quinta-feira, agosto 04, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
04 de agosto de 2011
Coluna das quintas

A DÍVIDA BANDIDA
Por Enéas de Souza

A crise americana tem que ser vista na articulação do curto com o longo prazo, tanto no campo geoeconômico quanto no plano geopolítico. O que faz com que a questão da dívida seja algo que tenha aspectos superficiais e imediatos, claro que importantes, mas que atravesse a lâmina da atualidade em direção à trajetória futura. De um modo geral, a História vai se fazendo sem que os atores tenham muita consciência do que estava e está acontecendo. A tensão midiática dos últimos dias foi talvez por temas menores, mais fáceis de serem consumidos pelo público, principalmente porque a mídia tem uma vocação melodramática - e subterraneamente cômica. No caso americano atual a épica foi descartada. Ninguém é um herói de algo que não existe: a epopéia da dívida. Sem maiores análises, a dívida traz personagens do mal, personagens do bem, vilões, farsantes e crápulas, samaritanos e vigaristas, bandidos e fanáticos. São tantas e tais personificações de realidades concretas que a crise pode terminar numa feira de seres exóticos. Mas, se a dívida em si, para quem estava em contato com a política e a economia, era um tema relativamente ridículo. para os Estados Unidos, no entanto, se vistos na correta perspectiva, a partir do longo prazo, ela poderá revelar algo. E é este algo que tentaremos ver.

A DANÇA DA DESORDEM DO CURTO PRAZO



1) Primeiro vejamos a questão do curto prazo. O que estava em jogo aqui era mais uma problemática política do que econômica. Para a economia americana, embora a dívida fosse alta, ela era manejável e os Estados Unidos não iriam entrar em default. O default veio pela questão do teto, que é uma questão política e econômica do Congresso, que estabelece, periodicamente, um limite para o país se endividar. Ou seja, economicamente a dívida não seria problema. E nem seria se, por acaso, ela aumentasse e crescesse e ampliasse, e se alargasse, os Estados Unidos não iriam sofrer qualquer problema na questão do crédito, na questão dos juros, na questão de prazos; as coisas correriam normalmente, se os republicanos não pusessem a sua garra política.



2) E olhado o panorama, visto de qualquer ponto, a gente podia constatar: o governo tinha boa postura, estava examinando cortes de gastos, mas também e principalmente aumento de impostos, num país de pouca carga fiscal, ao redor de 26%. Normalmente estava também cogitando, como todos os governos do mundo, da feitura de novos empréstimos. Claro, para um tomador com triple AAA, portanto com crédito lá em cima, pagador pontual, com uma moeda passando alguma dificuldade, mas uma moeda de alcance universal, a dívida não seria nenhum problema. Então, a crise econômica não dançou pelo lado econômico, encrespou-se pela face e atmosfera política. A intenção desastrosa de cortar gastos e manter o teto da dívida em rédea curta, oriunda do partido republicano – e da Tea Party, sua banda ultra-direitosa – vai trazer, querendo ou não querendo, repercussões econômicas. Porque com o resultado da votação e da birra política contra Obama, a posição majoritária negociada no Congresso carrega na ponta de seus votos uma contração econômica potencial. Os americanos e o mundo vão ver; logo, logo.



3) A questão foi uma questão política com uma forte tonalidade ideológica. E a questão política cozinhava um objetivo claro: fustigar e desgastar o presidente Obama. A derrota deste nas eleições parlamentares de novembro foi terrível, porque os republicanos alcançaram maioria na câmara dos deputados, e passaram, com certa raiva e fúria, a ameaçá-lo e mira-lo com um fuzil preciso: disparar contra sua re-eleição. Armava-se, então, nesta jogada da dívida, um ataque cerrado, buscando a paralisia do governo. Uma paralisia para liquidar com a imagem do presidente. E o lance do teto era uma meta para atingir o ponto de inversão da vitória de Obama nas eleições de 2008. E conseguir, com o desgaste do democrata, o retorno dos republicanos ao poder na eleição presidencial do ano que vem.



4) E como se deu o passa-pé político? Ora, após a explosão financeira de 2007/08, começando no termino do governo Bush e continuando no início da administração Obama, o Estado teve que se endividar, aumentando a mal falada dívida pública. Esta que agora estava na marca do penalty. A verdade é que Busch assoprou sem temores, na onda patriótica do 11 de setembro, a inflação da dívida, por causa da guerra do Iraque e do Afeganistão e do primeiro pacote da salvação dos bancos. E como um esperto da direita, para bloquear a crise econômica, fez uma manobra contundente, deu uma forte isenção de impostos, sobretudo para os ricos. Isenção que chega até o governo atual, afetando o lado da receita desde então. Por isso, Obama queria aumentar os tributos para recuperar a arrecadação perdida.



5) E por causa da incrível e da progressiva política de desregulamentação financeira - começada com Clinton e ampliada por Bush e encabeçada nos últimos tempos deste, pela política do Tesouro de Paulson – emergiu, com espalhafato, o grande escorregão das finanças. Dele, pelo risco sistêmico, eminente e iminente, saiu sem dor para elas, a participação do Estado na salvação das instituições financeiras. Tendo como nome mais expressivo o Lehman Brothers, a conta vazou para o governo Obama, que teve que praticar um segundo pacote, o segundo “bailouts” dos bancos. Eles receberam 1,75 tri de Bush; 1,75 tri de Obama. E note-se: com aprovação do Congresso. O mesmo que atira agora a pedra na vidraça da dívida.



6) Se a gente examinar quem fez a dívida do governo americano, os registros indicam: dos 14,3 trilhões a pagar, 6,1 são do governo Bush; 2,4 do Obama, e 5,2 das administrações anteriores a Bush (Clinton, Bush pai, Reagan e de administrações anteriores ao ator presidente). As perguntas geram as inquietações: não foi um pouco de safadeza política a jogada dos republicanos? Política é isso: era uma vez o Oeste?



7) Mostro esta moldura financeira para desenhar o rabo de foguete e o engarrafamento de fim de tarde que pegou Obama. E o resultado foi demolidor. Só que foi demolidor para todo mundo. Os republicanos viram a sua maioria se dividir (dêem uma olhada no quadro de votações), por causa de um grupo partidário rebelde e fanático como o Tea Party. Estes não trouxeram contribuição inovadora nenhuma, suas propostas eram fortemente neoliberais e reacionárias. As primeiras envolviam corte de gastos e bloqueio do aumento de impostos. E as reacionárias propunham: só gastar o que for arrecadado. O que é um absurdo ideológico na política econômica porque desconhece não só as funções do Estado como iguala do ponto de vista macro este a um indivíduo. Simplesmente ignorando que o primeiro não quebra e o segundo tem um limite de endividamento muito curto.



8) Ora, a questão da dívida foi um mel, foi um quindim, foi um molho de baunilha para os republicanos. Ganhavam apoio do público seja por causa da busca de cortes (“o governo gasta demais”), seja porque todo mundo paga imposto em excesso (ocultando que os ricos foram isentos pelo Bush) seja por causa da idéia maluca que as pessoas têm que a administração do governo é como a da sua casa. Olhemos, agora, um pouco para o montante adequado de uma dívida pública. A Comunidade Européia estabeleceu, no tratado de Maastrich, um limite razoável para o endividamento dos seus membros, algo em torno de 60% do PIB. Deve-se levar em conta que os Estados Unidos estavam próximos dos 100%. o que é um tanto alto. Só que para a maior potência do mundo é pouco. Não há quem não queira emprestar para eles. Vejam a China tem 1 trilhão e 300 bi de dólares aplicados em títulos do Tesouro americano. O Brasil tem 220. Todavia, a idéia de calote nunca esteve no horizonte do governo Obama. A má-fé dos republicanos jogou a víbora no pescoço dele.



9) Como disse: todos perderam. Os democratas tiveram uma derrota incrível, porque se partiram ao meio na Câmara dos Deputados, metade a favor, metade contra. A esquerda do partido se rebelou e pôs a nu a frágil liderança de Obama. Todo mundo está dizendo que ele perdeu. Mas, não sei não. Sim, sim, imediatamente, sim. Mas, Obama, que tinha sido eleito por uma massa de centro-esquerda, foi lentamente, dado uma Câmara profundamente adversa, e manobrada por lobbies financeiros e por republicanos de direita e de ultra-direita, escorregando exatamente para este lado, para a centro direita. E daí fica evidenciado o seu jogo. Ele funciona como Ulysses Guimarães funcionava no Brasil, sempre procurando o meio, sempre procurando o centro. Obama saiu da centro esquerda e deslizou para a centro direita. E tudo porque, a meu ver, há um cálculo político eleitoral. Ganhar o centro, embora perdendo a esquerda e conseguindo bloquear a ultra-direta do Tea Party, para nesta aposta, arriscada aposta, ganhar em 2012, mantendo inclusive um leve discurso à esquerda. Será isso?



O DILEMA DA TRAVESSIA AMERICANA



1) Mas, o que está em jogo, mais profundamente, nesta luta? Antes de qualquer coisa, aquilo que José Luís Fiori disse recentemente: o futuro dos Estados Unidos. E, a meu ver, estamos percebendo um bloco de poder se desmanchar na nossa frente. Um bloco neoliberal, que no limite, ainda está com poder e tenta manter os anéis, depois da saída de Bush, humilhado com o fracasso da guerra e da economia. Este grupo, que vai se derretendo, constitui-se numa expressão política – não direta e mecanicamente, é claro - de um bloco econômico onde se aglutinaram indústria bélica, finanças, mídia conservadora, indústria de automóveis, construção civil ligada à guerra. Bloco que sustentava as instituições neoliberais (deregulamentação das finanças, saída do Estado da economia, agências estatais dirigidas pelos capitais, etc.) e a política da unilateralidade americana (baseada na luta contra o eixo do mal e da intervenção militar do império onde necessário fosse). Duas sementes que não dão mais as mesmas árvores.



2) Este bloco é que nem cachorro baleado; gane, gane, e tenta manter-se de pé. E o desespero contra Obama é porque este representou uma leve transição. Na verdade, um anúncio de uma transição. Pois para que ocorra uma transição efetiva é indispensável que haja uma nova configuração econômica e uma outra realidade política. E por incrível que pareça pode-se até vislumbrar a trajetória dessa passagem. Contudo, o leitor, sabe bem, quem está no poder; mesmo caindo resiste até as últimas balas, emprega os seus derradeiros punhais. O neoliberalismo está batendo pé: não quer que a sociedade se transforme, parece a Nora Ney cantando “Meu mundo caiu”. Por essa razão, segurando as entranhas em sangue, como um personagem patético, os Estados Unidos estão diante de um dilema: ou a próxima eleição será o momento da restauração neoliberal ou a passagem para um outro mundo começará a se fazer.



O FUTURO COMEÇA A ENSAIAR A SUA CENA



1) As tarefas dos Estados Unidos são árduas e inadiáveis. É preciso que tenham uma posição clara na geopolítica. Há todo um movimento de reformulação que está sendo feito e que envolve um reposicionamento com a Europa (e nela, com a Alemanha), uma reaproximação com a Rússia em busca de retomada de territórios e prestígio; uma tentativa de manutenção e reformulação do Oriente Médio; uma ação atrasada e meio precária para não perder a África, e uma busca de revisão com a América Latina, principalmente com o Brasil. O jogo maior e certeiro é para bloquear e cercar a China, que visivelmente está em tremendo avanço, e com uma substância altamente explosiva para o mundo neoliberal. Talvez a maior carta chinesa seja o Estado, Melhor: a forma como ele está organizado. Porque o Estado chinês tem o domínio da política, da produção, das finanças, do comércio externo, o que proporciona a possibilidade de focar a construção de um novo modelo de acumulação de capital centrado na produção e com apoio do sistema financeiro. A China tem, em desdobramento desta arquitetura econômica, um projeto de fazer da geopolítica mundial a construção de um duo entre ela e os Estados Unidos. E nesse momento, para agravar a crise deste último país, os asiáticos estão impondo o seu jogo aos adversários. Mas que ninguém se engane: toda esta crise americana é uma crise de transição do Ocidente para um novo processo de acumulação que passará das finanças para a produção. E embora a China progrida velozmente no plano produtivo, a liderança das altas tecnologias ainda permanecem com os americanos. Por isso, avaliando tudo, está tão difícil a transito, porque na terra de Tio Sam as finanças e o neoliberalismo resistem o que podem a qualquer alteração, política e economicamente.



2) Portanto, a crise do teto da dívida americana é um episódio de superfície, que indica a vinda de transformações profundas na sociedade planetária. Elas ocorrerão em todas as dimensões. Na política, na economia produtiva, na economia financeira, na disputa militar, na produção cultural, etc. O que indica que o neoliberalismo como expressão da hegemonia financeira-militar dos Estados Unidos, com a dupla ideológica “livre comércio e democracia” atravessam um estado de pneumonia aguda. Resiste fortemente às mudanças, pois são privilégios que saem em troca de privilégios que entram. Só que a força e a energia que estão sendo contidas pressionam, enquanto que as forças, outrora dominantes, se seguram como podem e procuram com a algazarra ideológica deter - para usar na política uma expressão que Schumpeter usou na economia – a destruição criadora que virá. E para o leitor e para o analista, a pergunta final: onde está a ênfase dos próximos tempos: na destruição ou na criação?

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