quinta-feira, junho 23, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
23 de junho de 2011
Coluna das quintas



A EUROPA
DOS CAPITAIS
E DO PODER
Por Enéas de Souza



A Europa, diz Hobsbawm, não vai se desintegrar. Talvez seja verdade. No entanto, vai sofrer como um ser que se debate para fugir do naufrágio e do afogamento. Vivemos uma chuva torrencial sobre a Europa do capital financeiro. Anteontem, o parlamento grego deu um voto de confiança ao primeiro ministro Papandreou e, no mesmo dia, tomou posse Teixeira Páscoaes no cargo de primeiro ministro da nação portuguesa. A crise se mexe. Os dois países estão entre o desastroso e o catastrófico, como resultado de terem escutado as sereias de uma ideologia e efetuado uma prática econômica vendida e orientada pelo neoliberalismo. É preciso perguntar: qual foi a estratégia que os europeus compraram para dar no que deu? A resposta é muito simples: o que eles compraram foi a estratégia básica das finanças, das finanças americanas e européias e que consistia em chamar o expandir da financeirização da Europa de modernização. Esse filme nós já vimos no Brasil, sob a presidência do sempre lembrado Fernando Henrique Cardoso, o popular FHC. Só que na Europa eles compraram uma idéia um tanto mais bonita, mais ornamentada, compraram a idéia de uma Europa da unidade, uma Europa do desenvolvimento, uma Europa da cultura e do poder.

COMO FOI A MODERNIZAÇÃO DAS FINANÇAS

1) Os capitais tinham um projeto e uma manobra inteligente. Era preciso fazer dos Estados Unidos e da Europa um jardim mais florido de novas mercadorias e de muitos títulos financeiros, que rendem dinheiro e maravilhas materiais. No continente europeu, se afigurava fazer um vasto mercado tanto quanto possível único. O sonho dos Estados Unidos da Europa. E não se pode esquecer que essa decisão estava situada dentro do processo de mundialização da economia, embasada em duas premissas: a expansão dos bancos, principalmente americanos, num mercado mundial financeiro, e na estrutura mundial da produção das grandes corporações. Essas duas características permitiram que o capital não só se tornasse internacionalizado, mas mundializado, o que consagrava um avanço na busca de sua valorização. E no barco do sonho da Europa dos capitais, com as finanças saudadas como ‘a maioral’, veio outro sonho, que galvanizou grande parte da população: a união da cultura. A Europa sonhou retomar o primeiro lugar do mundo. Trazer o que os Estados Unidos não tinham: este charme que atravessou a Idade Média, a Idade Moderna e chegou até a segunda guerra mundial. Hoje, os Estados Unidos, se a Europa desse certo, seriam apenas um intervalo no sucesso europeu. E essa idéia seria posta na vitrine de uma ampla renovação do continente. Isso era um sonho profundo dos europeus, incluindo os ingleses, só que esses sempre foram como uma noiva, cobiçada e em dúvida, tinha a mão para um namorado, os Estados Unidos, e os olhos para outro, o continente.

2) Mas o desejo da Europa dos capitais tinha outro componente. As finanças sonhavam longe, mas com restrição. Ambicionavam uma violenta mobilidade do fator capital – olhos gordos para ganhos imensos – e pensavam numa contenção da mobilidade do fator trabalho. Nessa, o ardil dos capitais era mais refinado e cruel, botava fogo na competição entre os trabalhadores, pois os emigrantes árabes, muçulmanos, asiáticos faziam presença para baixar o custo da mão de obra européia. Ou seja, houve um movimento de aceleração do poder de realização do capital. Para tal houve a combinação dos Estados Unidos e da Europa, algo que vinha na “contra-revolução neoliberal” liderada pelo cow-boy Reagan e por Lady Thatcher, a dama de ferro. Combinação nada romântica, tétrica, que, expandindo-se sob o guia americano para novas e novas áreas, adquiriu uma hegemonia decisiva e construiu o capitalismo dos últimos 30 anos. E com a mágica de que a História tinha terminado – na palavra do inolvidável Fukuyama – aconteceu a instalação do predomínio da órbita financeira, pintando, talvez à la Jacson Pollock, um novo colorido do capitalismo do pós-guerra, brindado no fim do século XX com a liquidação do outro sonho, o do comunismo soviético. A Europa dos capitais pegou, então, carona no capitalismo americano.

A EUROPA DAS FINANÇAS

1) Então, as finanças, espertamente, planejaram essa modernização, jogando na Europa o germe de uma cultura renovada. Todavia, no campo econômico o que aconteceu foi o seguinte: em primeiro lugar, os capitais de origem nacional, se permitiram ampliar o espaço da sua concorrência, criando um mercado europeu o mais amplo possível. Com isso, romperam a linha restrita das nações, mas sem o guarda chuva providencial, um Estado europeu. O que significa um projeto de avanço dos capitais. De fato, o que aconteceu foi um aumento do espaço para a competição entre as empresas produtivas e as instituições em geral. Era um passo adiante, não necessariamente para todos, porém certamente para aqueles da Inglaterra, da Alemanha e da França; a Espanha e a Itália entraram no baile a reboque, de smoking emprestado. E isso é fundamental para entender a crise européia. Esse avanço do capital não traz um Estado para a coordenação política e econômica, porque a essência da questão é a autonomia das finanças em relação aos controles públicos. E o espaço da disputa tornou-se uma arena sem regulação.

2) Por isso, os ingleses, querendo manter sua independência e sua privilegiada convivência com os Estados Unidos, aproveitaram o salão de festas, mas não participavam da comunidade. Portanto, a astúcia dos capitais foi manter a flexibilidade de sua ação, de um lado, garantindo a liberdade de expansão no terreno europeu (e também mundial) e, de outro lado, se não tinham a proteção de um Estado europeu, mantinham, para cada um dos capitais, o apoio de seu Estado Nacional. O capital é um bicho frágil, sempre um arbusto que está em busca de ser árvore, e que depende do Estado, como se pode ver neste atual momento. O Estado alemão, o Estado francês, etc., estão tentando dar guarida ao seu capital bancário, ameaçado de insolvência nos mares gregos e na borda de Europa, nas terras portuguesas. É assim também agora, como, aliás, foi assim igualmente na crise de 2007/08. Daí o aforismo: o Estado que, no momento da expansão é posto de lado, é o mesmo que, na hora da crise, salva.

3) A Europa das finanças armou uma institucionalidade à sua feição. Como é que foi o esquema? Após eliminarem o estorvo de um Estado para a Europa, o objetivo era dar impulso a uma dinâmica que assegurasse o processo de predomínio da valorização do financeiro, estabelecendo uma moeda unitária – o euro – e oferecendo a possibilidade de fixar uma taxa de juros básica no nível europeu. Algo muito confortável às finanças da velha Europa. E o problema importante, para a competição das finanças européias, era sempre ter um juro acima dos Estados Unidos. A Europa para os capitais europeus. E aí surgiu o Banco Central Europeu, que, além de garantir o controle da moeda, teve uma tarefa notoriamente decisiva: fixar o juro adequado para o dinamismo do continente. Dinamismo das finanças européias, é claro, antes de tudo. E nessa base, tivemos a finura e a fraqueza dessa economia. Para começar, uma arma poderosa, uma moeda e a uniformização da taxa básica de juros. Para completar, o Tesouro de cada nação sustentava a função de reserva de valor do padrão monetário e assegurava o endividamento dos Estados individualmente. Ou seja, a moeda era européia, mas os títulos públicos de cada país. Uma bomba que, na crise financeira do pós 2007/2008, caiu no colo de Portugal, da Grécia, da Irlanda

4) Ora, não havendo Estado europeu, as dívidas nacionais e as finanças públicas dos Estados ficavam sob controle nacional, fora da alçada direta do controle da Europa, porque a Europa era e é uma união sem cabeça, não tinha e não tem Estado. É verdade que a União Européia fixou um déficit fiscal de 3% do PIB para cada país, de tal maneira que dava a ilusão de uma vigilância mínima. Na crise de 2007/08 já se viu a carência da falta de um Estado único. E agora, no prosseguimento, as crises que estalaram, puseram em cheque todo o continente e, por extensão, até os Estados Unidos. Daí a preocupação de Thymoty Geithner com a evolução do drama. Todo o engenho do roteirista é evitar que se chegue às cenas do clímax. Assim, o crescimento da Europa dos capitais está detonando o avanço da Europa das nações. Os Estados vão sempre puxados pela locomotiva do capital, para o céu ou para o inferno, já que o Capital tem a alma geminada, é servo de Deus e do Diabo. E agora está com o demônio no corpo!

A CRISE ENROLA ESTADOS E BANCOS NA MESMA
JOGADA

Então, a perfídia. A orgia financeira foi intensa, porque a especulação financeira que trouxe a crise de 2007/08 provocou a necessidade de, em primeiro lugar, salvar os bancos e, em segundo, salvar alguns Estados com dívidas hiperbólicas. Isso quer dizer que, para preservar os bancos, os Estados tiveram que pôr os seus recursos e, todavia, Estados menores, muitos, tiveram que se endividar com bancos mais poderosos de outros países. Mas a cadeia não pára aí. Os bancos dos Estados maiores, já envolvidos nas absurdas curvas das rótulas financeiras, com quantidade de títulos podres nos seus balanços, acorriam com olho gordo, mas com a proteção dos Estados maiores, para aportar dinheiro a entidades financeiras desses Estados menores. Só que título podre é viral, força a contaminação de tudo e de todos. Daí há algo de podre na Dinamarca. Oh! Senhor, os anjos passaram de anjos do bem para anjos de cara suja. E tudo indica que se encaminham para morrer abraçados, bancos e Estados menores, bancos e Estados maiores. O circuito financeiro enlaçando Estados e capitais deixou de ser virtuoso, mergulhou na classe do vicioso. E sempre o mesmo equívoco: quando a economia cresce, tudo é possível de dar certo. Mas quando a crise desata o seu odor, ela afeta, abala, tortura, desampara e se esparrama por toda parte. E, no sistema capitalista, o centro é a concorrência dos Estados e a concorrência dos capitais. Então, nesse momento, estamos num processo de feroz adversidade de todos contra todos, capitais e Estados. O terror chama-se “salve-se quem puder”. E o pior é que se fugirem o bicho pega, se ficarem o bicho come. Nhact!

AS DIMENSÕES DA CRISE

1) Mas a crise dos capitais e dos Estados mostra um nível da questão. Mas há outro, a realidade da mão de obra. E aí a coisa está explodindo, feia, abrupta, uma faca cortando a vida, os salários, os direitos, os serviços sociais dos trabalhadores e dos desempregados. Tão querendo pô-los como o bode expiatório da questão. “Toma que a crise é tua”, essa crise deformada e retorcida. Pois é o movimento que os capitais e os governos solidários com esses, impõe: quem paga a conta é quem tem menos. Ou seja, a financeirização é um revolver engatilhado, um 38 na cara da população. Vejam-se os movimentos de rua na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na França, etc. Uma inquietação sacode a Europa. Até agora é um tapa, daqui a pouco será uma surra, mais adiante o 38 vai disparar. Porque uma crise financeira e uma crise fiscal conjugadas fazem desabar e desqualificam tanto capitais como Estados, mas demolem e destroem as perspectivas dos trabalhadores.

2) Está hoje em marcha, na Europa, um processo de desestruturação da economia. E, não há como negar, no atual jogo de forças, não se vê uma saída favorável à produção e ao emprego para que se possa aumentar a demanda visando criar lucros, e lucros chamando mais investimentos e mais empregos para proporcionar receitas para os Estados pagarem as suas dívidas. E com isso propor uma ascensão da economia. Essa não é, definitivamente, a solução dos credores, ou pagamentos imediatos ou saque dos Estados à beira da bancarrota. Daí a busca de emplacar uma política de eliminações de gastos, de redução de salários, de eliminação das aposentadorias e de aumento de impostos à população, de venda de empresas públicas e de paralisia das atividades econômicas. Esse conjunto de medidas, na verdade, não retoma a atividade econômica, não é ajuda, é assalto. E depredação dos concorrentes, pois essas medidas levam a eliminação de capitais mais fracos. Trata-se de uma concorrência predadora. E leva a diminuição de poder de Estados. É seguramente um assalto ao patrimônio e aos recursos de um país e, consequentemente, mina e ameaça o poder público de outro Estado. Ou seja, a hierarquia das forças na Europa se modificaria em detrimento de Estados e nações, de capitais e de trabalhadores e da população de países como Portugal, Grécia, Irlanda, Islândia, Espanha, pelo menos. E mais, dependendo do poder dentro desses países, os perdedores ainda poderiam ceder muito mais. Dessa forma, olhando além das aparências, a gente vê que o neoliberalismo tem mostrado o que é: uma baita distribuição de riqueza e de poder para cima. Força-se o endividamento para tornar as empresas e os Estados prisioneiros econômicos e políticos.

3) Estamos, então, às vésperas de uma metamorfose das posições dos atores. Isto quer dizer que as crises são sempre um processo de concentração e centralização de capital e de concentração e centralização de poder dos Estados mais fortes. Enquanto isso ocorre, a população tenta reagir, tenta por nas ruas e nas praças a reclamação e o poder de aglutinação das massas. Tudo é muito difícil porque a oposição ao capital não tem nem uma ideologia que aponte para uma utopia à vista, nem para novas idéias que aglutinem o movimento de ocupação de um espaço político de poder. Estão todos contra as medidas tomadas, mas não tem uma ação forte e contundente, nem unitária e agressiva. E ser somente contra e não ter estratégia talvez não leve muito longe. Mesmo porque, o que a gente está vendo é que o desgosto da população está empurrando a política para a direita na maioria dos Estados. Todavia, só estar em movimento já modifica o quadro, principalmente porque a negação é o ponto de partida de uma resistência, de uma modificação, da criação de idéias, sentimentos e outras propostas para a condução do problema. Mas a lógica da transformação não derrotou a lógica da destruição.

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