quinta-feira, fevereiro 09, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

FUTEBOL E AEROPORTOS.
A DECISÃO QUE INCOMODA.

Enéas de Souza
09 02 2012



Está me inquietando, e a muitos brasileiros, essa coisa dos aeroportos. Começo por tentar pôr em ordem os meus pensamentos. E, ao mesmo tempo, começo a fazer perguntas, que talvez não saiba responder.

Primeiro, sobre a posição de princípios. Para mim, o Estado é o elemento fundamental no processo político e econômico de uma nação democrática. Substancial na política, decisivo na estratégia, incisivo no projeto nacional e flexível nas táticas. Fica, nessa passagem, uma pergunta para o que estamos discutindo: e os aeroportos são ou não são estratégicos?

Segundo, a privatização. Pessoalmente, não sou um estatista rígido, acho que é possível privatizar, só que sou contra as privatizações de pontos estratégicos. Indagação evidente: os aeroportos não são estratégicos para o país?

Terceiro, o estado atual do Estado nacional. Na dinâmica brasileira, com o passado neoliberal de privatizações chamado de “Privataria tucana” por Amaury Ribeiro Jr., o Brasil de Lula e Dilma vinha retomando a unidade do Estado. A pergunta é: os leilões das concessões dos aeroportos interrompem esse processo?

DISTINÇÕES

Para começar, na questão em discussão, temos que distinguir: privatização e concessões. A concessão é uma privatização temporária, controlada (há que olhar os editais e os contratos!). A privatização é uma transferência de propriedade. A questão, portanto é o tempo, o tempo das concessões. Filosoficamente, já falei: sou contra a privatização de entes estratégicos. Mas não sou contra concessões, porque como dizia Ignácio Rangel, a economia avança ligando setores que têm recursos financeiros com setores carentes. E a pergunta sequencial é: tem o Estado esses recursos?

A primeira coisa que inquieta é como sabemos pouco dessas concessões. Não houve grandes debates, não se sabe bem o que estava em jogo, não se ouviu os prós e os contras. Só agora que estourou a decisão e que a TV trouxe à imagem as figuras dos leilões e dos vencedores é que começou verdadeiramente a discussão. A ave do questionamento voou tarde e não é, obviamente, uma ave da sabedoria. Então, por que o governo não forçou o debate? Por que a mídia só agora disparou manchetes? (E mesmo aqui, quando divulgou, o fez de forma parcial e enganosa. Vejam o título da noticia de um jornal: “Governo privatiza aeroportos e estrangeiros ganham leilões”. É esse parcialismo obscurantista que enche a paciência dos leitores). Por que as facções – e mesmo a oposição – não tratou de debater o tema?

A RECUPERAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

O Estado brasileiro – por uma hegemonia que articulou na profundidade da sociedade as finanças e as multinacionais produtivas com o setor bancário nacional e parte da indústria, comércio e agrobusiness brasileiro – impôs à nação uma política neoliberal, através da presidência de Fernando Henrique Cardoso, no final e na dobra do século passado. No entanto, na época de Lula, houve uma alteração na geologia social, uma alteração, que deu origem a um novo pacto concreto. Pacto entre as citadas forças acima com outra parte da indústria brasileira, aliada nesse momento as frações populares. Claro, isso permitiu uma política coerente para os trabalhadores, desde que o capital a juros – como fala François Chesnais – continuasse ganhando o que vinha ganhando. Foi essa a condição indispensável. E como ele ganhava muito no mercado financeiro, principalmente com a política de juros altos e com os títulos públicos que eram um dos elementos fundamentais desse processo, a aliança progrediu. E o governo pode fazer uma política coerente para o setor dos trabalhadores e dos miseráveis.

O quadro começou efetivamente a mudar com a crise financeira de 2007/08, que trouxe um declínio da hegemonia das finanças. Veio uma competição forte entre as instituições financeiras e a possibilidade ampla de uma inclinada aliança entre o capital produtivo e a população (trabalhadores urbanos, operários, desempregados, trabalhadores rurais, etc.). Isso se expressou na tentativa – no Brasil, pelo menos – de recuperação do Estado que tinha sido desmontado e destruído nas suas partes pela política governamental fernandina. E também dilapidado insidiosamente pelas privatizações. A chave do itinerário de retorno à presença do Estado, um pouco antes da crise, foi o PAC, concebido pela Dilma quando estava na Casa Civil. Houve aí dois pássaros de envergadura, dois gestos de metamorfose. No subsolo do PAC vinha a ideia de planejamento, e no anúncio dos investimentos do governo, a recuperação da Petrobrás para o núcleo estratégico do Estado.

Bem, a política econômica que Lula levou foi um longo processo de reativação social do Estado e da sua unidade, recuperando, em parte, a política monetária muito afetada pela política cambial, a política financeira (o indicativo expressivo é o movimento da taxa de juros brasileira) e a política fiscal, incluindo o controle do orçamento, do déficit e da dívida. E diga-se, que isso foi realizado num ambiente demoradamente neoliberal. Nessa paisagem econômica e política, é bom frisar, a questão do superávit fiscal é fundamental para manter uma segurança mínima do Estado em face dos possíveis ataques especulativos das finanças. Na verdade, o superávit fiscal, e mais a manutenção das reservas em dólares, faz parte da política de quem quer proteção e condição de ser minimamente autônomo, no mundo de hegemonia financeira e de política neoliberal vigente na mundialização.

DE LULA A DILMA

A decisão da Dilma sobre os aeroportos se dá dentro do processo de continuação do governo Lula. Antes de mais nada, Lula jogou, no cassino dos esportes, na dupla questão da Copa do Mundo e das Olimpíadas em função de alguns aspectos: 1) projeção do Brasil no mundo; 2) aprovação e orgulho nacional pela candidatura do Rio com um projeto de recuperação econômica e de prestígio da Cidade Maravilhosa (Inclui-se aí um subprojeto de deslocamento de São Paulo, enquanto lugar do tucanato); 3) afirmação ampla da popularidade de Lula, que culmina um processo de ter-se tornado o primeiro estadista do Ocidente em 2010. E por isso mesmo, um reforço na promoção da eleição da Dilma.

O ESPORTE COMO ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Colocado assim, conquistado assim, a questão passou a ser como administrar esse projeto. É preciso salientar que a candidatura brasileira para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas e a aprovação dessas propostas pelos respectivos comitês internacionais fizeram nosso país tornar-se parte desse pacote econômico mundial. Fez-se um laço com um tipo de capitalismo que passa pelos esportes, onde se aglutina um núcleo e um bloco de acumulação de capital (estádios, campos de treinamentos, acesso aos estádios, transporte público, etc.) numa reorganização, diga-se desordenada e caótica, do urbano. O futebol é uma fronteira da acumulação do capital nos novos tempos. Então, se pode interrogar: que acordos público-privados existiram, no momento da designação do Brasil, que o governo Lula decidiu como importante para o projeto do capitalismo no país?

Esses projetos dos estádios caíram, muito claramente, dentro de uma necessidade não só de avanço do capitalismo mundial e nacional produtivo, mas também da necessidade infraestrutural da economia brasileira, a saber, aeroportos, estradas, portos, saneamento básico, transporte urbano, etc. Então, é com esse pano de fundo que temos que compreender a questão atual dos aeroportos brasileiros. A Copa e as Olimpíadas são, em si, um projeto estratégico do governo brasileiro? Acho que não. Mas é irreversível? Sim. E se integra num movimento de articulação da infraestrutura brasileira? Sim.

ENTÃO, COMO ENTENDER O JOGO?

Então, tem que se entender esse projeto dentro de uma visão que a Dilma tem salientado do crescimento acelerado do Brasil, problema fundamental na competição interestatal. E para ter um crescimento acelerado – a experiência da China incentiva – não basta aporte de capitais locais e recursos públicos; é fundamental empresas que possam tomar crédito e investir. É o caso dos aeroportos. Então, temos dois problemas. Um é a questão do investimento em área estratégica. Bem, o que se pode dizer sobre informações na imprensa é que o investimento será no complexo aeroportuário, sabendo-se que o controle do espaço aéreo, que é o decisivo para o país, continua com o governo brasileiro. De qualquer forma, me parece que o problema é amplo: não bastam as instalações e investimentos do aeroporto, é preciso estrutura urbana que apóie o local. E isso não está em questão nesses leilões.

(Parece que para ultrapassar o emperramento brasileiro é fundamental ir tocando o processo, independente das ressalvas teóricas, políticas, econômicas, etc., que possam ser colocadas. Por exemplo: no caso dos aeroportos, como disse, falta a parte de apoio do acesso urbano. Mas, se for esperar a solução disso, não vai sair. Então, vamos indo adiante, porque depois se arruma, depois se arranja. E se não se arrumar, pelo menos algo saiu. É o pragmatismo brasileiro. Faz e depois vê, e depois se arruma. Naturalmente que já é um progresso, pois é o contrário de ir levando a coisa com a barriga. O contrário do neoliberalismo que era canalizar tudo para o mercado financeiro.)

Os críticos dos sindicatos colocaram uma questão importante: o Estado tem dinheiro, sim; por que não usar o superávit fiscal primário? Bem, isso é verdade. Até já comentamos acima. Só que queríamos apresentar o tema pela questão da estratégia nacional e de uma política econômica adequada para tal. Assim, se o Brasil busca a estratégia do crescimento acelerado, é preciso contar com recursos nacionais e internacionais, mas também é fundamental que o país tenha uma estrutura econômica robusta. E, obviamente, a política econômica tem que se proteger, numa mundialização com predominância financeira, dos ataques dos inimigos do país e, certamente, um deles é a atitude especulativa das finanças. Para que o país possa buscar o crescimento acelerado, ele tem que se resguardar. Logo, a economia brasileira tem que usar esses dois protetores, o superávit fiscal, para não entrar numa crise do pagamento dos juros como outros países, e a reserva em dólares, para não sofrer ataque especulativo por parte do setor financeiro. Então – como “bola de segurança”, como diz o pessoal do voleibol – o Brasil não poderia fazer essa aventura aparentemente fácil, a de usar o seu superávit primário, para construir os aeroportos. A hipótese contrária teria um risco muito elevado.

Um outro problema é, sem dúvida, as críticas que poderiam surgir no futuro sobre o ritmo e o término das obras. Veja o leitor, que aí temos um gesto político importante. Dando à iniciativa privada – incluindo estrangeiros – a execução das obras, Dilma se acautela quanto a comentários ferozes e violentos da oposição ao governo, sobretudo da auto-proclamada imprensa livre, pelo andamento dos trabalhos, atrasos, aumentos de preços, etc., inevitáveis em construções desse porte. Na verdade, a imprensa vai ter que bater no tambor do próprio setor privado, o que fará com mais suavidade. Claro, sobrarão críticas ao governo, mas será em muito menor grau. (De qualquer forma, a questão importante será a da fiscalização das obras, do cronograma, da exigência de cumprimento das etapas. E aí sim, o governo jogará de mão se quiser. E com apoio da própria mídia!)

(Porém há algo que está no cruzamento da expansão econômica do Brasil, da construção de estádios e aeroportos, da estrutura hoteleira e da estrutura das cidades. É que essas obras têm um odor de corrupção, um cheiro de multiplicação excessiva de recursos públicos para que tudo fique pronto para a Copa. Há cheiro de ataque ao Tesouro Nacional, há cheiro de chantagem as mais diversas. E isso tudo vai ficar em pauta até 2014/2016. Nesse sentido, o povo e a sociedade brasileira estão inquietos. E sobretudo, isso pode ser expresso por um “filósofo brasileiro”, o Barão de Itararé, com aquela célebre frase: negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados. E daí a inquietude de todos com essa solução das concessões, que envolve uma parte do setor privado que é extremamente ágil para o bem e para o mal. Quem não se lembra das polêmicas sobre as obras do Pan-Americano? Por isso, a tensão de parte da sociedade com esses pontos que discutimos aqui.)

FINALIZANDO

Finalizando, de fato tenho muitas dúvidas sobre o modo como foi conduzida a decisão dessas concessões. Os pontos que podem sustentar a postura do governo são: o crescimento acelerado, o manejo da política econômica, as necessidades de capital, (com o fato técnico da manutenção do controle do espaço aéreo pelo governo brasileiro), um passo a mais na aliança com o setor privado, a necessidade de bloquear as criticas da imprensa privada anti-governo, e a imperiosidade de manter a política econômica de controle dentro de uma inserção neoliberal na economia e na política mundial.

Terá sido uma boa o lance de Lula? Dado o lance, houve astúcia, prudência e sagacidade na solução da Dilma?





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