O acordo estabelecido no dia 21/07 entre os líderes europeus baseia-se em quatro pontos:
1) 1) a extensão do European Financial Stability Fund (EFSF), em tamanho e escopo (tornando-o o embrião de um Fundo Monetário Europeu capaz de tomar medidas preventivas em relação às dívidas soberanas e aos sistemas financeiros em risco), de modo a garantir as dívidas dos países europeus ameaçados de défault;
2) 2) a redução dos juros e alongamento dos prazos das dívidas de Irlanda, Portugal e Grécia, com comprometimentos diferentes entre esses países (maiores e mais claros em relação a Grécia; não tão explícitos em relação aos demais);
3) 3) o “convencimento” aos bancos privados em aceitarem uma perda em torno de 21% de seu engajamento em relação aos títulos gregos – e somente os gregos -, o que configura o já famoso “défault seletivo” a ser proclamado pelas agências de notação na próxima semana, com conseqüências sobre o mercado de Credit Default Swaps (CDS);
4) 4) criação de uma agência de rating européia que possibilite uma maior independência em relação ao julgamento promovido pelas agências tradicionais.
Há um enorme potencial para o aprofundamento institucional da União Europeia nas decisões tomadas na última quinta-feira. Esse pode ter sido o dia em que, finalmente, os europeus se deram conta de que o atual suporte institucional e orçamentário é estruturalmente deficiente. Há, nas medidas propostas, um cheiro de união fiscal e política, única forma de vencer a crise avançando em direção ao “projeto europeu” de unificação, esboçado após o final de II Guerra Mundial.
Afinal, as medidas aprovadas somente têm alguma probabilidade de sucesso em médio prazo com a institucionalização de um Tesouro Europeu que fará dos países hoje existentes entidades sem substância econômica e/ou capacidade política. E, em funcionando, um país vencedor, a Alemanha, que suportará a dor dos bail-outs necessários à consolidação fiscal dos países devedores, tal qual suportou os custos da sua própria unificação. E continuará tendo um mercado quase cativo nos agora disciplinados países “periféricos” da Europa Unificada, incapazes de disputarem politicamente o comando (ou as resistências) em face de seus “salvadores”. O que não foi obtido pelas armas pode ser possível obter pela via do “mercado”, num reflexo europeu de uma ditadura soft engenhosamente engendrada pelas finanças em nível mundial, com a submissão daqueles que se deixam capturar pelo jogo financeiro.
A “nova periferia” européia sobreviverá em uma institucionalidade (inclusive Espanha e Itália, obviamente) a ser construída em um momento em que seu peso político e seu potencial para se contrapor as decisões franco-alemãs será praticamente nulo. Mas, em vencendo a etapa inicial e os conflitos políticos internos, haverá uma Europa, uma política fiscal, monetária e externa européias, unificada; e um espaço a disputar no complicado jogo geo-econômico global da primeira metade do século XXI.
No entanto, nada indica que o caminho esboçado acima possa ser facilmente percorrido a partir de agora. A lista de percalços é longa, mas, para facilitar a compreensão, iniciemos por aqueles de caráter mais “conjuntural” (mas não menos decisivos para o desenlace do imbroglio):
1) 1) o timing para que uma decisão como a tomada nessa semana fosse indiscutivelmente efetiva pode ter passado. Esse é um problema recorrente desde o início da crise financeira mundial e que decorre, conforme inúmeras vezes argumentado nesse blog, de dois fatores complementares: de um lado, a incompreensão teórica quanto à gravidade e aos mecanismos que dão dinamismo à crise; de outro, a diferença no tempo de resposta aos acontecimentos da política e da “finança”. A finança propõe e a política reage. Inúmeras vezes, tanto no campo norte-americano quanto europeu (sem esquecer as instituições multilaterais como o FMI ou a BIS), ouvimos uma declaração que se repetiu na última quinta-feira: a de que era hora de passar à frente, de ter em mão instrumentos preventivos e ações conseqüentes engatilhadas face à dinâmica dos acontecimentos. Não há dúvida de que as decisões tomadas são uma tentativa de retomar a dianteira estratégica do Estado no jogo financeiro, mas terão elas a agilidade e o tamanho para uma resposta efetiva capaz de modificar o perigoso contágio em direção às dívidas espanhola e italiana já em curso?
2) 2) a incerteza quanto ao teor e a capacidade implementação, econômica e política, efetiva das medidas propostas. Nesse sentido, é emblemático que o teor efetivo do pacote de medidas a ser considerado pelo parlamento alemão somente venha a ser detalhado pela chanceler Angela Merkel no final de agosto. As decisões cruciais concernem não apenas o tamanho do EFSF (o qual, segundo várias estimativas, deveria ser ao menos triplicado para cerca de 1,2 trilhão de euros de modo a ganhar em efetividade) mas também os prazos (há uma proposição de dobrarem para quinze anos ao invés dos 7,5 anos atualmente vigentes) e as taxas de juros (possivelmente limitadas a 3,5% ao ano). Como efetivar essas medidas com a agilidade necessária dadas as questões políticas envolvidas, especialmente na Alemanha?;
3) 3) a extrema fragilidade do sistema financeiro privado, em particular na Itália e na Irlanda, coloca riscos de novas crises graves a serem resolvidas in extremis pelo Banco Central Europeu (BCE) a qualquer momento. Correm nesse final de semana rumores quanto ao défault dos bônus do Irish Bank, o último dos grandes bancos irlandeses ainda não nacionalizado, o qual teria proposto no início do mês de julho um desconto de 90% em sua dívida vincenda no valor de 2,6 bilhões de euros! Conforme a Reuters, a International Swaps and Derivatives Administration (ISDA) teria determinado o dia 28 de julho para a compensação dos CDS referentes ao credit event referente a Irish Bank, a qual seria nacionalizada em seguida. Sabemos que qualquer abalo maior na Irlanda repercute tanto na Inglaterra quanto nos EUA e, sintomaticamente, na semana passada os representantes do Irish Bank teriam feito o tour em Wall Street na busca desesperada por impedir o trágico desfecho. A história tem potencial e promete, caso se confirme, fortes emoções para a próxima semana. Na Itália, o Unicredit não sai das manchetes e já deu a clássica declaração pública de que “o banco se encontra suficientemente capitalizado” na semana passada... Nesse contexto, não é surpreendente que tenha havido insistência quanto ao fato de que o setor privado participaria “apenas no caso grego”, com a reestruturação “voluntária” da dívida soberana do país. Será factível e realista essa proposta?
Esses, dentre outros problemas, devem complicar bastante a efetividade da ambiciosa (porém tardia) proposta européia. Mas as questões estruturais envolvidas não são de menor monta, ao contrário. Para não me alongar muito nessa já imensa postagem cito:
1) 1) quem convencerá o povo alemão a pagar a conta das dívidas da periferia européia depois de toda a campanha midiática em contrário feita nos últimos anos?;
2) 2) quem convencerá os povos dos “novos países periféricos europeus” a consolidar e cristalizar essa condição em uma nova institucionalidade européia?;
3) 3) como garantir um mínimo de crescimento econômico no continente europeu,condição fundamental para o estancamento dos prejuízos financeiros, dados os planos de austeridade condicional que continuam a ser exigidos dos povos endividados?;
4) 4) como impedir o contágio recíproco entre União Europeia, Inglaterra e EUA, mantendo o livre fluxo de capitais?;
5) 5) como impedir um desastre no mercado de derivativos de crédito, dados os volumes envolvidos e o caráter sistêmico de suas relações financeiras complexas?
Volta-se ao início: os governos não entendem o que está em jogo, reagem tardiamente e com mecanismos inadequados ao estágio do problema. Como ensina François Chesnais, ao contrário de 1929, não podem e não desejam confrontar o poder financeiro. O fato de ainda estarmos lidando com um poderio financeiro praticamente intocado mostra que não existem forças nos Estados, no momento, para impedir um desfecho fatal. Essa segunda década do século XXI promete ser bastante agitada. O que o Estado não faz, o “mercado” desfaz, resultando em uma crise autofágica que somente pode nos remeter a Marx: “o limite do capital está no próprio capital”. Ou, reafirmando: “capital é crise”. O ambicioso pacote europeu parece pouco, muito pouco, face ao que está em jogo.
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