CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
FINANÇAS
EM TEMPOS DE TSUNAMI
Enéas de Souza
08 03 2012
Dilma, na quarta-feira da semana passada, abriu a boca contra os 530 bilhões de euros lançados pelo Banco Central Europeu aos bancos da região. E no seu encontro com Ângela Merkel também reclamou, usou uma expressão comum, mas forte. Chamou essa operação de verdadeiro “tsunami financeiro”. Claro, ela aludia a essa manobra, mas também a algo que vem acontecendo desde a crise de 2007/08. O mar de dinheiro, a cachoeira financeira que vem caindo sobre a economia mundial, jogado pelos Bancos Centrais aos bancos americanos e europeus, e que já somam 8,8 trilhões de dólares. Convenhamos que é um fator desequilibrante da economia planetária. Poderia se dizer de fato que é um vendaval, uma tempestade e uma enchente. Porém, Dilma tem razão. Na real, na real, é de fato um tsunami. E um tsunami sobre países como o Brasil, sobre os países emergentes e sobre os subdesenvolvidos.
De onde vem? Por quê? Como? Para onde vai?
RECUPERAÇÃO DAS FINANÇAS E ESTABILIDADE DO ESTADO
Falamos na semana passada nesta coluna da união política da Alemanha e das finanças para resolver a crise da Europa, sabendo-se que a economia, não só europeia como mundial, está se dirigindo, em movimento profundo, para um objetivo claro: concentração e centralização de capital e concentração e centralização de Estados. E com essa reordenação o que vemos é um balão cativo, um plano das finanças, com um projeto de restauração do anel partido, aquele do falso brilhante do neoliberalismo financeiro.
E com esse plano, duas coisas avultam e se afiguram imediatamente vivas: a dinâmica de uma salvação econômica e a retomada política das finanças. Delas, falamos na semana passada através do texto “A economia está mudando. Você está vendo”? Nesse artigo mostrávamos a marcha do referido plano, que se desenvolveu e se desenvolve, como numa novela policial ou numa luta de box, no cenário ou no ringue dos Estados Unidos e da Europa, no pós-estouro da crise. Os passos do trajeto foram e são simples, mas a ambição extremamente ampla. Primeiro: salvação dos bancos via recursos e endividamento do Estado. Segundo: salvação, mas aprisionamento dos Estados pelas finanças, devido, inclusive, ao uso de uma liquidez gigantesca, proporcionada pelos Bancos Centrais americano e europeu. E terceiro: reorganização dos Estados, comandada pelas entidades financeiras americanas e europeias (Inglaterra, obviamente incluída) de recomposição do Estado neoliberal através do controle do orçamento, do déficit e da dívida pública, desbravando uma política de austeridade.
Tudo está muito claro, nesse plano: o objetivo final é dar novamente aos capitais financeiros o seu poder de acumulação. Para tal, é indispensável reorganizar o Estado de forma a recuperar a estabilidade de outros tempos. Naturalmente sem a capacidade de regulamentar a dinâmica da órbita onde fluem as finanças. O fundamental, portanto, trata-se da reordenação da entidade estatal, para que volte e seja capaz de dominar um dos lados da instabilidade da economia. Exatamente, na visão financeira, o desequilíbrio do setor público. Reconstruir assim a dita estabilidade do Estado para garantir a livre especulação, tentando sempre bloquear a dinamite da profunda instabilidade que está inscrita na dinâmica das finanças. Pois é notório que sem a estabilidade do Estado (e a desregulamentação do sistema financeiro) não existirá a química que sustenta a energia da especulação. Então, está evidente. O que se pretende não é a retomada da economia a partir do investimento produtivo e do aumento do emprego. Está se propondo o retorno do cassino em novas bases. E por tempo indefinido. (Estou começando a responder a uma questão colocada pelo leitor Carlos Alberto Kfouri)
A CACHOEIRA VOLUPTUOSA DA LIQUIDEZ
Onde o cassino recomeça? A política financeira, tanto americana como europeia, de níveis baixos para a taxa básica de juros da economia, seguida pelo processo de expansão da liquidez financeira que vem ocorrendo, proporcionada pelos Bancos Centrais, permite às finanças um mobilidade fantástica. Ela se dá através de trocas de títulos podres por recursos financeiros; de empréstimos a taxas baixíssimas e prazos médios para recompor o capital; de empréstimos para serem utilizados como liquidez, visando enfrentar determinados momentos críticos macroeconômicos; de empréstimos com a finalidade de garantir fontes para a alavancagem de montantes a serem usados especulativamente nos países emergentes e subdesenvolvidos. Nesse último caso, dado o baixo custo destas alavancagens, temos a transferência da aplicação financeira em mercados desenvolvidos, ainda atravancados, para mercados de economias mais atrativas, com juros mais elevados e rentabilidades mais fornidas. Contudo, as finanças levam consigo a sua roupa mais descuidada, a instabilidade. E forte instabilidade. Pois os seus aviões especulativos carregam parte da cachoeira financeira daqueles 8,8 trilhões de dólares lançados aos bancos desde o princípio da hecatombe financeira.
Responda o leitor: trata-se ou não de um tsunami financeiro?
(PRIMEIRO PARÊNTESE – E não estamos contando, para as perturbações econômicas nos países recipientes desse volume intenso de aplicações internacionais, os empréstimos que os bancos nacionais e mesmo empresas produtivas nativas, tomam no mercado externo, abarrotados da liquidez acima citada. Eles tomam a 1%, como no caso brasileiro, e ganham no mercado interno, taxas reais de 4/5%, sem nenhum risco, em títulos baseados na taxa Selic. Onde é que os mercados europeus e americanos vão dar esta taxa? Onde é que os bancos brasileiros vão ter essa possibilidade de ganhar tão facilmente? Pensem também no efeito político interno oriundo dessas oportunidades constantes de negócios. Como é que vai a política monetária assim no mais?)
(SEGUNDO PARÊNTESE – Por isso é que “gênios financeiros nacionais” insistem que o Banco Central deve aumentar a taxa de juros para deter a inflação: por causa da enxurrada de recursos estrangeiros. Velha conversa neoliberal: vamos manter a estabilidade aumentando a taxa de juros. Na verdade, esses volumes de dinheiro, de entidades alienígenas ou nacionais, correm para os nossos mercados exatamente por causa dessa elevação. E os bancos ganham mais ainda, quanto mais se eleva o diferencial entre as taxas internas e externas. Então, o esforço do Banco Central brasileiro para baixar a taxa de juros - ontem caiu para 9,75% - é um esforço para matar a volúpia especulativa vindo desse “leite derramado”, como diria nosso Chico Buarque de Hollanda.)
A GUERRA CAMBIAL COMO EFEITO DA SALVAÇÃO DAS FINANÇAS
Mas, tem um segundo efeito dessa hemorragia de liquidez sobre a estrutura da economia mundializada que Mantega já vinha denunciando há tempos no G-20 e mesmo nas suas entrevistas. Agora, Dilma pôs uma voz dissonante nesse rock das finanças. É um efeito sobre a moeda e que se faz agudo no câmbio. Olhe só caro leitor, a pirueta neoliberal: salvam-se os Bancos e reorganizam-se os Estados através de custos para a população e para os países que não estão na nova ciranda financeira de salvação dos Estados “desenvolvidos”. Assim, ao lançar dinheiro na economia americana e europeia, o que temos é um claro jorro derivado para a esfera da circulação financeira mundial e também uma perspicaz pressão desses montantes sobre o dólar e sobre o euro. Estes últimos quinhentos e tantos bilhões de euros que o Banco Central Europeu botou à disposição e que fez a felicidade das entidades bancárias europeias, introduziu um novo passo nesta tensão entre as duas moedas. Deu-se mais um choque na constante desvalorização de uma em relação à outra. E com isso, terceiras moedas, que não são controladas pelo Estado, tendem a se apreciar, como o nosso intimorato real.
A RISADA CHINESA
Mas vejam a perfídia da situação. Em cena não temos apenas duas moedas feitas cúmplices pela estratégia das finanças e dos Bancos Centrais e dos Estados americanos e europeus. A China – desde muito tempo, e por ser uma economia capitalista de Estado – tem uma política unitária estatal que se expressa inequivocamente numa política cambial controlada. Tal passe de mágica veio de uma decisão de governo e de uma operação fantástica: grudou o yuan no dólar. E já faz tempo. O que significa que qualquer movimento no valor do padrão americano, o Estado chinês reajusta o valor da sua moeda. Então, a perversidade se amplia (o que dá efeito também no Brasil, alterando a competitividade produtiva da indústria nacional e desindustrializando setores). O que acontece na presente cena monetária mundial é de uma intensidade dupla. Num dos cantos do palco, a oposição competitiva entre dólar e euro, e no outro, a China, olhando o conflito e rindo de camarote, para ajustar simplesmente a sua moeda, acompanhando o movimento depreciativo.
É a guerra cambial que Mantega vem falando e denunciando. Na verdade, há uma relação de cumplicidade de banqueiros e de políticos para salvar os bancos e a economia do eixo americano-europeu, com a China não querendo perder o passo. E essa guerra cambial, traz a tentativa de dinamizar a esfera produtiva do eixo americano sob a forma de desvalorização competitiva das moedas. Ou seja, dá um efeito também na órbita da produção pelos caminhos do comércio externo, as exportações saem mais fáceis e as importações ficam mais difíceis. É o que acontece inversamente com o Brasil: para nós, exportar fica mais árduo e importar mais cômodo. Então, a questão se faz: Dilma não tem razão em dizer que isto equivale a barreiras aduaneiras, postas pelas economias mais desenvolvidas?
NOVA PERGUNTA INQUIETANTE. HAVERÁ RESPOSTA?
E, caro leitor, medite e responda: a abundância de liquidez e a depreciação forçada das moedas é um livre mercado? Trata-se de um livre comércio?
(TERCEIRO PARÊNTESE – Não será por essa razão que a China está provocando uma diminuição do seu comércio externo pela desaceleração da sua economia? Essa é uma pergunta. Mas, também, uma hipótese. Porque neste ponto, mantida a ordem competitiva atual, e sem mudanças de estratégia, países como o Brasil, só podem trabalhar com políticas defensivas, como medidas fiscais do tipo IOF nos empréstimos internacionais, como decisões pontuais sobre a indústria a partir do Plano Brasil Maior. Se o Brasil alterasse a sua política e introduzisse controle cambial e controle do fluxo de capitais, qual seria a sua atitude? É possível no estágio das relações de forças no país, tentar uma alteração como essa?)
UM GRITO PARADO NO AR
Pelo que expomos, vemos que Dilma tem toda a razão de reclamar. Antes de tudo, por causa de uma opção política unilateral. Essa se expressa claramente nas políticas econômica, financeira, cambial, etc., adotada pelos Estados avançados. Ao contrário de tentar salvar a economia, fazendo investimentos, aumentando o emprego, salvam exclusivamente os bancos, endividam e engessam os próprios Estados. E asseguram a manutenção da especulação em escala mundial e, com a desvalorização de suas moedas, tentam empurrar suas mercadorias e encarecer as dos países concorrentes. Logo, uma política financeira, recessiva e protecionista. Uma política antidesenvolvimento, uma política pró-manutenção da especulação e pró-financeira. E na rabeira, por efeito derivado, uma abertura para uma ação mercantil de devastação da indústria dos outros países. É uma política de articulação de uma nova ordem mundial? Ou é a velha política darwiniana de liquidar os adversários empresariais e estatais? Ou as duas?
O que se pode constatar é que, se o Ocidente desenvolve uma política agressiva e demolidora, haverá fatalmente um caminho protecionista. Dilma estará pensando em outra coisa, quando diz: o Brasil vai se proteger. Pergunta: Vão começar movimentos protecionistas globais? E a crise atual que tem um conteúdo recessivo se encaminhará, então, para um rumo depressivo? A chegada a um novo porto, a um novo padrão de acumulação, ocorrerá quando o ciclo capitalista superar a recessão atual? Ou forçosamente haverá uma depressão?
E embaixo de um certo mau tempo, existem duas perguntas que muito nos interessam: e o Brasil, apesar de tudo, dará um salto econômico como ocorreu nos anos 1930 da última grande depressão? E para tal, precisará fazer o que?
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