quinta-feira, abril 19, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL


DILMA E LULA.
ESTRATÉGIA DO BRASIL
E A QUEDA DOS JUROS

Enéas de Souza
19 04 2012




1) Dilma tem a qualidade mineira e a qualidade gaúcha para a política. Como mineira, ela joga em silêncio, trazendo a arte de esculpir o ouro, porque de ouro, já se sabe, é o silêncio. Essa era a grande arte do PSD de Minas. E com uma longa vida no Rio Grande, tem a arte gaúcha de deixar o tempo passar e colher, no momento efetivo, o crescimento do rebanho e da terra. A grande arte que veio do velho Getúlio Vargas. E de ambas as heranças, Dilma recebeu a qualidade do lance exato, a audácia da hora do corte. Ela tem o senso daquilo que os gregos chamavam de kairós, o momento oportuno, que o PSD e o Getúlio tinham nos seus mais ambiciosos gestos. Mas Dilma traz também o pensamento treinado para compreender a sociedade e a economia na sua totalidade, uma totalidade que está em movimento, que muda com o processo dos atores e das estruturas.

2) E se você, leitor, que é um apaixonado de política, tem notado, tem discutido, tem apreciado, tem conjeturado o que está acontecendo no nosso país, você pode ver que há sempre na presidente a articulação da grande e da pequena política, dos lances fundamentais da estratégia aos pequenos problemas do dia a dia. A Dilma parece durona – e é; ela tem uma irritação bíblica ou divina. Tem. Mas, atrás da dureza, tem também o refinamento da elegância e o humor secreto da cortesia. Vide como ela tratou certos proprietários da mídia e o adversário FHC. Sim, porque a política não é guerra todos os minutos, nem fúria santa sem descanso; as pessoas têm também encontros de saber fazer e de viver em sociedade. O mau humor da Dilma se dá no operacional e quando há o mal feito ou a traição ou a falta de inteligência, mas a generosidade emerge quando brilha a confiança ou a realidade requer civilização.

O LANCE DA TOTALIDADE E O PRINCÍPIO DE NELSON RODRIGUES

1) O refinamento político de Dilma começa por definir que o líder político do Brasil é Lula, e que ela, Dilma, é a líder do governo, a chefe de Estado. E foi aí onde ela encontrou a sua ferida, porque o imprevisto, o acaso, o passa pé da vida, derrubou Lula, jogando-o, sem piedade, no canto do corner da luta política. E logo no começo de tudo. Ou seja, não apenas a liderança, mas o jogo político foi desfeito pelo assédio da doença. Dilma ficou sozinha. Sozinha, não nos conselhos, mas no trato dos negócios do governo. E foi aí que ela concentrou mais as suas forças para definir a energia, a aptidão, a capacidade de responder aos desafios da política mundial e brasileira.

2) Dilma olhou a totalidade em movimento, uma totalidade que, a cada momento, tem outro desenho e outra figura. E verificou que o país avançou muito. Lula colocou o Brasil prá cima, como um dos participantes do jogo político mundial, como um jogador médio, como um coadjuvante. Contudo insistente, ligeiramente insinuante e claramente vivo. Uma nação audaciosa – desde que deixou o princípio de Nelson Rodrigues de lado: o complexo de vira-lata, que Lula sempre tinha em mente. Dilma compreendeu que, no lance da totalidade, era possível organizar o Brasil, dar mais sentido ao projeto nacional.

DE ONDE SAI A CARTA DO FUTURO

1) Então, Dilma percebeu – já tinha percebido, fazia tempo – onde está o rastro da bruxa. E tira a carta do futuro. Há uma nova economia que está se fazendo no subterrâneo visível da presença das novas tecnologias. Elas vão constituir os pilares da arquitetura de um novo padrão, ou, como pensa a economista Carlota Pérez, de Sussex, uma mudança de paradigma, uma revolução tecnológica em andamento. Está se armando um novo padrão de acumulação. Na ponta dinâmica dele estão as altas tecnologias. Temos, então, uma nova organização que vem com as adventícias lideranças tecnológica e produtiva. E revolucionariamente, podemos salientar, farão a função de puxar o conjunto, numa nova ordem que reformula e reposiciona as antigas tecnologias líderes. Pois, foi isso que Dilma viu. E percebeu. E logo se deu conta que o setor energético é uma das joias raras do novo jardim. E ele está também conosco. A mineração e os produtos agrícolas batem estrada por nós. E, para a felicidade da ocasião, temos a Petrobrás, que é a multinacional do Estado brasileiro, que vai cumprir função na economia mundial e que pode encadear uma renovação da economia industrial do país.

2) Veja o leitor, falo em parêntese. Não se pode pensar numa economia industrial brasileira por setores, quando o que comanda o espaço econômico produtivo é a economia mundializada. O que é prioritário é a dinâmica planetária do capital. E dela provém os encadeamentos que os capitais exibem na sua cadeia produtiva. A renovação industrial vem daí. Portanto, não basta dar apoio simplesmente às empresas setoriais. O que não exclui a posição correta: um país só será soberano se tiver uma indústria forte. Mas, indústria forte não é apenas indústria apoiada pelo governo, mas também indústria que introduz tecnologia, inovação, competitividade, política adequada de salários, manejo adequado da sua tesouraria para competir no arco completo do capitalismo financeiro, etc., etc.

Então, a partir dessa visão do novo padrão de acumulação mundializado, Dilma e o Brasil equacionaram o bilhete de entrada do teatro econômico do século XXI. E por isso, o Brasil é tão respeitado. E foi Dilma, junto com Lula, que estabeleceram essa estratégia. E a eleição dela foi uma expressão dessa configuração

MUDA O CENÁRIO, MAS CONTINUA A LIDERANÇA

1) Lula tinha posto o Brasil no colégio dos líderes. Um político inventivo, alegre, sério, colorido na imaginação, ousado no gesto, deu a linha para os políticos do mundo. O estágio atual é, no nível mais profundo, fazer uma combinação política e econômica da classe financeira com operários, trabalhadores e miseráveis, passando pela atração, mesmo que momentânea, dos integrantes da área produtiva. Lula nunca teve a ilusão que os bancos iam salvar o mundo. Um pouco o que Obama acreditava, o que a Merkel praticava e que Sarkozy adorava. Só Jinbao sabia que mandava nos bancos. Mas, a China é outro papo. E Lula, na crise financeira, soube responder keynesianamente – o que eu chamei keynesianismo por dentro – para conter o grande impacto do desabar das finanças. Aliou-se à produção.

2) Quando Dilma chegou à presidência, o mundo estava em decomposição. Crise financeira americana se estendendo feito a Restinga da Marambaia, e a Europa na sua crise hamletiana: ser ou não ser. Primeira medida: não sair mais, como o Lula, pelo mundo afora. A cena tinha mudado. Lula tinha aproveitado sua hora, mas para Dilma esse momento tinha terminado. Dilma não poderia jogar pesado, porque o Brasil não tem bala para mandar no mundo. Mas, ela foi firme: falou dos problemas dos desenvolvidos face aos emergentes na China, na Alemanha e, agora, nos Estados Unidos – e ontem na visita da Hillary Clinton. Ou seja, o Brasil continua tendo liderança; no mínimo, voz.

DE ONDE SAIU O LANCE DO SEGUNDO PÓLO

Mas, houve um lance de Lula ainda pouco compreendido. O da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Há o lado esportivo, há o lado político. Os eventos da bola e dos esportes vão dar projeção ao Brasil, seja no acontecimento dos jogos, seja na promoção política do país. No entanto, tem o lado das fraudes, dos orçamentos, das vigarices que estão todo o tempo na mídia. Mas há também o lado macroeconômico. E é desse que quero escrever. Só que chamo a atenção para ser olhado pela lente da dinâmica industrial. Nesse quesito, Dilma vai consolidar um outro pólo no movimento do capital. Esse segundo pólo vai se dar em torno da construção civil, desde a infraestrutura logística à produção até a infraestrutura urbana. Coloca-se assim, junto com aquele que se organiza em torno da Petrobrás, um pólo que já estava em andamento com “Minha Casa, Minha Vida” e com obras do PAC. E, unindo todo esse conjunto de obras, temos a marca de uma segunda frente dinâmica da economia brasileira. Daí que o Brasil do futuro é este que começa aqui com energia e construção civil.

O QUE FALTA?

Falta todo um esforço para resolver os dois pontos da indústria, o mais avançado, as novas tecnologias de ponta, e o mais tradicional: calçados, móveis, têxteis. Aí temos, no primeiro aspecto, os mais variados incentivos: envio em massa de estudantes brasileiros ao exterior, pesquisa em conjunto com China e Estados Unidos, etc. E no segundo, a necessidade de fazer uma programação de medidas cambiais, fiscais, aduaneiras, tecnológicas, financeiras, etc., que venham a sustentar os ditos setores. O que a gente percebe aqui é uma questão de hierarquia. Primeiro, é aportar ou aterrissar no novo padrão; segundo, é reconstruir a infra-estrutura do país. E, seguindo nessa ordem, há que preparar e fazer o indispensável terceiro: desenvolver uma indústria forte nos mais diversos setores. Questão de estratégia e de recursos.

NADA ALÉM DE UMA ILUSÃO

O título do samba de Custódio Mesquita permite perceber que o que está em jogo é a reunificação do Estado. E Dilma está com muita dificuldade para trabalhar nessa operação. De um lado, o seu primeiro ponto foi exitoso: organizar, a partir da Presidência da República, tanto a unificação do Estado, quanto o planejamento da Economia.

A unificação do Estado é um processo longo. Porque, antes de mais nada, Dilma teve que partir da ideia de que tudo começa na Presidência da República. Ali se faz a concepção da estratégia nacional, ali se faz a reunificação do Estado, ali se faz a concepção e a unidade da política econômica. Uma espécie de 3 em 1. Isso significa a consciência de algo fundamental: o Estado brasileiro estava tão deteriorado pelo neoliberalismo anterior a Lula, que era preciso concentrar na Presidência da República, com a força das urnas e do poder político e econômico, a unidade do Estado Nacional, colocando ali não apenas o centro político como o centro econômico do país. E foi isso que permitiu que Dilma conservasse junto da Presidência, o Ministério da Fazenda, e incorporasse na sua atividade, o Banco Central, formando o núcleo desse poder político e econômico do governo.

COMO SUSTENTAR O ESTADO COM A GELÉIA POLÍTICA

1) Então Dilma, como qualquer artista, tenta construir o mundo. Fez, como falamos acima, a base do comando. Mas, para fazer o resto, vai precisar um monstruoso esforço. Tem que reconstruir a burocracia, tem que redefinir o Estado. O liberalismo trocou a velha postura – que era nacionalista – por uma alegre visão financeira. O que significou a dominância do Estado pelas finanças e, ao mesmo tempo, um movimento político agudo de esquartejamento do Estado, que acabou fragmentado e feito em pedaços. E aí o incrível: para recompor o que está destruído, impossível, porque os tempos são outros. Tem que refazer sim, mas construindo outra arquitetura. Há que fazer uma química entre o Estado e a formação de capital e as classes populares.

2) Mas, o que acontece é que o Brasil é um pais organizado para a política cotidiana, para a política do varejo. Um presidente para ser eleito tem que fazer uma concertação política. E na hora da vitória, todos querem, com justa razão, o seu naco de poder, a sua fatia de ação, o seu quintal de domínio. E vejam o que acontece: o Estado fragmentado é ocupado pela política de conciliação, onde cada um fica com o seu pedaço, com o seu terreiro. E tenta fazer, em muitos casos, a sua pequena política.

3) E como o Estado é fragmentado, ele não flui internamente, nem se aglutina de modo orgânico. A cabeça vai para um lado, o braço para outro, o tórax para um terceiro lugar e o corpo fica desconjuntado. Assim, os partidos ganham, de fato, territórios, que tratam de articular os grupos sociais a seu redor. A verdade é que o Estado fica, então, dividido, sem conexões profundas entre os ministérios, atuando isolada e atomicamente. E aí vem a ideologia neoliberal e os seus pequenos demiurgos, com suas ideias medíocres de concepções de gestão, eficiência, etc. Há que ter gestão sim, há que ter eficiência, também. Mas, dentro de uma visão estratégica, pronto para unificar e dinamizar e energizar e potencializar o Estado. A fragmentação retira a dinâmica da unidade, fratura o poder, abre o espaço estatal para a ocupação particular, e favorece a corrupção e a ausência de controle.

4) Pois, o fantástico de Dilma é isso: une o Estado no seu núcleo econômico e político, tenta esvaziar as ocupações sorrateiras, joga uma organização por fora da ordenação trivial, tenta desativar esse jogo de compensação de apoios políticos, com ministérios que sejam territórios que têm donos. É uma tentativa de sair de uma prática comum, jogando o jogo “o peixe morre pela boca”, para ver se o vaso do Ministério ou do órgão fechado quebra por si mesmo. E aí endurece a negociação. Há uma revolta de frações partidárias com a formulação e a prática dessa nova política, mas a população gosta, adere, apoia: mais de 70% de aceitação. Alguns baluartes caem. Mas a questão continua candente: a corrupção está acabando?

AGORA O LANCE DO MOMENTO

Desde os anos 90 que os bancos vêm, gostosamente, dominando ou balizando o comportamento, não só do Estado, mas sobretudo daquilo que os interessa: a política econômica. E, na política econômica, chegaram a fazer da política monetária, cambial, financeira e fiscal, o quarteto do apocalipse. Pois, exatamente, neste ponto se mostra a fina política da presidente. Ao mesmo tempo que começou o processo de reconstrução da unidade do Estado, esperou tempos e tempos até que o momento de ataque aos juros fosse propício. Num ambiente de crise econômica mundial e num momento estratégico de colher frutos, a Dilma junto com Mantega atacam de frente o setor bancário.

Primeira medida: tornar mais caro as alavancagens externas dos bancos. Segunda: trazer o Banco Central para a ação de desmontar as falsas teorias inflacionárias e diminuir os juros, além de fazer controles monetários convencionais. Terceira: combater de frente a ideologia, a teoria, e a prática dos bancos nos juros, trabalhando por taxas mais baixas. (“Por que os juros no Brasil são tão altos?”). Quarta: tomar a decisão de política econômica de intervenção dos bancos públicos no mercado financeiro para baixar, fortemente, as taxas dos diversos segmentos. Quinta, ter clareza que esse conjunto de atos faz parte do processo de desmontagem do modelo financeiro de acumulação de capital na direção da passagem para um modelo de acumulação produtiva. Sexta: atacar de frente, como presidente da República, o setor bancário, reclamando publicamente das altas taxas praticadas pelos bancos.

Dilma está avisando que o ponto de política econômica decisivo é o investimento e não a especulação financeira. Não é por nada que o FMI diz que o Brasil não precisa mais baixar a taxa de juros. Mas, o curioso que os bancos são como bêbados, diria Machado de Assis. Vão caindo para a direita; se sacodem à esquerda; vacilam na diagonal, para um e para outro lado; fazem curvas no espaço; tropeçam e quase caem quando avançam; e quando recuam, quase desmaiam de costas. Mas, continuam de pé. Gritam contra a inadimplência, contra os impostos e não sei o que mais. E continuam a dar 100% de lucro – que reaparece a cada novo ano e se distribui aos seus acionistas e gestores a todo ano velho.

Um banqueiro me disse há muito tempo atrás: você sabe qual é o melhor negócio do mundo? É um banco bem administrado. E qual é o segundo melhor negócio do mundo? Um banco mais ou menos bem administrado. E qual é o terceiro melhor negócio do mundo? É um banco mal administrado.

Como ri a juventude: eh eh eh eh...

Claro, a ação de Dilma está apoiada numa estratégia, na confiança da população e, na sua outra face, no seu capital político. Mas, não pensem que os bancos estão mortos. Vão reagir no combate do mercado, e, quem sabe, nas manobras silenciosas. Eles, como Dilma, também jogam em silêncio. Todavia, a estrutura do capitalismo se desloca, o investimento e a produção caminham para um protagonismo. Contudo, a economia não é uma reta, os caminhos são desnivelados e provocam solavancos.

Resta a pergunta essencial: continuará Dilma com intimidade do kairós, ou seja, agindo no momento oportuno?

Porque estratégia ela tem.



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