02 de junho de 2011
Coluna das quintas
DILMA NA PASSAGEM
DE HAMLET À ANTIGONA
Por Enéas de Souza
1) O caso Palocci trouxe a evidência de algo novo, trouxe ao campo político a revelação de uma situação complexa e diferente. Até Dilma, todo presidente da República na redemocratização vinha de uma carreira política. Na verdade, um chefe de corrente política, mesmo que viesse de uma agremiação minoritária como Fernando Collor. E Collor tinha um bom itinerário político. Não é que Dilma não seja política, mostrou esse traço na sua atividade de militância contra a ditadura, mostrou na sua presença no PDT e depois no PT. Mostraram também os seus múltiplos cargos: secretária municipal, secretária estadual, ministra de Estado. Todos esses aspectos fazem parte de um percurso na área, Dilma não é uma flor de estufa. O que é indispensável considerar é que a Dilma não era e nem é um chefe partidário. Nunca teve embates de prefeito ou governador, nem postulou nenhuma candidatura parlamentar. Jamais tinha concorrido a eleições majoritárias. Teve sim comando de área estatal: Fazenda, Energia, Casa Civil. Lógico que esses traços de atuação administrativa têm uma face política; configuram um dado importante e contribuem para o problema que ela está enfrentando – que está enfrentando e que terá de enfrentar decisivamente. Não há como negar, Dilma é uma personalidade política de alta envergadura, mas que fazia parte – e parte fundamental – da equipe do Lula. Não carrega, portanto, atrás de si um dossiê de liderança partidária. Dado o seu absoluto e invulgar talento de técnica-política na esfera da administração, culminou como um quadro de Joseph Beuys ou de Francis Bacon na primeira linha da sua arte; e foi guindada à postulação do cargo de presidente da República. Contra o experiente Serra, se saiu com rara felicidade. Um ano antes parecia aos tucanos e até aos petistas, sonho de uma noite de verão, impossível de acontecer. A derrota do aparente puro sangue paulista não parecia, àquela altura, fazer parte dos resultados do páreo.
2) Dilma experimentou as doçuras e as agruras da campanha presidencial. Depois de ter sido ajudada por Lula a ser conhecida pelo povo, jogou com firmeza, astúcia, independência e precisão na disputa com o PSDB. Só que, agora, no desempenho do governo, não tem na sua bolsa a experiência do árduo jogo do político profissional, cujo objetivo é a tomada do poder e desenvolvimento da sua liderança política e social. Pois decorridos cinco meses de seu mandato, Dilma está lançada diante dessa realidade febril, a sua inexperiência nas aventuras, ciladas, adesões, traições, chantagens e invenções da luta política. Exatamente por sua carência na arte do jogo das grandes figuras, das grandes raposas, dos cachorros grandes. E aí é que o lulismo e o dilmismo estão enfrentando uma potente adversidade. Um pouco como as pessoas têm de encarar o mundo quando um dia de sol se transforma em temporal. Há que fazer algo para não se molhar, para chegar ao seu objetivo, ao seu destino. Pois a verdade é essa: Dilma tem poder, a nação a respeita como presidenta legítima, contudo ela não tem experiência do jogo em pauta. Não tem um grupo político e social sob o seu inteiro comando. Fez e faz parte de um determinado setor partidário. Ganhou o bilhete aéreo para o confronto republicano, mas ainda não é a chefe de uma facção ou de uma corrente política. Herdou e ganhou o poder; não herdou nem ganhou um partido. Esse continua sob a direção de Lula. Sem dúvida, é uma segurança para ela. Lula, além de ter criado a sua candidatura, foi um dos maiores presidentes do Brasil, no nível de Vargas, no nível de Juscelino; o tempo dirá se maior, igual ou menor. Em todo o caso, Lula está junto deles – e dela. E eles, não se pode olvidar, foram gênios da política no Brasil. E todos foram inequivocamente chefes partidários e políticos. Com Dilma, a coisa é diferente. No momento, é uma seguidora de Lula, mas já está na pista de decolagem para transformar a verticalidade da sua própria figura nacional. E só vai aprender se ela se colocar na posição de piloto do avião.
3) Então fixamos bem esse ponto, o problema que Dilma tem é a falta de carreira política, de não ter sido chefe político. E isso se tornou palpável e visível, espelho aguçado, no começo da formação de seu governo, onde a figura da articulação política ficou com Antonio Palocci. E Palocci expandiu-se. Não só ia fazer a relação com o parlamento, mas trazia, entre as suas credenciais, uma de substancial importância: a ligação com os banqueiros e com setores empresariais. Além, é claro, de sua conjugação com Lula. Isso significou uma posição cartográfica de notável importância. Porque, com a sua entrada no governo, Dilma sofreu um deslizamento para a parte da liderança administrativa, embora mantendo as decisões da chefia do Executivo. O que acontece, leitor crítico, é que na formação do seu governo, acabou com um ministro da Casa Civil com poderes excessivamente ampliados. O que Temer queria, ficou com Palocci. E isso teve como consequência imediata uma parede e um bloqueio entre a presidenta e os parlamentares. É obvio que se torna indispensável ter uma certa proteção. E essa proteção não pode anular o caminho da necessidade de todas as formas de relação política: negociações, proposições, sedução do poder, convencimento de parlamentares, jogo de apoio social, cargos, cooptação, pressões, concessões, decisões, anulação de chantagens, manobras e falsas manobras, escuta de reivindicações de todos os matizes, encontros secretos, acordos políticos, etc. Mas, principalmente, a proteção não pode segurar o desenho e a construção de uma base política para uma estratégia de poder. E, no caso da presidenta do Brasil, o mais definitivo: a configuração de uma estratégia nacional. E Dilma, prazer e sofrimento, teria que executar essa estratégia num face a face, no dia a dia, ao que chamei, em outro artigo, da combinação da grande política com a pequena política. Os grandes projetos e o comércio das miudezas cotidianas. Mas, ousaria dizer mais, para o êxito de sua jornada há que ter uma audácia especial. O Brasil não pode ser pensado apenas como Brasil, tem que ser pensado dentro de um projeto de negociação para o mundo. É na trajetória do mundo que o Brasil vai se construir. É desse norte absoluto que Dilma pode encontrar um desempenho para a sua realização como presidenta. E ela tem tempo para esculpir uma bela carreira política.
4) Ao aceitar, optar e atribuir a Palocci como ministro da Casa Civil determinado tipo de coordenação, Dilma deixou aberta a possibilidade de que houvesse um curto-circuito na dimensão política da Presidência. Não que o seu poder fosse ferido. O que foi constrangido e diminuído foi o exercício do poder. Ou exercício do poder propriamente político. Ou mais precisamente, a concepção estratégica da presidência, com os desdobramentos pessoais, intransferíveis, do comando da negociação dessa articulação entre as duas variedades de políticas citadas acima: a grande e a pequena. O(A) presidente(a) é um imã, um diamante que organiza e responde a dança incontornável do baile e da festa dos atos políticos.
5) O caso Palocci, fora todo o problema ético – em processo de discussão e de confronto interno e externo ao governo – foi a cena de invulgar intensidade que exibiu a luz aguda da questão. A equação apresentava a seguinte forma: o comando político partidário com Lula, o poder de Estado com Dilma e o poder da gerência político parlamentar e empresarial com Palocci. Tudo o que um político abatido no governo anterior gostaria. Mas é regra na política: quem foi abatido – atenção, não quem perde uma batalha política – tem muita dificuldade de retornar ao poder. Veja-se o caso do próprio Collor. Pôde efetivamente recomeçar. Mas quem nessas condições reaparece, não tem o respeito efetivo dos confrades. Torna-se um alvo muito evidente. Suas vulnerabilidades ficam expostas com exuberância. É mais fácil de ser atingido. Os inimigos, os adversários e os participantes do fogo amigo sabem onde e como abalroá-lo. Palocci não teve sequer um semestre de folga, levou uma bala de calibre 38. E leve-se em conta que a oposição partidária está totalmente desarvorada.
6) Talvez Dilma ganhe um presente como Lula ganhou com a queda de Zé Dirceu. E mais, ela está aprendendo a desaprender. O que ela tem a desaprender é a sua extraordinária atuação como chefe da Casa Civil – onde foi o verdadeiro suporte da estratégia da política econômica e social do governo Lula. Frise-se, econômica e social! Seu caminho agora é um só: a dimensão política da presidência da República. Saindo ou não Palocci, o decisivo nesse caso para ela tem um conteúdo robusto: empunhar na sua mão todo o jogo da esgrima presidencial. O que não exclui a delegação de coordenações políticas de ordens maiores ou menores subordinadas e controladas por ela. O estouro do caso Palocci, o esfalfamento da votação do Código Florestal, o barulho da crise com o PMDB aportou à consciência da presidenta a necessidade de resolver o tema do poder e de seu exercício de maneira distinta, construindo agora um novo processo. Dilma está saindo para o mar revolto da disputa política. A lógica inexorável se impõe: não há boa presidência sem pleno mando do poder. Pois é com o pleno mando que o jogo estratégico se faz. E é com ele que se negocia interna e externamente as mais amplas latitudes dos conflitos políticos.
7) No entanto, para variar, a árvore da presidência tem sempre diversos ramos de problemas. No caso do atual governo, há que perceber que deve se abrir uma nova faceta política da relação Lula-Dilma, que foi absolutamente excepcional no governo Lula. E como eles têm uma relação singular, os ajustes não serão muito difíceis de fazer. Primeiro, há que ter clareza: o chefe político é Lula, o chefe do governo é Dilma. Segundo: é preciso se encaminhar para delinear com traços de finura um projeto político para o PT, um projeto político que envolva um projeto de nação. Isto quer dizer um projeto econômico, político e social dentro de uma nova etapa do capitalismo que está se formando. Um projeto de poder que inclua também a relação entre os dois personagens, onde Dilma não é mais a ministra de Estado apoiada pelo PT, onde ela é a presidenta da República e onde Lula é a maior figura do partido. É inevitável uma tomada de posição nessa questão. O momento é agora. Dilma, dada a sua fidelidade a Lula e dado o seu posto político, terá que ser a segunda personalidade política do PT e assumir a liderança do jogo político do Estado. Estamos numa nova etapa do poder, a construção do lulismo-dilmismo em termos políticos.
8) Quanto à questão ética do caso Palocci, não conheço suas particularidades, as informações são ainda escassas. De qualquer modo, para mim, respondendo de modo abstrato, a política não tem ética, o que não quer dizer que um político e um partido não devam tê-la. Só que o fato de eu ter ética e meu partido também, não significa que o outro tenha que ter a mesma postura. A política é permanentemente conflito e jogo de forças. É sempre duelo, divergência, combate. É óbvio que não fica excluído que um partido no poder coloque as suas forças na proposição de um jogo essencialmente ético. O que torna a ética um problema político e não a política um problema ético.
9) Também não se pode esquecer, ampliando para ver a moldura que envolve o atual quadro político do país, que a estratégia de longo prazo brasileira passa, neste momento, por problemas complexos internos e externos e que afetam o envolvimento de Dilma em toda a dimensão do seu poder. Externamente, uma conjuntura de crise e de transição da geopolítica e geoeconomia mundial com a progressiva configuração bipolar dos Estados Unidos e da China nos papéis principais da peça. E com a multipolaridade Brasil, Índia e Rússia e outros, presentes como coadjuvantes indisfarçáveis. Internamente, a galáxia da política profunda mudou, pelo menos nas cenas imediatas. Essa mudança está baseada no fortalecimento do capital bancário – dado o aporte de recursos financeiros aplicados no Brasil –, na divisão do capital produtivo em face do comércio de commodities e da concorrência chinesa no mercado mundial e latino-americano, na indispensável formulação de uma política industrial e tecnológica, na necessidade de consolidação da articulação capital industrial e trabalho, na necessidade de políticas econômicas e sociais favorecendo as camadas mais pobres da população, etc., etc. E o resultado da dialética dessas duas dimensões – externa e interna – atravessa os problemas do jogo político da presidenta. Por isso, se pode perceber a densa floresta de questões que Dilma tem que refletir para conectar a sua própria estratégia. E ela é totalmente hamletiana: ser ou não ser. Mas Dilma tem a energia de Antígona, vai se revirar e vai achá-la em si própria.
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