CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
22 de julho de 2010
COLUNA DAS QUINTAS
A NOVA
REGULAÇÃO
FINANCEIRA
AMERICANA
(Será que não tem muita abóbora nesta goiabada?)
Por Enéas de Souza
1) Quando se fala sobre a constituição de um país, aqui no Brasil, sempre se compara com a americana. São doze pontos. E o resto é interpretação do judiciário. E todo mundo diz: olhem para a Americana e não façam como aquela que é uma “colcha de retalhos”, que tem uma “multidão de artigos”, como a nossa. Não sei se expresso bem o que quero dizer, mas isso me veio a cabeça quando soube que a nova regulação financeira dos Estados Unidos tinha 2.300 páginas (!). É patente que me surgiu o seguinte comentário: não pode dar certo. Só para regulamentarem a lei, só para começar a pôr em prática, vai levar um tempo fantástico. Os pessimistas falam até em anos. Será?
2) Veio-me, como sempre, a idéia de que a economia está sempre direta ou indiretamente enrolada na política. Esta foi a reforma política que Obama conseguiu. Em que sentido? No sentido, de que tudo é muito complicado nos domínios de Tio Sam. Primeiro, porque o Estado americano, ele sim, é uma colcha de retalhos, a regulação passa por níveis de superposição federal, estadual, municipal, passa por multiplicidades de agências reguladoras, por uma estrutura financeira onde não existe um princípio de unidade. Uma flora e fauna, uma selva selvagem - diria nosso comentarista italiano Dante – de tal ordem que James Friedman (o filho do sempre inolvidável Milton Friedman) disse com propriedade: vivemos nós, e queremos para os outros países alcancem o que temos, uma “anarquia liberal”. (Tira as crianças da sala, que tem palavrão no pedaço!). E como a dúvida é saudável, duvidem; mas duvidem e leiam e confiram o que estou dizendo no livro de Roubini, “A economia das crises”, sobretudo os capítulos 8 e 9.
3) O segundo ponto da complicação da reforma é que o Congresso é uma arena de gatos escaldantes de tal ordem que a negociação da lei passa por um conflito inigualável e inexorável nas duas casas do legislativo. E nelas, habitam no lugar, uma forte e intensa energia contraditória. Há pressão de vários grupos da população; há a disputa e a negociação dos partidos com o Executivo; há múltiplos interesses entre os representantes políticos, seja nos democratas, seja nos republicanos, seja numa casa do Congresso, seja noutra; há uma presença colossal dos lobbies, onde a deusa Grana faz as suas epifanias; há negociações de todos os tipos, chantagens de todas as figuras; há uma arena, um circo e uma praça de negócios atrás e na frente de todos os interesses. Preminger fez um filme, admirável sobre o combate e os conflitos no Congresso americano, que se chamava - olha só o título! – “Tempestade sobre o Washington”. Dentro desse redemoinho, dentro dessa volúpia, e medindo o grau das forças, sobretudo dos lobbies, o Executivo, via Christoffe Dodd, agora em 2010, fechou uma reforma, onde a meu ver a solução não é técnica, mas eminentemente política. De um lado é institucional, com um novo Conselho, um Conselho de Reguladores, que fará, de outro lado, propostas técnicas, como expressões de decisões de política financeira e monetária, que é a política no terreno das finanças.
O BATUQUE DA IMPRENSA E O CENTRO POLÍTICO
1) A imprensa convencional e personalidades que saem nela estão afirmando que é a maior reforma desde a 2ª guerra mundial e que aumentou fortemente a regulação, etc. etc. Penso - ainda sob a primeira impressão - que tem aí uma coisa ridícula, sobretudo nas declarações por parte dos políticos. “Nós queremos que este desastre não aconteça de novo, que quando a catástrofe se aproxime não tenhamos os instrumentos para impedi-la”. Ah! vã pretensão de políticos e de economistas e de propagandistas do sistema. Olha gente: capital é crise - dizia meu amigo Isaac Joshua. É crise, não se olvidem. Não há possibilidade do capitalismo não ter crises. Desde 1750 isto vem acontecendo periodicamente. A economia é cíclica, e o cíclico supõe os pontos das inversões das tendências ascendentes e descendentes, que são a crise e a retomada. Configura-se a velha pretensão hegemônica americana e do capital financeiro de dominar o ciclo. A cada retomada, passado um tempo, eles dizem: acabou o ciclo. Ora, estamos a ouvir a velha e enfadonha música, desconjuntada e triste, de que, agora sim, o tempo parou, de que a história acabou e que vamos ter fatalmente de encontrar o “happy end” dos filmes dos anos 50 do século passado. Como se desde lá o império tivesse triunfado para a eternidade.
2) A segunda coisa que emerge rápido é esta idéia do Conselho de Reguladores, sob o comando do Secretário do Tesouro. Bem, esta proposta é ambígua. Não dá nenhuma certeza de possíveis mudanças. Por quê? Por causa, de que na arquitetura do sistema financeiro e nas suas funções, a coisa mudou pouco. E o que entra de novo é que a direção da política financeira será vigiada por este Conselho, Seu objetivo: evitar o risco sistêmico, tendo como seu agente 007 o FED, com licença não para matar, mas para liquidar, se for o caso, as instituições financeiras que estão causando tal problema.
Antes de tudo, a pergunta rigorosa e fatal sobre a reforma: qual é a vantagem?
3) A vantagem principal é que pelo menos haverá a busca de uma visão unitária (aleluia!) e, em caso de crise e de consenso no Conselho, surgirá uma ação bloqueadora, quem sabe rápida, face aos danos de uma eclosão perigosa e demolidora da crise. Ora, para que isso aconteça é preciso ter informações corretas, sabendo-se que vai haver até o registro daqueles derivativos potencialmente explosivos, mas supõe que o sistema de informações funcione – o que não aconteceu na crise de 2007.
4) Todavia, a ação contra os grandes bancos (to big to fail) é que vai definir o possível caráter transformador da reforma ou não. Lembremos que na crise de 30, a famosa lei Glass-Steagall foi o que permitiu a separação entre bancos comerciais e os bancos de investimento, o que impediu a conexão entre as áreas de crédito à produção com o crédito para as áreas especulativas. Aqui é arena onde tudo vai se definir. Como interromper a conexão das instituições financeiras para impedir o incêndio, o contágio, a contaminação dos ativos tóxicos? Como introduzir as portas corta-fogo que nesta reforma – infelizmente – não foram designadas e apontadas preventivamente? Tudo é nada mais que evidente; a fúria e o furor dos bancos, com seus esquemas de lobbies e com a privatização do Estado americano, tentarão sempre impedir o sucesso efetivo. E então, por ausência de mecanismos institucionais a serem implantados, o fogo das finanças terá que ser interditado pela ação clarividente deste Conselho aprovado.
5) O grande temor: a arena da compra e venda, se é que ela é possível. Ela vai se transferir do Congresso para as Agências Reguladoras, e destas, para o domínio do referido Conselho. Obama, com o seu ardil incrementado, deve ter pensado que no Conselho ele poderia ter uma capacidade de pressão mais alta, mais volumosa.. Por sua vez, as instituições financeiras cogitaram que também ali elas poderiam atenuar os efeitos de medidas dos reguladores. E a razão é só uma: se sabe que as Agências Reguladoras, em toda parte, são o capital regulando o capital. Só que nos últimos tempos o acontecimento teve uma figuração distinta: foi sempre o capital desregulando o capital. Na crise de 2000/2001, as ações da Enron, uma semana antes desta quebrar, eram consideradas pela SEC (Security Exchange Council) como exemplo de uma ação em estado de graça. Pois acredite, ela morreu de bronquite: despencou de mais de 80 dólares por unidade para 9 cents. Êta agencinha que cuidava bem dos interesses dos aplicadores!
6) No caso do Conselho, é claro, estas agências também dependem dos nomeados. E Obama, não sei se mudou a direção de todas, mas certamente de algumas ele fez as alterações devidas. O presidente americano, é óbvio, aguarda e espera fidelidade dos que emplacaram a sua política mais geral, a proposta de reforma dos Estados Unidos e do capitalismo. E isto, não há nenhuma dúvida, começa, mesmo que seja progressivamente, por um controle das finanças e de todo o sistema financeiro.
7) Acho que foi dentro dessa perspectiva como da capacidade de assimilação do Conselho de sua estratégia, que Obama optou por fazer a Reforma desse jeito. Um país individualista, um país avesso à regulações estatais, um país dominado pela cultura da hegemonia absoluta do capital, um país centro da dominância do capitalismo financeiro não poderia fazer uma reforma definindo uma unidade reguladora principal, uma arquitetura financeira bem armada e funções de crédito muito estabelecidas. Não há no momento possibilidades de discriminar claramente as duas esferas das finanças. Uma – fundamental – de financiamento da produção e outra – secundária e complementar – de financiamento da especulação. Porque não há como ter dúvidas, as finanças têm a vocação especulativa.
8) Logo, a separação destas áreas vai levar tempo. Os financiamentos e as aplicações que não estão ligadas à indústria, à agricultura, ao funcionamento dos serviços e do comércio, condizem com o seu caráter contundente: são pura especulação. São movimentos que se sustentam no capital fictício, de natureza potencialmente delirante e enganosa. Na verdade, uma bomba de sucção da renda da sociedade para o engordamento das instituições financeiras. Nunca é tarde demais para não esquecer que quem aplica em títulos, não tem, no limite do seu jogo um capital como garantia. Tem sim, um mero papel, uma promessa de valorização que pode não ser honrada, mesmo com a certificação de um agência de ratings. Felizmente, Obama conseguiu, num gesto político cauteloso, colocar na lei uma agência de proteção ao consumidor, uma vez que nos títulos é o velho jogo do cara e coroa financeiro: “cara, eu ganho; coroa, tu perdes”. Olhando e pensando bem esta reforma, a gente deseja, com fervor e esperança: GOD BLESS AMERICA!
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