quarta-feira, outubro 05, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
06 de outubro de 2011
Coluna das quintas

EUROPA: A ALEMANHA
ESTÁ JOGANDO DE MÃO
Por Enéas de Souza

A Europa está em chamas, mas os bombeiros neoliberais estão ali presentes, jogando água para amainar o fogo. E a coisa continua sendo política. Primeiro, não se acertam sobre a forma de solucionar a liderança política; segundo, não se acertam sobre o caminho a seguir; terceiro, não se acertam sobre as instituições a construir; quarto, não se acertam no modo de se relacionar com os demais países fora da comunidade; quinto, não se acertam para desenhar um papel geoeconômico e geopolítico na ordem mundial.

A questão européia continua um problema político, a começar pela liderança. De um modo geral, se pensa que há uma condução dividida entre a França e a Alemanha. E embora isso tenha sido uma realidade, penso que, neste momento, o tema se complica porque os resultados obtidos economicamente mostram um avanço da Alemanha sobre a França, situação bem visível na taxa de juros básica de empréstimos europeus, onde a taxa padrão é a cobrada para os empréstimos da Alemanha. Essa diferença se baseia num Estado altamente controlado em termos de déficit fiscal e dívida pública, numa indústria mais desenvolvida do que a francesa, numa situação privilegiada do comércio exterior, que é superavitário, numa situação bancária inquietante, mas muito menos vulnerável que a da França.

Isso permite pensar que a Alemanha tem um projeto de organização da Europa diferente daquele da França. E todo o seu lento movimento na questão européia serve de indicador para conjeturar como que ela pensa o destino do velho continente. Trata-se de uma tentativa de organização dos Estados da região a partir da sua concepção de nações disciplinadas fiscalmente e com controle rígido de gastos, com cortes de despesas estatais, se necessário, e com comando político para deter salários, buscando aumentar a produtividade empresarial. E a Alemanha tem jogado muito bem, no apoio às suas multinacionais e, principalmente, aos seus bancos, na expansão sobre o espaço da Comunidade, com inserção também no espaço americano. Na Europa, a Alemanha marca uma influência financeira em vários países e tem uma presença forte na orientação do Banco Central Europeu.

A Alemanha não pensa numa solidariedade política. Pensa numa Europa dos capitais, numa Europa onde a liberdade das finanças seja apoiada e organizada pelos Estados nacionais e pelo Banco Central Europeu. Ela não projeta, a meu ver, no momento, qualquer Estado da Comunidade Européia. Continua a pensar a Europa como um espaço de expansão dos capitais (alemães, em primeiro lugar, obviamente), sem controle supranacional. Por isso, reorganizar o equilíbrio fiscal dos países é decisivo. E o seu objetivo é, portanto, assumir claramente a liderança dessa Europa e, de maneira nenhuma, ficar voltada para a organização de uma Europa política. E nesse jogo, ela pensa, sem dúvida, no apoio francês, mas não num grau de paridade. Ou, pelo menos, não no projeto político e estratégico da França, seja da França direitista, seja da França de esquerda. De qualquer modo, os passos para a Europa que estamos falando, segundo a Alemanha, seguem firmes, barco velejando na direção de uma disciplina fiscal dos Estados e não na constituição de um Tesouro Europeu. E muito menos, no momento, num Estado único. A Alemanha vislumbra, não resta dúvida, um projeto de uma ordem econômica e política de Estados nacionais.

Claro, o fortalecimento do Banco Central Europeu é muito importante, por causa da necessidade de garantir a liquidez e, até mesmo, a solvabilidade dos bancos da região, como aconteceu na crise de 2007/2008. Os bancos alemães, aliás, foram os primeiros a serem salvos pelo BCE. E temos também o Fundo de Resgate, que se caracteriza pelo objetivo de amparar e salvar os bancos, sendo possível ser usado para solucionar alguma coisa ligada à dívida soberana dos países. Com isso pode, dado a modéstia de seus recursos – 440 bilhões de Euros – ainda em processo de aprovação, ser, quando muito, um aliviador quase efêmero das tensões do mercado financeiro. Mas, é óbvio, que ele não está apto para resolver as próprias dívidas soberanas, já que o Fundo não é um Banco de Resgate Europeu. Dentro do processo atual, admitindo uma crise intensa, a saída será sempre o Banco Central Europeu, que pode, por diversos mecanismos financeiros e, sobretudo, com sua articulação com os demais bancos europeus do mundo, alcançar uma espécie de japonização da Europa, amorcegando os títulos podres e tornando os bancos verdadeiros zumbis. É claro que ninguém quer essa solução, mas ela poderá ser empregada como uma tentativa de impedir a ruptura total, o que não quer dizer que, com isso, a economia escaparia facilmente da depressão. Escaparia, apenas, da quebradeira.

Já a estratégia dos capitais e do Estado francês é outra. O objetivo imediato é envolver a Alemanha numa parceria de poder, pois, para a França, é vital o domínio do Estado europeu; só através dele é que ela poderá conquistar um espaço que vem perdendo aceleradamente. Até mesmo o lançar-se na aventura guerreira da Líbia foi um reforço para sublinhar à Alemanha uma superioridade geopolítica particular, que a França tem e a Alemanha não tem. Mas, na França, a relação Estado/bancos é muito mais umbelical e a situação dos bancos franceses é desesperadoramente pior. É só ver a relação dos bancos a perigo. E só ver o que está acontecendo agora com o Dexia. Tudo isso afeta a força do próprio Estado. E existe, inclusive, o constante rumor da baixa de nota da França pelas agências de ratings. Portanto, a saída da França é desenvolver mais nitidamente o caráter estatal da União Européia. A própria esquerda, é o caso de Martine Aubry, tem procurado pensar num Banco Europeu, ao estilo do FMI, para resolver a questão dos Estados Nacionais. Portanto, a França busca uma saída, via Europa, via uma liderança da Europa política. Outro dia, Laurent Fabius, ex-ministro da Fazenda de Jospin, na TV-5, dizia que o grande problema da Europa é que não existe uma direção nítida para a sua construção. Claro, se referia, a meu ver, no fundo, à hesitação aparente da Alemanha em seguir o caminho do Estado europeu.

E então? Temos dois projetos antagônicos. A Alemanha procurando uma hegemonia via soluções nacionais no campo político e um ou mais órgãos de controle para ajudar a expansão dos capitais. Um projeto de Europa unida só lá diante, quando a Alemanha tiver um controle político e econômico mais claro, mais definitivo, quando ela liderar este conjunto de nações aferrado à austeridade, sem maiores aventuras. Por isso, seu projeto de poder é miúdo e pequeno, nacional, e, de mais longo prazo, quem sabe, europeu. A sua estratégia envolve um conserto da situação fiscal dos países e nenhum keynesianismo de prontidão. Gastar o mínimo possível. Mas traz embutido um projeto para o euro, o velho sonho de transformar o euro num marco ampliado, uma fortaleza, e, se possível, se transformar numa das moedas de reserva do mundo, na mesma proporção que o dólar e, quem sabe, o yuan. E de outro lado, temos a França com uma economia combalida, que constrói um projeto para reativar o seu poder via soluções européias. Ou seja, uma Europa para a França avançar. Ora, esses dois itinerários são antagônicos. E é dentro dessa rivalidade de estratégias que a questão vai seguir e, quem sabe, se solucionar.

Laurent Fabius dizia que, para ele, a Europa tinha que começar a se resolver com a Alemanha e a França se entendendo. E ele propunha principiar pela questão energética, na qual ambas estão com problemas. Depois, seria preciso fazer um processo de integração que agregasse, no primeiro momento, países mais ou menos no mesmo ritmo, para formar um núcleo consolidado diretivo, com a Holanda, por exemplo. E, numa segunda etapa, com a integração do resto dos países mais fragilizados. E num terceiro momento, e no futuro mais distante, incorporar outros países do tipo Turquia. O que importa dessas idéias de Fabius é perceber que o projeto da Alemanha é muito distante do que pensa a França e a França já está percebendo, e está tentando se adaptar. Tudo parece, no entretanto, que o sonho da Europa dos capitais é que terá a possibilidade de progredir e se expandir. Claro, claro, se a crise econômica permitir.

E agora, qual é a situação? Antes, de mais nada, é preciso que os Estados Unidos mantenham a crise no fogo lento. E parece possível, pois eles esperam o resultado da eleição de 2012. Há uma parada para acumular forças. Claro, que se os republicanos ganharem, o software neoliberal pode ser substituído por outro piorado. Mas, até lá, a Europa pode ganhar tempo. O problema será sempre o de assegurar, por mecanismos financeiros e/ou econômicos e/ou políticos, que o carro não caia no despenhadeiro, que não desabe ribanceira abaixo, que consiga dar uma estabilizada. As tarefas são claras. A Alemanha está jogando de mão. E então, o mais grave problema é a decisão sobre a Grécia. E aí a questão tem que ser iluminada. A Grécia não vai ter condição de pagar; será, no mínimo, forçoso reescalonar a dívida, salvar os bancos e, principalmente, se tiverem peito, dar a solução mais adequada: o perdão dessas dívidas envolvendo bancos e Estados.

Mas isso seria um formidável passo. Só que as finanças são um bando de investidores, de abutres, loucos para tirar o máximo de uns ou passar o mico para outros. Então, talvez seja preciso inventar um megaprocesso de incorporação dos títulos podres em alguma ou várias instituições estatais, para-estatais, européias e/ou internacionais. Mas a coisa também pode se conservar no interior do Banco Central Europeu, que irá congelando, por um tempo, os títulos podres, privados e públicos. Ou, quem sabe ainda, uma ampliação notória do Fundo de Resgate. Mas, seja como for, a Alemanha vai preparando o seu salto político, para absorver a liderança européia, deixando de lado o sonho de uma Europa grandiosa, poderosa política e economicamente, rival dos Estados Unidos e da China, mas consolidada em termos de orçamento, de déficit, de dívidas. E, portanto, uma Europa dos países e dos capitais, capaz de ter uma moeda forte, para dar uma expansão às empresas produtivas e financeiras alemãs e européias com segurança. Nada de audácias keynesianas. E, enquanto isso, prepara alianças internacionais fortes com os Estados Unidos, com a China e com a Rússia, para trabalhar uma Comunidade dos 27 à sua feição. Muito na lenta, muito na retranca, muito na austeridade, muito numa tentativa, em menor escala, de fazer de sua indústria e de seus bancos uma determinada liderança no continente e, se possível, no mundo. E, para isso, a Alemanha está disposta a pagar o que a França vale e não o que ela pede e diz que vale. Ângela Merkel não está dando moleza para o Sarkozy. E se tudo isso der no riscado, no longo prazo, quem sabe a Alemanha pense na construção da Europa do Estado Único, à sua moda?

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