CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
27 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS
O ESTRANHO
27 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS
O ESTRANHO
DA CRISE:
DEZ SEGUNDOS
PARA O INFERNO
Por Enéas de Souza
DANÇANDO NAS NUVENS
Se a gente dá uma chegada na crise – porque para a maioria das pessoas a crise está muito longe, tão longe quanto qualquer boteco do outro lado da cidade, ou seja, quase noutro planeta – o negócio parece assustador. E naturalmente, muitas vezes chego a desconfiar das minhas análises. Não se trata de enxergar errado. Se trata de ver que as pessoas te olham como se fosse um ser do outro mundo. Mas, acho que, de fato, uma das funções dos economistas é pôr a estranheza no meio do cotidiano. Não é pôr o bode na sala, não. É fazer a pessoa achar que aquilo que ela pensa que é familiar, corriqueiro, tem uma baita coisa diferente. Freud falava muito bem sobre isso. Só que em termos de inconsciente. Não. O que quero dizer é um pouco outra coisa. Pensando bem, acho que vem do Freud mesmo. Lembra o leitor ocasional aquela história de quando o autor de “O mal-estar da cultura” estava numa estação ferroviária? E de repente, viu na janela do trem uma figura horrorosa, que achou medonha. Algo assim como: “que velho desagradável”. E mesmo quem não conhece a trama, já adivinhou: o velho medonho era ele mesmo, Freud. Pois, estou pensando nisso: a economia está como o cadáver de Polinices na peça Antígona de Sófocles: apodrecendo. E é isso que é o estranho, com o mundo saltitante, ao menos neste lado do Altântico. Vocês não lembram um seminário que a Globonews pretendeu fazer e que tinha no título a idéia de pós-crise? QUÁ, QUA, QUÁ, QUÁ. Todo mundo tem o direito de errar, mas pensar burramente é outra coisa. Daí a gente vê que os financistas, os políticos, os jornalistas, os economistas estão dançando nas nuvens, nem sabem a fera que está escondida na selva da crise.
DE COMO A POLÍTICA AMERICANA TRATA A CRISE FINANCEIRA
1) Olhe bem o leitor. A economia americana que estava saltitante e feliz como a banhista do quadro de Picasso, entrou em débâcle e encontrou a sua feiúra: quebra de bancos, gente perdendo muito dinheiro, diretores de instituições financeiras ganhando, por ano, o que eu, você e o Ronaldinho Gaúcho não ganhamos em cinco anos. E mais, e o principal: a produção despencando, o emprego sumindo, os emigrantes voltando. Uma economia financeira que manda no Estado, que diz via lobbies no Congresso o que ela quer. E o mundo para eles é o lugar da sua impávida arrogância: nós não vamos ceder em nada. Leiam os debates dos congressistas, leiam o noticiário sobre o assunto. Das finanças, temos que esperar a fome de lucros especulativos. E de outro lado, o Executivo, teoricamente com a liderança do processo querendo reorganizar a sociedade americana, mas alcançando resultados pífios. Parece que foi aceita apenas uma agência para defesa do contribuinte, um controle leve sobre esta medusa da agência de ratings, etc. Coisas mínimas. Pois, os pontos fundamentais – regulação, separação entre bancos comerciais e bancos de investimento, nível de capital para suportar os riscos, tratamento do “to big to fail”, agir em operações arriscadas com o seu próprio dinheiro, a eliminação desta dinamite que é o Credit Swaps Default, etc. – nada disso passou.
2) Acho que me excedi dizendo que os projetos não incidiram sobre a regulação. Sim, porque os congressistas – um bom número deles ligados às instituições financeiras – disseram: “Preferimos a regulação do que controlar o tamanho dos bancos”. Tradução: os acidentes de percurso do movimento do capital financeiro vão acontecer outra vez. É questão de tempo. (Basta ver que os comentaristas da crise grega e européia falam que muitos bancos americanos, por ligações misteriosas com os bancos europeus, estão “embuchados” – ou expostos, na linguagem financeira – com ativos gregos.) Em homenagem à Grécia, cutuco a minha lembrança de Heráclito, que começava um aforismo com estas palavras: “Este mundo, o mesmo para todos, é um fogo imensamente vivo, que se acende e se apaga com medida”. Talvez as finanças sejam estudiosas de grego...
O EURO NEM ERA UMA VERDADEIRA MOEDA
1) Passo para a Europa. Encaminho o leitor para o seguinte: vamos dar uma olhada na torção liberal e conservadora no modo como ela examina a questão. O que eles dizem é que os Estados – a Grécia, principalmente – foram desleixados, gastaram demais, etc. O caso pode começar a ser entendido com uma primeira pergunta: “O que é a Europa, hoje?” A Europa é, antes de mais nada, uma construção falha do capital financeiro. As finanças, inclusive européias, botaram na cabeça de alguns países que era legal fazer um Estados Unidos da Europa. E que o negócio devia dar partida com uma moeda única, o euro. Em tese, esta tese seria efetivamente uma boa idéia. Mas só se ela fosse acompanhada por uma construção política: união monetária, coordenação fiscal ou tesouro europeu e Estado da Europa. Pois é notório que não é uma moeda que sustenta uma comunidade, é uma comunidade que sustenta uma moeda. Mas, o que aconteceu foi outro filme: a lábia dos capitais e o olho dos políticos foram maior que a realidade. E o que tivemos: apenas a superfície, apenas a casca de uma comunidade. Na verdade, nem uma moeda mesmo foi construída.
2) Então, vejamos: se uma moeda tem três funções – meio de troca, medida de valores e reserva de valor – o euro só cumpria duas. Porque como já falamos insistentemente em nossos trabalhos, para que uma moeda possa ser uma moeda moderna – uma moeda financeira – ela tem que estar sustentada, tanto por um Banco Central, que define a taxa básica de juros e a sua valorização, como por um Tesouro, que garante esta valorização por intermédio dos títulos deste Tesouro, assegurando com essa estrutura estatal a função de reserva de valor. Assim se enxerga com clareza, econômica e politicamente, a necessidade que a Europa para ser um Estados Unidos da Europa tinha que ser uma UNIÃO POLÍTICA!
DE COMO AS FINANÇAS QUISERAM MANDAR NA EUROPA
1) A Europa era então apenas uma “união monetária” e cada Estado, que não dominava a moeda, tinha que garanti-la com o seu Tesouro. Então, a moeda européia tinha uma taxa de juros definida pelo Banco Central Europeu e muitos “tesourinhos”, cada um na sua fragilidade, “garantindo” a moeda única. E nessa estrutura, os bancos emprestavam para os Estados sem controle nenhum. E os Estados menos favorecidos, tendo perdido o controle da economia, tentavam compensar a perda de instrumentos, como consequência desse arranjo monetário, através de um endividamento que garantia sob forma de gastos seja o crescimento seja o emprego.
2) Contudo, a última perfídia das finanças foi sustentar a idéia de que foram os Estados que quebraram. Quando em verdade, os Estados estão quebrando porque eles estão salvando os bancos. Pois quem o pacote europeu está tirando do buraco, de fato, são os bancos. E por quê? Porque estes bancos não têm capital para sustentar, como todo bom banco, uma proposta de reestruturação das dívidas destes países. Forçaram o endividamento e a especulação sabendo que, no limite, as dívidas passariam dos Estados menores para o “bailout” da Europa. Assim, a Alemanha, a durona, teve que entrar na questão porque os seus bancos estavam metidos no buraco e poderiam quebrar. A loura germânica foi saindo como severa, mas bem que escondia a capa protetora.
Entre parêntese: o ministro Schäulbe, ministro das finanças da Alemanha, está propondo regulamentação e uma taxa para as finanças. Mas, “was ist dass?” Uma manobra para esconder a salvação escandalosa de bancos europeus e americanos. Sabe-se que o Morgan Chase e o Citicorp tinham expressivas aplicações no “affair europeu”. Portanto, o “Expresso Berlim”, como diria Jacques Tourneur, se parar para investigações vai verificar que desta ferida pode exalar ainda muito pus. Só que dada a velocidade dos acontecimentos europeus, o temor é outro, muito mais grave. No seu último livro, “Humilhação”, Philip Roth inicia seu romance com o capítulo “Sem deixar vestígio” da seguinte maneira: “Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. (...)”. O escritor está falando sobre um ator de teatro, mas faço uma pergunta: o autor americano não poderia estar narrando sobre outro personagem? Sim, sobre um outro personagem chamado capital financeiro? Poderia ou não poderia? Só que o título do capítulo não deveria ser “Sem deixar vestígio”, porque, mesmo sem ainda ter estourado, a bomba de retardamento está visivelmente a ponto de explodir, deixando as pessoas sem emprego e outras com salários reduzidos. Tinha um filme de Samuel Fuller com um título expressivo: “Ten seconds to Hell” (“Dez segundos para o Inferno”), contando a história dos caras que desmanchavam bombas na Berlim da 2ª Guerra Mundial. Como em “Guerra ao Terror” da Kathryn Bigelow. A turma das decisões econômicas e políticas continua decidindo como se Keynes nunca tivesse existido.
OS SINOS DOBRAM PELAS FINANÇAS?
Assim, a crise financeira não terminou nos Estados Unidos. E prossegue e desaba na Europa. E faltam medidas de todas as ordens, sobretudo, tratando de regulação, nova estrutura financeira, separação de instituições, níveis de capital, crédito para produção e não para a especulação – e, portanto, a metamorfose de uma economia de acumulação de capital fictício para uma economia de acumulação produtiva. Nesse barco faltam a transformação da liderança tecnológica, a construção da liderança de indústrias com novas tecnologias, a transformação da base energética, a criação de indústrias vinculadas ao meio ambiente, etc. Falta a construção de um novo Estado não submetido às finanças. Na Europa falta um Estado europeu, um Estado para todos e não um Estado para o Capital. Ou seja, o importante é distinguir que a trajetória da nova economia começa por interromper a fatalidade das finanças. Pois, o excesso financeiro – hybris, como diria a cultura da Grécia antiga – caminha com velocidade de míssil na rota da depressão. Ou seja, parece que a política não está conseguindo – está impedindo até – que a economia canalize o seu desastre cíclico para uma distinta e diferente economia. Tudo porque a cristandade das finanças quer que a sua hegemonia seja respeitada. Só que ela é uma hegemonia cega, bêbada e corrompida. E o destino de quem não enxerga é aquele de esbarrar contra qualquer obstáculo que leva a uma perturbada e fulminante contusão. Para mim, fica cada vez mais claro que a proposta de Keynes da “eutanásia do rentista” vai ser substituída por uma realidade mais explosiva: a autodestruição das finanças. E sob o som e a fúria, sob o signo de Escorpião ou sob o olho de Marte, mesmo na possibilidade de todos contra todos, um novo Estado vai surgir. Temos que lutar mais do que nunca pela sua democracia.
DANÇANDO NAS NUVENS
Se a gente dá uma chegada na crise – porque para a maioria das pessoas a crise está muito longe, tão longe quanto qualquer boteco do outro lado da cidade, ou seja, quase noutro planeta – o negócio parece assustador. E naturalmente, muitas vezes chego a desconfiar das minhas análises. Não se trata de enxergar errado. Se trata de ver que as pessoas te olham como se fosse um ser do outro mundo. Mas, acho que, de fato, uma das funções dos economistas é pôr a estranheza no meio do cotidiano. Não é pôr o bode na sala, não. É fazer a pessoa achar que aquilo que ela pensa que é familiar, corriqueiro, tem uma baita coisa diferente. Freud falava muito bem sobre isso. Só que em termos de inconsciente. Não. O que quero dizer é um pouco outra coisa. Pensando bem, acho que vem do Freud mesmo. Lembra o leitor ocasional aquela história de quando o autor de “O mal-estar da cultura” estava numa estação ferroviária? E de repente, viu na janela do trem uma figura horrorosa, que achou medonha. Algo assim como: “que velho desagradável”. E mesmo quem não conhece a trama, já adivinhou: o velho medonho era ele mesmo, Freud. Pois, estou pensando nisso: a economia está como o cadáver de Polinices na peça Antígona de Sófocles: apodrecendo. E é isso que é o estranho, com o mundo saltitante, ao menos neste lado do Altântico. Vocês não lembram um seminário que a Globonews pretendeu fazer e que tinha no título a idéia de pós-crise? QUÁ, QUA, QUÁ, QUÁ. Todo mundo tem o direito de errar, mas pensar burramente é outra coisa. Daí a gente vê que os financistas, os políticos, os jornalistas, os economistas estão dançando nas nuvens, nem sabem a fera que está escondida na selva da crise.
DE COMO A POLÍTICA AMERICANA TRATA A CRISE FINANCEIRA
1) Olhe bem o leitor. A economia americana que estava saltitante e feliz como a banhista do quadro de Picasso, entrou em débâcle e encontrou a sua feiúra: quebra de bancos, gente perdendo muito dinheiro, diretores de instituições financeiras ganhando, por ano, o que eu, você e o Ronaldinho Gaúcho não ganhamos em cinco anos. E mais, e o principal: a produção despencando, o emprego sumindo, os emigrantes voltando. Uma economia financeira que manda no Estado, que diz via lobbies no Congresso o que ela quer. E o mundo para eles é o lugar da sua impávida arrogância: nós não vamos ceder em nada. Leiam os debates dos congressistas, leiam o noticiário sobre o assunto. Das finanças, temos que esperar a fome de lucros especulativos. E de outro lado, o Executivo, teoricamente com a liderança do processo querendo reorganizar a sociedade americana, mas alcançando resultados pífios. Parece que foi aceita apenas uma agência para defesa do contribuinte, um controle leve sobre esta medusa da agência de ratings, etc. Coisas mínimas. Pois, os pontos fundamentais – regulação, separação entre bancos comerciais e bancos de investimento, nível de capital para suportar os riscos, tratamento do “to big to fail”, agir em operações arriscadas com o seu próprio dinheiro, a eliminação desta dinamite que é o Credit Swaps Default, etc. – nada disso passou.
2) Acho que me excedi dizendo que os projetos não incidiram sobre a regulação. Sim, porque os congressistas – um bom número deles ligados às instituições financeiras – disseram: “Preferimos a regulação do que controlar o tamanho dos bancos”. Tradução: os acidentes de percurso do movimento do capital financeiro vão acontecer outra vez. É questão de tempo. (Basta ver que os comentaristas da crise grega e européia falam que muitos bancos americanos, por ligações misteriosas com os bancos europeus, estão “embuchados” – ou expostos, na linguagem financeira – com ativos gregos.) Em homenagem à Grécia, cutuco a minha lembrança de Heráclito, que começava um aforismo com estas palavras: “Este mundo, o mesmo para todos, é um fogo imensamente vivo, que se acende e se apaga com medida”. Talvez as finanças sejam estudiosas de grego...
O EURO NEM ERA UMA VERDADEIRA MOEDA
1) Passo para a Europa. Encaminho o leitor para o seguinte: vamos dar uma olhada na torção liberal e conservadora no modo como ela examina a questão. O que eles dizem é que os Estados – a Grécia, principalmente – foram desleixados, gastaram demais, etc. O caso pode começar a ser entendido com uma primeira pergunta: “O que é a Europa, hoje?” A Europa é, antes de mais nada, uma construção falha do capital financeiro. As finanças, inclusive européias, botaram na cabeça de alguns países que era legal fazer um Estados Unidos da Europa. E que o negócio devia dar partida com uma moeda única, o euro. Em tese, esta tese seria efetivamente uma boa idéia. Mas só se ela fosse acompanhada por uma construção política: união monetária, coordenação fiscal ou tesouro europeu e Estado da Europa. Pois é notório que não é uma moeda que sustenta uma comunidade, é uma comunidade que sustenta uma moeda. Mas, o que aconteceu foi outro filme: a lábia dos capitais e o olho dos políticos foram maior que a realidade. E o que tivemos: apenas a superfície, apenas a casca de uma comunidade. Na verdade, nem uma moeda mesmo foi construída.
2) Então, vejamos: se uma moeda tem três funções – meio de troca, medida de valores e reserva de valor – o euro só cumpria duas. Porque como já falamos insistentemente em nossos trabalhos, para que uma moeda possa ser uma moeda moderna – uma moeda financeira – ela tem que estar sustentada, tanto por um Banco Central, que define a taxa básica de juros e a sua valorização, como por um Tesouro, que garante esta valorização por intermédio dos títulos deste Tesouro, assegurando com essa estrutura estatal a função de reserva de valor. Assim se enxerga com clareza, econômica e politicamente, a necessidade que a Europa para ser um Estados Unidos da Europa tinha que ser uma UNIÃO POLÍTICA!
DE COMO AS FINANÇAS QUISERAM MANDAR NA EUROPA
1) A Europa era então apenas uma “união monetária” e cada Estado, que não dominava a moeda, tinha que garanti-la com o seu Tesouro. Então, a moeda européia tinha uma taxa de juros definida pelo Banco Central Europeu e muitos “tesourinhos”, cada um na sua fragilidade, “garantindo” a moeda única. E nessa estrutura, os bancos emprestavam para os Estados sem controle nenhum. E os Estados menos favorecidos, tendo perdido o controle da economia, tentavam compensar a perda de instrumentos, como consequência desse arranjo monetário, através de um endividamento que garantia sob forma de gastos seja o crescimento seja o emprego.
2) Contudo, a última perfídia das finanças foi sustentar a idéia de que foram os Estados que quebraram. Quando em verdade, os Estados estão quebrando porque eles estão salvando os bancos. Pois quem o pacote europeu está tirando do buraco, de fato, são os bancos. E por quê? Porque estes bancos não têm capital para sustentar, como todo bom banco, uma proposta de reestruturação das dívidas destes países. Forçaram o endividamento e a especulação sabendo que, no limite, as dívidas passariam dos Estados menores para o “bailout” da Europa. Assim, a Alemanha, a durona, teve que entrar na questão porque os seus bancos estavam metidos no buraco e poderiam quebrar. A loura germânica foi saindo como severa, mas bem que escondia a capa protetora.
Entre parêntese: o ministro Schäulbe, ministro das finanças da Alemanha, está propondo regulamentação e uma taxa para as finanças. Mas, “was ist dass?” Uma manobra para esconder a salvação escandalosa de bancos europeus e americanos. Sabe-se que o Morgan Chase e o Citicorp tinham expressivas aplicações no “affair europeu”. Portanto, o “Expresso Berlim”, como diria Jacques Tourneur, se parar para investigações vai verificar que desta ferida pode exalar ainda muito pus. Só que dada a velocidade dos acontecimentos europeus, o temor é outro, muito mais grave. No seu último livro, “Humilhação”, Philip Roth inicia seu romance com o capítulo “Sem deixar vestígio” da seguinte maneira: “Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. (...)”. O escritor está falando sobre um ator de teatro, mas faço uma pergunta: o autor americano não poderia estar narrando sobre outro personagem? Sim, sobre um outro personagem chamado capital financeiro? Poderia ou não poderia? Só que o título do capítulo não deveria ser “Sem deixar vestígio”, porque, mesmo sem ainda ter estourado, a bomba de retardamento está visivelmente a ponto de explodir, deixando as pessoas sem emprego e outras com salários reduzidos. Tinha um filme de Samuel Fuller com um título expressivo: “Ten seconds to Hell” (“Dez segundos para o Inferno”), contando a história dos caras que desmanchavam bombas na Berlim da 2ª Guerra Mundial. Como em “Guerra ao Terror” da Kathryn Bigelow. A turma das decisões econômicas e políticas continua decidindo como se Keynes nunca tivesse existido.
OS SINOS DOBRAM PELAS FINANÇAS?
Assim, a crise financeira não terminou nos Estados Unidos. E prossegue e desaba na Europa. E faltam medidas de todas as ordens, sobretudo, tratando de regulação, nova estrutura financeira, separação de instituições, níveis de capital, crédito para produção e não para a especulação – e, portanto, a metamorfose de uma economia de acumulação de capital fictício para uma economia de acumulação produtiva. Nesse barco faltam a transformação da liderança tecnológica, a construção da liderança de indústrias com novas tecnologias, a transformação da base energética, a criação de indústrias vinculadas ao meio ambiente, etc. Falta a construção de um novo Estado não submetido às finanças. Na Europa falta um Estado europeu, um Estado para todos e não um Estado para o Capital. Ou seja, o importante é distinguir que a trajetória da nova economia começa por interromper a fatalidade das finanças. Pois, o excesso financeiro – hybris, como diria a cultura da Grécia antiga – caminha com velocidade de míssil na rota da depressão. Ou seja, parece que a política não está conseguindo – está impedindo até – que a economia canalize o seu desastre cíclico para uma distinta e diferente economia. Tudo porque a cristandade das finanças quer que a sua hegemonia seja respeitada. Só que ela é uma hegemonia cega, bêbada e corrompida. E o destino de quem não enxerga é aquele de esbarrar contra qualquer obstáculo que leva a uma perturbada e fulminante contusão. Para mim, fica cada vez mais claro que a proposta de Keynes da “eutanásia do rentista” vai ser substituída por uma realidade mais explosiva: a autodestruição das finanças. E sob o som e a fúria, sob o signo de Escorpião ou sob o olho de Marte, mesmo na possibilidade de todos contra todos, um novo Estado vai surgir. Temos que lutar mais do que nunca pela sua democracia.