CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
3 de setembro de 2009
G-20:
LUTA DE TODOS
CONTRA TODOS?
Por Enéas de Souza
Há uma questão incômoda entre os governantes dos Estados que compõe o G-20. De um modo geral, na dimensão pública, o neoliberalismo, com seu escudeiro, a mídia, desempenha o seu lubrificado oratório: “A crise já passou”. Mas a platéia não se convence muito com esta música, e muito menos com os intérpretes. Ocorre que, ao mesmo tempo, para evitar o sentimento de uma realidade angustiante, fingem que acreditam. A mídia tem a estratégia e a estética do fingimento. Fingir para que as pessoas creiam. Fingir de que já estamos em recuperação. Tudo na conta - e pela ordem - do capital financeiro. Um abafa para que as populações continuem na inocência, simplesmente aguardando o retorno da felicidade. Felizmente, os governos, lá nos seus gabinetes, no secreto dos seus pensamentos, não chegam a entrar no engodo da propaganda generalizada e festiva. E de vez enquanto, deixam, eles também, o sorriso do lado externo, do lado de que tudo está bem, para pensarem formas de tentar buscar um caminho para a saída da crise. É nesta viagem que se embala Gordon Brown, na véspera do G-20.
Mr. Brown não usa o charuto de Churchill
Churchill era um primeiro ministro de grande imaginação e de grande coragem, dirigiu a Inglaterra em momentos graves da 2a Guerra Mundial. Ele se celebrizou por um famoso discurso que pedia aos ingleses: “Sangue, suor e lágrimas”. Não foi apenas este discurso que o fez notável. A sua celebridade foi múltipla. Notáveis foram o seu V da vitória, com dois dedos da mão direita, e o seu fumegante e fulgurante e mágico charuto, que lhe dava um tom de poder e de capacidade de liderança. Numa dimensão, este charuto significava o sentimento do dever cumprido, a pausa para o prazer, mas, noutra, o gozo pelo trabalho bem feito, a insistência da teimosia que vence. E daí vinha a imagem do gênio que requer o aplauso até mesmo do inimigo. Pois, há em cada primeiro ministro inglês uma persistente tentativa de ter esta genialidade de Churchill. Vem a galope a comichão que visa a glória que o capitalismo deu a um descendente nobre que o serviu com gala.
Depois, da 2ª Guerra Mundial, a diminuição da importância da Inglaterra e da libra inglesa, botou esta ambição cada vez longe de qualquer político inglês. Vide Blair, o puddle de Bush. Só que o fantasma de Churchill continua rondando. E, ultimamente, como o espectro do Pai que apareceu a Hamlet, o príncipe shakespeariano do “to be or not to be”, agora igualmente Churchill tem aparecido a Gordon Brown. O atual chefe inglês continua pensando em proporcionar ao mundo – e secundariamente para a Inglaterra, como gozam os conservadores – a solução desta crise financeira mundial em múltiplos dos seus quesitos. Foi assim, logo depois que Obama assumiu; é assim agora, nos prolegômenos da reunião de setembro do G-2O em Pittsburgh, Porém, a tarefa é gigantesca. Nem a Inglaterra tem mais o poder da primeira metade do século XX, nem Gordon Brown é Churchill. E, que eu saiba, nem fuma - o que nesses tempos de proibição de fumar seria quase imperdoável para um líder. Mas, mesmo não sendo Churchill, nem fumando, o atual primeiro ministro tenta exercer e dar um sentido glorioso a sua liderança. Pensa. E pensa sem cigarro e sem charuto. Pensa e propõe. E é assim que alguns políticos e economistas no cenário internacional perguntam: o que quer, de fato, Gordon Brown, o primeiro ministro britânico?
Uma Confissão que não é a de Santo Agostinho
Não é preciso fazer mistério, Gordon Brown propõe, pelo menos, três pontos para o G-20 de Pittsburgh. Mas quando faz as suas proposições, na verdade, ele confessa algumas coisas que valem a pena registrar. A primeira delas - e decisiva - é que a economia mundial não ultrapassou o caminho do desconforto e nem entrou na zona de recuperação. Contra essa análise, sugere e afirma que é necessária para a economia uma coordenação global, junto com um aperto fiscal generalizado, para que a ordem do mundo entre nos eixos. Busquemos, por nossa vez, agora, entrar um pouco na idéia de Gordon Brown. O que ele está nos dizendo é que as economias estão fazendo esforços, mas cada um para o seu lado. É como um corpo cuja cabeça se dirigisse para o sul, as pernas para o norte, os braços para leste e o tórax para oeste. Ou seja, há necessidade de uma integração, de uma coesão. E isso só virá através de uma coordenação que articule a totalidade econômica. Idéia generosa, mas que a primeira vista parece inviável. E por que? Porque não se enxerga no momento qualquer disposição dos americanos, por exemplo, de fazer um trabalho dentro de uma coordenação mais orquestrada. Os Estados Unidos, com a sua visão messiânica de si mesmo, não acreditam nesta combinação, salvo se ela for comandada por eles. E Gordon Brown sabe das duas coisas: que o ideal seria uma coordenação para um mundo globalizado e que os americanos não a aceitarão. Então, qual o objetivo dessa observação?
A finalidade da palavra de Gordon Brown está na segunda parte da proposta, o recado de política econômica: há que fazer um aperto fiscal. E é um recado, mais que direto, para os Estados Unidos. Pois, o que está ocorrendo é que os americanos vêm tomando decisões que visam resolver, custe o que custar, tanto a economia financeira quanto produtiva do seu próprio país, principalmente a primeira. Com um porem, no entanto: dada as complicações e os labirintos econômicos, do qual temos falado nesta coluna, as decisões dos governos de Bush e de Obama têm sido a de ampliar constantemente a dívida do Estado. E provocar, consequentemente, um progressivo déficit fiscal. Ora, o que Gordon Brown está chamando a atenção é que o que está em perigo, se este caminho continuar a ser trilhado largamente, é o dólar, a moeda de reserva mundial. Nessa direção, ele estará irremediavelmente ameaçado. Ou seja, onde Brown põe o dedo é no ponto delicado do problema. E diz: tudo bem se não quiserem uma coordenação – acho que devemos tentar – mas, ao menos, não entremos em desorganização fiscal, sobretudo os americanos, porque aí, sim, passaremos da Grande Recessão para uma Grande Depressão, que talvez possa ser maior do que aquela de 30.
We trust in God. Mas que Deus salve os bancos.
Gordon Brown foi ministro da Fazenda da Grã-Bretanha, logo conhece o valor da moeda. E, sobretudo, no caso do dólar, sabe daquela frasezinha escrita na cédula do dinheiro americano: We trust in God. Por isso, é preciso salvar o dólar. Mas, a salvação dele não é apenas um requerimento do Estado americano, dos capitais e do povo daquela nação. Nasce também de uma exigência coletiva mundial. A dificuldade de sustentar o dólar, no caso de uma dívida excessiva, talvez tenha que passar por uma solução divina, aquela invocada no dinheiro americano. We trust in God, tal é o encalhamento crítico dos bancos de Tio Sam nas profundezas dos ativos tóxicos. Sim, porque até agora nenhuma idéia de política econômica conseguiu sequer resolver o credit crunch entre os bancos. De onde se conclui que de fato o crédito se tornou uma mercadoria em escassez. O velho Keynes continua maltratando: preferência pela liquidez. Já que a nacionalização e a estatização são ideologicamente quase impossíveis no neoliberalismo, talvez só mesmo Deus poderia mesmo resolver a questão. Mas, enquanto ele não desce ao terreno dos mortais, os nossos financistas trabalham pensando o mesmo: tudo será resolvido se o sistema financeiro continuar sendo desregulado.
Naturalmente, que este é um desejo bem ao gosto das Finanças. Mas, o próprio Gordon Brown diz que as coisas não voltarão ao que eram antes. Logo, se as Finanças se mantiverem no delírio de um apetite de risco interminável, são os dirigentes estatais que tem que solucionar a confusão na área. Mas, o problema é que eles pensam apenas um pouquinho adiante dos bancos. Vejamos, Bernanke, o presidente do FED, o que ele diz. Já anunciou, faz algum tempo, que talvez tenha que pôr mais em jogo 1 trilhão para pescar hipotecas desqualificadas e mais um tri para diversos problemas do sistema. Isso significa que o FED, que tinha 900 bi de capital no início da crise, para dar um novo passo visando resolver a problemática, pode chegar a 4 tri. É isso aí mesmo: estou achando que o Gordon Brown tem razão em falar sobre o aperto fiscal. Mas, Bernanke também, porque para salvar as finanças tem que pôr mais dinheiro. Mas, não terão razão os chineses no seu temor que os americanos possam não sustentar o dólar? E não terão razão também aquêles que acham que a nacionalização, para os mais tímidos, e a estatização, para os mais exagerados, são as únicas e verdadeiras soluções possíveis?
(Ah! o velho fantasma do socialismo impede aos americanos e aos financistas de pensarem nestas hipóteses. Como vêem, os reflexivos leitores, há muitos fantasmas nesta história: Hamlet, Churchill e o socialismo,)
Por andam nossas economias?
Mais do que ninguém, Gordon Brown sabe que não existirá um avanço na globalização sem uma reforma da estrutura na articulação das economias vigentes. Porque, quando diz que o mundo não será como antes, está chamando a atenção para uma alteração indispensável. Exatamente por não querer que as economias contemporâneas sejam como o personagem de Kafka, Gregor Samsa de “A Metamofose”, que de homem virou inseto, ele aspira que haja um adequado “balanceamento” entre as economias ricas e as economias emergentes. Gordon Brown sabe que este mundo terá que se transformar, terá que mudar muito e profundamente. E que vai levar tempo. E que no fundo, quando pensa sobre isso, volta ao seu primeiro ponto, a necessidade básica de uma coordenação. Porque há tanta coisa a resolver: uma nova articulação Estados Unidos e China, um novo sistema financeiro, uma nova estrutura produtiva, uma nova estrutura energética, uma nova divisão internacional do trabalho, etc., que seria preciso um planejamento adequado para que esses elementos se conectassem. Agora estamos dando os nomes às coisas, já que o nome técnico para coordenação é sem dúvida planejamento.
Ou seja, a gastronomia econômica precisa de uma transformação radical. Novos pratos, novas combinações, novas mesas, novas toalhas, novos enfeites na organização do restaurante mundial. É por isso que Gordon Brown está dizendo que nada vai ficar como antes. Vamos ter que cuidar dessa arquitetura tanto quanto antes, e o G-20, a começar no dia 24 de setembro, é um instrumento adequado para tal. Mas, a palavra de Gordon Brown não é mais aquela palavra do Leão Inglês, e nem o planejamento é uma coisa que o capitalismo neoliberal aceitaria. Todavia, mesmo como chefe de uma economia subsidiária à americana, ele sabe para onde vão os ventos, seja porque há uma aliança Wall Street/London, seja porque a sua economia inglesa está a perigo. Mas, Gordon Brown sabe evidentemente que o Leão já não ruge mais como há muito tempo, sabe apenas que agora ele assopra para aliviar a queimadura, para ajudar a evitar que o mundo do capital caia numa profunda depressão. Cabe então refletir sobre este sussurro britânico, sobre esta voz que alerta para as toxinas da economia vigente. Pittsburgh vai ser o lugar das falas e haverá um tempo para uma discussão e para a negociação. Mas, como sempre emergem perguntas. A primeira é fatal: os capitais e os Estados ouvirão o que vai ser dito? E logo em seguida, vem uma segunda: já não estamos nos tempos de Hobbes, onde ocorre a luta de todos contra todos?
Coluna das quintas
3 de setembro de 2009
G-20:
LUTA DE TODOS
CONTRA TODOS?
Por Enéas de Souza
Há uma questão incômoda entre os governantes dos Estados que compõe o G-20. De um modo geral, na dimensão pública, o neoliberalismo, com seu escudeiro, a mídia, desempenha o seu lubrificado oratório: “A crise já passou”. Mas a platéia não se convence muito com esta música, e muito menos com os intérpretes. Ocorre que, ao mesmo tempo, para evitar o sentimento de uma realidade angustiante, fingem que acreditam. A mídia tem a estratégia e a estética do fingimento. Fingir para que as pessoas creiam. Fingir de que já estamos em recuperação. Tudo na conta - e pela ordem - do capital financeiro. Um abafa para que as populações continuem na inocência, simplesmente aguardando o retorno da felicidade. Felizmente, os governos, lá nos seus gabinetes, no secreto dos seus pensamentos, não chegam a entrar no engodo da propaganda generalizada e festiva. E de vez enquanto, deixam, eles também, o sorriso do lado externo, do lado de que tudo está bem, para pensarem formas de tentar buscar um caminho para a saída da crise. É nesta viagem que se embala Gordon Brown, na véspera do G-20.
Mr. Brown não usa o charuto de Churchill
Churchill era um primeiro ministro de grande imaginação e de grande coragem, dirigiu a Inglaterra em momentos graves da 2a Guerra Mundial. Ele se celebrizou por um famoso discurso que pedia aos ingleses: “Sangue, suor e lágrimas”. Não foi apenas este discurso que o fez notável. A sua celebridade foi múltipla. Notáveis foram o seu V da vitória, com dois dedos da mão direita, e o seu fumegante e fulgurante e mágico charuto, que lhe dava um tom de poder e de capacidade de liderança. Numa dimensão, este charuto significava o sentimento do dever cumprido, a pausa para o prazer, mas, noutra, o gozo pelo trabalho bem feito, a insistência da teimosia que vence. E daí vinha a imagem do gênio que requer o aplauso até mesmo do inimigo. Pois, há em cada primeiro ministro inglês uma persistente tentativa de ter esta genialidade de Churchill. Vem a galope a comichão que visa a glória que o capitalismo deu a um descendente nobre que o serviu com gala.
Depois, da 2ª Guerra Mundial, a diminuição da importância da Inglaterra e da libra inglesa, botou esta ambição cada vez longe de qualquer político inglês. Vide Blair, o puddle de Bush. Só que o fantasma de Churchill continua rondando. E, ultimamente, como o espectro do Pai que apareceu a Hamlet, o príncipe shakespeariano do “to be or not to be”, agora igualmente Churchill tem aparecido a Gordon Brown. O atual chefe inglês continua pensando em proporcionar ao mundo – e secundariamente para a Inglaterra, como gozam os conservadores – a solução desta crise financeira mundial em múltiplos dos seus quesitos. Foi assim, logo depois que Obama assumiu; é assim agora, nos prolegômenos da reunião de setembro do G-2O em Pittsburgh, Porém, a tarefa é gigantesca. Nem a Inglaterra tem mais o poder da primeira metade do século XX, nem Gordon Brown é Churchill. E, que eu saiba, nem fuma - o que nesses tempos de proibição de fumar seria quase imperdoável para um líder. Mas, mesmo não sendo Churchill, nem fumando, o atual primeiro ministro tenta exercer e dar um sentido glorioso a sua liderança. Pensa. E pensa sem cigarro e sem charuto. Pensa e propõe. E é assim que alguns políticos e economistas no cenário internacional perguntam: o que quer, de fato, Gordon Brown, o primeiro ministro britânico?
Uma Confissão que não é a de Santo Agostinho
Não é preciso fazer mistério, Gordon Brown propõe, pelo menos, três pontos para o G-20 de Pittsburgh. Mas quando faz as suas proposições, na verdade, ele confessa algumas coisas que valem a pena registrar. A primeira delas - e decisiva - é que a economia mundial não ultrapassou o caminho do desconforto e nem entrou na zona de recuperação. Contra essa análise, sugere e afirma que é necessária para a economia uma coordenação global, junto com um aperto fiscal generalizado, para que a ordem do mundo entre nos eixos. Busquemos, por nossa vez, agora, entrar um pouco na idéia de Gordon Brown. O que ele está nos dizendo é que as economias estão fazendo esforços, mas cada um para o seu lado. É como um corpo cuja cabeça se dirigisse para o sul, as pernas para o norte, os braços para leste e o tórax para oeste. Ou seja, há necessidade de uma integração, de uma coesão. E isso só virá através de uma coordenação que articule a totalidade econômica. Idéia generosa, mas que a primeira vista parece inviável. E por que? Porque não se enxerga no momento qualquer disposição dos americanos, por exemplo, de fazer um trabalho dentro de uma coordenação mais orquestrada. Os Estados Unidos, com a sua visão messiânica de si mesmo, não acreditam nesta combinação, salvo se ela for comandada por eles. E Gordon Brown sabe das duas coisas: que o ideal seria uma coordenação para um mundo globalizado e que os americanos não a aceitarão. Então, qual o objetivo dessa observação?
A finalidade da palavra de Gordon Brown está na segunda parte da proposta, o recado de política econômica: há que fazer um aperto fiscal. E é um recado, mais que direto, para os Estados Unidos. Pois, o que está ocorrendo é que os americanos vêm tomando decisões que visam resolver, custe o que custar, tanto a economia financeira quanto produtiva do seu próprio país, principalmente a primeira. Com um porem, no entanto: dada as complicações e os labirintos econômicos, do qual temos falado nesta coluna, as decisões dos governos de Bush e de Obama têm sido a de ampliar constantemente a dívida do Estado. E provocar, consequentemente, um progressivo déficit fiscal. Ora, o que Gordon Brown está chamando a atenção é que o que está em perigo, se este caminho continuar a ser trilhado largamente, é o dólar, a moeda de reserva mundial. Nessa direção, ele estará irremediavelmente ameaçado. Ou seja, onde Brown põe o dedo é no ponto delicado do problema. E diz: tudo bem se não quiserem uma coordenação – acho que devemos tentar – mas, ao menos, não entremos em desorganização fiscal, sobretudo os americanos, porque aí, sim, passaremos da Grande Recessão para uma Grande Depressão, que talvez possa ser maior do que aquela de 30.
We trust in God. Mas que Deus salve os bancos.
Gordon Brown foi ministro da Fazenda da Grã-Bretanha, logo conhece o valor da moeda. E, sobretudo, no caso do dólar, sabe daquela frasezinha escrita na cédula do dinheiro americano: We trust in God. Por isso, é preciso salvar o dólar. Mas, a salvação dele não é apenas um requerimento do Estado americano, dos capitais e do povo daquela nação. Nasce também de uma exigência coletiva mundial. A dificuldade de sustentar o dólar, no caso de uma dívida excessiva, talvez tenha que passar por uma solução divina, aquela invocada no dinheiro americano. We trust in God, tal é o encalhamento crítico dos bancos de Tio Sam nas profundezas dos ativos tóxicos. Sim, porque até agora nenhuma idéia de política econômica conseguiu sequer resolver o credit crunch entre os bancos. De onde se conclui que de fato o crédito se tornou uma mercadoria em escassez. O velho Keynes continua maltratando: preferência pela liquidez. Já que a nacionalização e a estatização são ideologicamente quase impossíveis no neoliberalismo, talvez só mesmo Deus poderia mesmo resolver a questão. Mas, enquanto ele não desce ao terreno dos mortais, os nossos financistas trabalham pensando o mesmo: tudo será resolvido se o sistema financeiro continuar sendo desregulado.
Naturalmente, que este é um desejo bem ao gosto das Finanças. Mas, o próprio Gordon Brown diz que as coisas não voltarão ao que eram antes. Logo, se as Finanças se mantiverem no delírio de um apetite de risco interminável, são os dirigentes estatais que tem que solucionar a confusão na área. Mas, o problema é que eles pensam apenas um pouquinho adiante dos bancos. Vejamos, Bernanke, o presidente do FED, o que ele diz. Já anunciou, faz algum tempo, que talvez tenha que pôr mais em jogo 1 trilhão para pescar hipotecas desqualificadas e mais um tri para diversos problemas do sistema. Isso significa que o FED, que tinha 900 bi de capital no início da crise, para dar um novo passo visando resolver a problemática, pode chegar a 4 tri. É isso aí mesmo: estou achando que o Gordon Brown tem razão em falar sobre o aperto fiscal. Mas, Bernanke também, porque para salvar as finanças tem que pôr mais dinheiro. Mas, não terão razão os chineses no seu temor que os americanos possam não sustentar o dólar? E não terão razão também aquêles que acham que a nacionalização, para os mais tímidos, e a estatização, para os mais exagerados, são as únicas e verdadeiras soluções possíveis?
(Ah! o velho fantasma do socialismo impede aos americanos e aos financistas de pensarem nestas hipóteses. Como vêem, os reflexivos leitores, há muitos fantasmas nesta história: Hamlet, Churchill e o socialismo,)
Por andam nossas economias?
Mais do que ninguém, Gordon Brown sabe que não existirá um avanço na globalização sem uma reforma da estrutura na articulação das economias vigentes. Porque, quando diz que o mundo não será como antes, está chamando a atenção para uma alteração indispensável. Exatamente por não querer que as economias contemporâneas sejam como o personagem de Kafka, Gregor Samsa de “A Metamofose”, que de homem virou inseto, ele aspira que haja um adequado “balanceamento” entre as economias ricas e as economias emergentes. Gordon Brown sabe que este mundo terá que se transformar, terá que mudar muito e profundamente. E que vai levar tempo. E que no fundo, quando pensa sobre isso, volta ao seu primeiro ponto, a necessidade básica de uma coordenação. Porque há tanta coisa a resolver: uma nova articulação Estados Unidos e China, um novo sistema financeiro, uma nova estrutura produtiva, uma nova estrutura energética, uma nova divisão internacional do trabalho, etc., que seria preciso um planejamento adequado para que esses elementos se conectassem. Agora estamos dando os nomes às coisas, já que o nome técnico para coordenação é sem dúvida planejamento.
Ou seja, a gastronomia econômica precisa de uma transformação radical. Novos pratos, novas combinações, novas mesas, novas toalhas, novos enfeites na organização do restaurante mundial. É por isso que Gordon Brown está dizendo que nada vai ficar como antes. Vamos ter que cuidar dessa arquitetura tanto quanto antes, e o G-20, a começar no dia 24 de setembro, é um instrumento adequado para tal. Mas, a palavra de Gordon Brown não é mais aquela palavra do Leão Inglês, e nem o planejamento é uma coisa que o capitalismo neoliberal aceitaria. Todavia, mesmo como chefe de uma economia subsidiária à americana, ele sabe para onde vão os ventos, seja porque há uma aliança Wall Street/London, seja porque a sua economia inglesa está a perigo. Mas, Gordon Brown sabe evidentemente que o Leão já não ruge mais como há muito tempo, sabe apenas que agora ele assopra para aliviar a queimadura, para ajudar a evitar que o mundo do capital caia numa profunda depressão. Cabe então refletir sobre este sussurro britânico, sobre esta voz que alerta para as toxinas da economia vigente. Pittsburgh vai ser o lugar das falas e haverá um tempo para uma discussão e para a negociação. Mas, como sempre emergem perguntas. A primeira é fatal: os capitais e os Estados ouvirão o que vai ser dito? E logo em seguida, vem uma segunda: já não estamos nos tempos de Hobbes, onde ocorre a luta de todos contra todos?
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