, seja por emissão de ações ou por emissão de títulos no mercado internacional, seria realizado a partir de empresas localizadas em São Paulo. No jargão do mercado, São Paulo seria um hub, uma conexão, entre as empresas da América Latina e os aplicadores globais.
Mas, para isso, seriam necessárias reformas com apenas um sentido: promover uma ainda maior abertura financeira da economia brasileira de modo a integrá-la ainda mais ao resto do mundo. A legislação tributária para aplicadores estrangeiros teria de ser simplificada e nenhuma restrição a entrada e a saída de divisas é o ideal a ser perseguido. Assim, o recentemente criado imposto de 2% de IOF para aplicações estrangeiras especulativas teria de ser revogado. No âmbito cambial, buscar-se-ia um aumento na conversibilidade do real, provavelmente com a admissibilidade da criação de contas em moeda estrangeira no sistema financeiro brasileiro. No âmbito contábil, está em curso uma adequação das normas brasileiras às internacionais, de modo a facilitar a avaliação internacional das empresas locais (e, daquelas que vierem aqui buscar financiamento, em caso de avanço do Plano).
Pode parecer pouco, mas o impacto dessas medidas sobre a economia brasileira pode ser decisivo para os rumos do capitalismo local nas próximas décadas. Na prática, teríamos o aprofundamento do processo de desnacionalização da economia brasileira, maiores dificuldades em conter a volatilidade cambial (e, portanto, da lucratividade relativa entre os setores integrados comercialmente ao mercado mundial e aqueles que não o são, prejudicando a alocação setorial dos investimentos) e uma maior integração do sistema financeiro local com o internacional. Esse imbricamento aumentaria a vulnerabilidade do sistema financeiro brasileiro aos choque internacionais, acabando com o relativo isolamento dos bancos nacionais que se mostrou decisivo para a rápida recuperação do Brasil quando da crise de 2007-08 (não por acaso o banco brasileiro que estava mais relacionado ao capital internacional, o Unibanco, sucumbiu à crise financeira mundial). O Brasil se tornaria ainda mais dependente do fluxo de capitais estrangeiros e cada vez menos teria possibilidade de implementar uma política econômica autônoma. Ora, os ciclos financeiros variam entre momentos de euforia (capital abundante e juros baixos) e de crise (onde o capital migra para os países do centro, em especial os EUA). Na euforia, teríamos um real excessivamente valorizado, crédito abundante e crescimento econômico acelerado, a partir do endividamento de famílias e de empresas. Na crise, o movimento oposto.
Isso já ocorre hoje, alguém poderia contestar. Mas o que se propõe é enorme e, quando se trata de finanças, o volume é determinante. Criar-se-ia um armadilha que condicionaria completamente a política econômica às possibilidades de entrada de capitais, sob pena de uma crise enorme. Tome-se o exemplo próximo do Uruguay e veja-se como é difícil desmontar o mecanismo de contas em dólar sigilosas existente nos bancos locais sem criar uma enorme crise financeira, com uma desvalorização desastrosa do peso. Os mecanismos seriam outros (aparentemente, não se trata de tornar o Brasil um paraíso fiscal, embora as reformas o aproximem destes), mas as conseqüências, dado o volume de capital envolvido, seriam de ainda mais difícil reversão. Trata-se de um caminho que, se adotado, somente poderá ser modificado com uma enorme crise, provavelmente vinda do próprio funcionamento do sistema em nível global, pois ninguém terá condições políticas de se contrapor à liberalização financeira (estaria criando uma crise econômica, qual governo teria força para agüentar as conseqüências disso?).
Por fim, cabe salientar que a totalidade das medidas que promovem tal mudança podem ser adotadas no âmbito administrativo do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Ou seja, trata-se de um verdadeiro "golpe branco", decidido entre "eles" (o principal articulador do Plano Ômega é o Sr. Armínio Fraga, presidente do Conselho da BM&F Bovespa, acho que não é necessário dizer mais nada) exclusivamente, mas com repercussão permanente para "nós". É claro que serão agitadas as bandeiras da "modernização" e, até mesmo, da "criação de empregos" no setor financeiro como justificativas para essa ousadia, como mostra nota na Revista IstoÉ Dinheiro do início de março. Historicamente, o déficit democrático no que tange a finança é sempre determinante de seus movimentos de aprofundamento, provavelmente por que se fôssemos discutir as claras as intenções e repercussões de propostas como essas, elas nunca seriam adotadas. Mas, normalmente, denúncias públicas forçam uma discussão mais aberta de temas que eles querem (e necessitam) manter à sombra.
Artigo publicado no blog Diario Gauche (www.diariogauche.blogspot.com).
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