CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
QUEM TEM
POLÍTICA,
TEM PROJETO
Enéas de Souza
22 03 2012
A grande revolução dos últimos tempos do capital financeiro na economia mundial é a sua distância e a sua apropriação do Estado. Com a emergência da crise financeira de 2007/08, deu-se o início da construção de uma nova realidade financeira e política que só agora toma corpo e se faz nítida. Trata-se de um organismo geneticamente modificado. Aquela antiga divisão entre Executivo e Banco Central passou para uma nova relação de força.
O SUCESSO DA OPERAÇÃO
1) Mesmo arrasada economicamente pela crise, as finanças transformaram o Estado numa marionete dócil e aplicada. Quem diria que o Leviatã de Hobbes tomaria a figura de um teatro de bonecos da Goldman Sachs e seus congêneres? E foi nesse caminhar que, vencedoras apesar de combalidas, as finanças precisavam dominar integralmente a máquina de fazer dinheiro do Banco Central. E a partir daí inventaram uma política econômica.
2) E este é um ponto chave para entender o momento transitório atual. Trata-se de um Keynes perverso. Um Keynes que usa o Estado, mas não em nome da sociedade, do capital e do trabalho. E sim em nome do capital financeiro. E na passagem fica esculpindo um Estado minimalista, um Estado reduzido, um Estado onde o Banco Central seja o formulador da política econômica. Como?
3) Assim como na política clássica de desenvolvimento o Estado gasta para aumentar o investimento privado e público, e incentiva a atividade econômica também para dar emprego, etc., agora é o Banco Central que empanturra os bancos de dinheiro (através das quantitatives easings) na base de uma taxa de juros reduzida.
4) Façamos um zoom nessa política. E vemos que essa liquidez produz quatro efeitos: um, salva os bancos; dois, aumenta a inflação; três, permite, por isso, o bloqueio do aumento da recessão produtiva, fazendo o PIB crescer um pouco quando cairia muito mais se não houvesse essa liquidez; quarto, permite que, pela desvalorização monetária e pela competição das moedas dólar-euro, as economias avançadas tenham maiores possibilidades exportadoras.
5) Como perguntaria meu amigo Cosme: É ou não é uma política financeira de desenvolvimento?
6) E a estratégia pondo o chapéu desta política, ao mesmo tempo, assegura uma retomada das economias avançadas no processo de desenvolvimento econômico, buscando manter a liderança desse processo. Ou seja, o verdadeiro Estado, aquele que faz uma política econômica, é o Banco Central, que produz crescimento botando as finanças no comando do processo. Só que esse processo é pensado ortodoxamente, e faz recair o ônus da crise sobre funcionários públicos, trabalhadores, operários e desempregados. De um lado, o desemprego público e privado coloca uma densa massa de gente demandando trabalho, o que faz diminuir o salário nominal e real. E de outro, há também o caso da Alemanha, onde o controle da remuneração dos assalariados se deu, por intermédio de acordos entre patrões e empregados, sob a condução do governo. E todos se deram bem, pois os resultados capitalistas foram evidentes para a Alemanha. Ela é hoje o Estado mais completamente parceiro das finanças.
MAS VAI DAR CERTO?
1) Parece que do ponto de vista da recuperação, sim. Muito pálida, mas sim. Embora um cara como Martin Wolff, do Finantial Times, tenha dúvidas. Contudo, vamos admitir que as finanças estivessem certas. Cabe precisar que o que vai entrar em campo são efeitos dinâmicos de curto prazo. E que não levam a economia para um novo estágio de desenvolvimento. Fica no cresce e pára, toma uma crise e recupera de novo. O chamado voo da galinha. O pula-pula. E não resolve a questão da nova economia, que tem como alvo a recuperação e a metamorfose do padrão de desenvolvimento.
2) Então, o verdadeiro tema é a articulação das finanças com as empresas que operam com tecnologias novas. Esse me parece ser o desejo secreto das finanças, o segundo estágio do seu projeto, um desenvolvimento sustentado. Porque, ao se construir um novo padrão de acumulação com essa constelação de tecnologias, a lucratividade se derramará sobre todo o sistema. E aparece a oculta ambição: o sonho que o desenvolvimento da tecnologia dê tanto lucro, tanta grana, que uma parte dessa lucratividade possa ser bombeada para o mercado financeiro. E assim criar um círculo virtuoso: finanças-produção-finanças-produção... Um delírio de infinito circuito do desenvolvimento do capital.
3) Todavia, um urubu acaba sempre por pousar na economia, porque um círculo virtuoso desemboca em circulo vicioso. Qual a razão? Ela começa com a forma do capital financeiro, que é aquela que dirige os destinos da economia atual. Essa forma tem dois circuitos, duas esferas que encaminham os capitais para a valorização. A órbita financeira e a órbita produtiva. Cada uma é regida por uma categoria econômica: a financeira, pela taxa de juros, e a produtiva, pela taxa de lucro esperada. Obviamente, que os capitais, quando estão livres, são atraídos pela taxa que dá mais rentabilidade. Por isso é que, nos últimos tempos, todos queriam navegar na esfera financeira. Mesmo aqueles capitais que atuavam na esfera produtiva, quando podiam se lançavam nas atividades especulativas próprias da outra órbita.
4) O fino leitor já percebeu tudo: a economia é atravessada por essa tensão, entre a valorização de uma esfera contra a da outra. Mas, cada uma é como um teatro; apresenta novidades que atraem os espectadores. E então, os teatros têm que oferecer melhores peças, melhores personagens, melhores sessões, etc. O povo vai num e vai noutro. De repente, a peça de um teatro é mais sensacional que a do outro. Como disse, desde os anos 70, o teatro financeiro veio apresentando os melhores rendimentos. Sua órbita ficou abarrotada e os ativos inventados foram um êxito. E quando a temporada de 2007/08 terminou, a crise, no entanto, se abateu sobre os dois teatros. E a sociedade percebeu que havia que construir um novo teatro produtivo. Pois, em verdade, é ele quem dá sustentação ao mundo no qual vivemos. É pela produção que todos almoçam, jantam, se vestem, viajam, usam computadores, compram I-Pods, etc. Por consequência, o desafio agora é como construir essa arquitetura que leva o nome de Novo Padrão de Acumulação, e que é, na verdade, resultado de uma nova divisão social e internacional do trabalho.
5) Esse é o segundo ponto de um projeto de futuro das finanças. A construção de uma nova economia, de um novo padrão de desenvolvimento. No entanto, há uma contradição visível, as finanças jogam no curto prazo, e este é um projeto de longo. Então, a questão é como fazer essa união. E aí só as novas tecnologias podem tecer esta costura. E de maneira tal que a tensão entre as órbitas não afete a rentabilidade da esfera financeira e propicie um aumento insofismável da lucratividade da área produtiva. E isso só pode acontecer quando houver uma mutação estrutural. Quando a diversidade das tecnologias funcionarem em conjunto e derem partida ao tão falado padrão de acumulação, elevando nesse navio a lucratividade do capital, prestigiando tanto as finanças quanto a produção. Embora, no momento, as órbitas estão desequilibradas em favor das finanças, há que inverter esse fenômeno.
6) Então, a pergunta fatal: será possível haver uma ligação entre as finanças e a produção, de tal modo que aumente o lucro e a rentabilidade de todo o sistema?
7) Ou será preciso que as finanças – comandando não apenas o Banco Central, mas todo o Estado – usem esse mesmo Estado para reorganizar as relações de financiamento, de investimento, de inovação, de pesquisa e desenvolvimento, de absorção de novas tecnologias, para que finalmente o novo padrão cresça e apareça?
E DESDOBRAM-SE A PERGUNTAS FINAIS
1)Sabendo que a economia capitalista contemporânea vai organizar um novo padrão de acumulação, questiona-se: como ficará a luta entre o capitalismo ocidental, com liderança financeira, e o capitalismo chinês, com dominância estatal?
(E essa indagação feita assim a quente, mais quente fica, quando se sabe que a partir de agora aguarda-se uma mudança na política e na economia da China.)
2) Depois desta primeira, temos mais três indagações.
Como virá o rosto do novo capitalismo mundial?
Quanto tempo levará todo esse processo?
Com que padrão de economia, de política, de sociedade, de ideologia, de utopia, de civilização se vestirá este capitalismo vindouro?
UMA CENA INTERATIVA PARA TERMINAR
Lá no fundo do teatro estão sentados Wallerstein, Arrighi, Harvey, Zïzek e István Meszáros. Continuam, apesar de variadas interpretações, com ar interrogativo: este capitalismo tem condições de superar mais esta? Ou estamos indo além do capitalismo? Já estamos navegando no anticapitalismo? Sim? Não? Como?
E Harvey levanta-se, vem até a frente do palco e diz: “Uma alternativa terá que ser encontrada. E é aqui que o surgimento de um movimento global de correvolucionários se torna crítico, não só para deter a maré de comportamentos autodestrutivos do capitalismo (que em si seria um feito significativo), mas também para nossa reorganização e para começarmos a construir novas formas organizacionais coletivas, bancos de conhecimento e concepções mentais, novas tecnologias e sistemas de produção e consumo, ao mesmo tempo em que experimentaremos novos arranjos institucionais, novas formas de relações sociais e naturais, com o redesenho de cada vez mais urbanizada vida diária” (“O Enigma do capital e as crises do capitalismo”, pág. 224, Boitempo, 2011).
Se você, interativo leitor, tivesse na plateia, faria o que?
1) aplaudiria;
2) vaiaria;
3) ficaria indiferente.
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