A Crise de Crédito Global: uma crise da globalização financeira[1]
A partir de meados de julho de 2007 o mundo financeiro tem sido fortemente chacoalhado por uma sucessão de eventos cuja gravidade não pode mais ser negada ou escondida. Palavras e siglas dantes desconhecidas ou de uso restrito dos especuladores mais diretamente interessados passaram subitamente às primeiras páginas dos cadernos financeiros e foram ouvidas dos lábios de embaraçados apresentadores no mundo blasé e eternamente cor-de-rosa do telejornalismo financeiro. Subprime, ABS, MBS, CDO, ABCP, CDPO e tantas outras siglas e expressões oriundas do mundo mágico da finança global, passaram a rimar com expressões bem mais antigas e conhecidas, com as quais o capitalismo ciclicamente nos brinda: crise, recessão e desemprego, dessa vez com sua origem na principal economia mundial, os Estados Unidos.
Paradoxalmente, a “sopa de letras” confunde e explica ao mesmo tempo. O mundo financeiro se tornou intencionalmente complexo e opaco, fonte de enormes lucros para “espertos” donos da melhor informação e do menor esforço. A chamada “alavancagem” – tomar empréstimos para assumir uma posição especulativa mais rentável em busca de um lucro diferencial – é hoje tão normal quanto acordar pela manhã, mesmo que, ao multiplicar ganhos nos momentos de alta, também possa inflar enormemente os prejuízos quando os ventos passam a soprar na direção oposta. E nesse caso, mesmo ventos inicialmente de pequena intensidade são capazes de gerar, na medida em que se intensificam com o acúmulo de prejuízos, estragos de grandes proporções.
Trata-se da primeira crise cujas características decorrem exclusivamente das especificidades do mundo financeiro criado a partir dos anos 1980, momento onde a confluência da desregulamentação com as novas tecnologias da informação liberaram forças cuja contenção escapa inclusive aos Bancos Centrais. A securitização e os derivativos – instrumentos de repartição do risco em um mundo cada vez mais incerto – predominam na busca da proteção, mas também nas “apostas” especulativas. Os fundos de investimento, de pensão, hedge e private equity proliferam e espalham esses títulos pelo planeta, interligando geograficamente mercados aparentemente distantes. Os bancos, procurando fugir das regras que lhes garantiriam a solvência em tempos de crise, criam seus próprios fundos para poderem conceder empréstimos acima dos limites prudenciais. As agências de notação – aquelas que dão notas e opiniões inclusive quanto à capacidade de solvência de países soberanos – participam da festa, chancelando como “seguros” títulos frutos da chamada “engenharia financeira”, cujas características lembram mais um desengonçado Frankenstein, a partir da cobrança de “módicas comissões” que engordam seus crescentes lucros. E tudo isso se passa sem que os Bancos Centrais possam ter uma visão sobre quem “carrega” esses títulos mais perigosos, conhecidos no mercado financeiro pelo sugestivo apelido de “lixo tóxico”.
E o que temos ao final se não uma enorme e perigosa “cascata de dívidas”, onde a inadimplência de um agente se reflete na capacidade de outro em honrar seus compromissos? E como saber quais são os títulos “podres” e as instituições em perigo quando a securitização e os derivativos espalharam os riscos em todas as direções e em diversas partes do mundo, sem supervisão adequada, a partir da confiança nas supostas virtudes da auto-regulação? A incerteza emerge com força inaudita nessa crise contemporânea, paralisando mercados tidos até ontem como “a salvo”, transformando a busca pelos ativos “infectados” em algo muito parecido ao jogo infantil onde se busca encontrar o “Wally” em meio a uma miríade de títulos que podem ou não estar contaminados. A desconfiança mina assim a fluidez de mercados e traz a possibilidade de crises que abalem tanto à saúde das instituições financeiras quanto à capacidade de crescimento do consumo, afetando as empresas ditas “produtivas” com a possibilidade de uma recessão.
Todas essas características gerais que demonstram a insanidade da formação de um complexo sistema que parte da acumulação de capital fictício com o único objetivo de geração maior de capital fictício que caracteriza o capitalismo financeiro contemporâneo (circuito reduzido D-D’ em Marx, caracterizado como a forma fetichista máxima da acumulação de capital), aparecem quase caricaturalmente na crise atual.
Vejamos então o que tem ocorrido e como uma crise com origem no setor imobiliário norte-americano pode abalar profundamente as estruturas do sistema financeiro global. A crise que abalou as bolsas norte-americanas em 2000/2001 foi superada a partir de grandes reduções nas taxas de juros daquele país. Isso incitou, de parte das famílias, a uma retomada em seu endividamento. Com a confiança nas bolsas de valores abalada pelas recentes perdas, os novos empréstimos direcionaram-se especialmente ao setor imobiliário, o que elevou os preços das residências. Na medida em que esses preços aumentaram, foi possível às famílias refinanciarem esses empréstimos e tomarem mais recursos tendo como contrapartida seus imóveis, destinando parte desses recursos ao consumo em geral, o que possibilitou uma nova rodada de crescimento baseada na elevação do consumo.
Com o passar do tempo, com os preços dos imóveis em elevação, as exigências para concessão de crédito foram relaxadas, ao mesmo tempo em que se criaram novos “produtos’, com facilidades iniciais de pagamento aos tomadores de empréstimos que se constituem em verdadeiras “bombas-relógio”, com contratos que contemplam a abrupta possibilidade de elevação nos preços das prestações. Esses contratos são revendidos aos bancos que conformam com eles novos títulos (ABSs ou MBSs) para serem novamente revendidos aos fundos e aos bancos de investimento. Os bancos de investimento misturam esses títulos vendidos pelos bancos comerciais a outros, criando um novo papel (CDOs) que são revendidos aos fundos do mundo todo, com a benção das agências de notação. Esses fundos muitas vezes tomam novos empréstimos dando como contrapartida esses papéis. Podemos notar que esses “investidores” estão bastante distantes dos compradores dos imóveis que deram origem ao primeiro contrato de hipoteca, o que possibilita comportamentos “agressivos” quanto ao risco de todos os envolvidos nessa cascata de títulos.
Mas a história ainda continua. Bancos comerciais do mundo todo criam fundos e tomam recursos nos mercados de curto prazo a juros mais baixos, investindo-os em CDOs de prazo mais longo e maior rendimento, colocando em risco mercados monetários essenciais para o dia a dia financeiro das empresas produtivas.
Com o declínio no preço dos imóveis a partir de 2006 e o aumento da inadimplência nas hipotecas, todo o ciclo se reverte. O valor dos títulos emitidos a partir das hipotecas (MBSs e CDOs) cai abruptamente, uma vez que o fluxo de pagamentos gerado por esse empréstimos se torna mais instável. As perdas se acumulam e “pipocam” casos de falência de fundos e problemas bancários em várias partes do mundo (Alemanha, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, etc.). Fica claro o comportamento irresponsável e ganancioso das agências de notação ao certificar a “segurança” dos títulos emitidos a partir da revenda das hipotecas. Os mercados monetários se fecham, os juros de curto prazo sobem e os bancos passam a desconfiarem uns dos outros, evitando a concessão de empréstimos entre si. Resta apenas a intervenção estatal, a partir de empréstimos dos bancos centrais, para evitar o colapso. Os apologistas “modernos e ousados” do livre-mercado se convertem em bebês chorões, em busca dos recursos salvadores oriundos dos impostos dos contribuintes. Tal qual piromaníacos arrependidos, chamam pela intervenção salvadora dos bombeiros.
Assim se compreende a intervenção dos Bancos Centrais, na tentativa de dar a liquidez necessária para a volta à normalidade dos diversos mercados. Mas a confiança está quebrada, a crise imobiliária norte-americana apenas em seu início, o mercado de crédito não poderá mais ser o mesmo dos últimos anos. Trata-se de uma crise de longa duração – fenômeno admitido em setembro pelo mesmo FMI que em abril dizia não haver risco de crise maior –, a mais grave do capitalismo financeiro contemporâneo, com reflexos econômicos e políticos que apenas o futuro poderá nos revelar. A possibilidade de crescimento mundial com uma crise no consumo norte-americano será brevemente desmentida. Os efeitos da agressiva redução nos juros norte-americanos se revelarão passageiros. O entusiasmo dos especuladores com os “mercados emergentes” das últimas semanas será revertido. Os ganhos com as ações nas bolsas de valores não se manterá e o ano de 2008 marcará o fim das ilusões quanto às possibilidades de um “desendividamento indolor”.
Estamos apenas no início. Devemos estar preparados para aproveitar as oportunidades políticas que se abrirão com essa crise em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, país completamente entregue à hegemonia dos bancos e da especulação financeira. Infelizmente, muitos que não se beneficiaram em nada com a especulação pagarão a conta da crise. Trata-se de uma das características mais perversas do capitalismo financeiro contemporâneo, que deve despertar a indignação de todos aqueles que buscam uma sociedade com maior justiça e igualdade. A compreensão dos eventos contemporâneos deve ser a base para a ação conseqüente e eficaz na luta contra mistificação ideológica dos benefícios do livre-mercado.
[1] Artigo publicado no jornal Página 50, em outubro de 2007.
A partir de meados de julho de 2007 o mundo financeiro tem sido fortemente chacoalhado por uma sucessão de eventos cuja gravidade não pode mais ser negada ou escondida. Palavras e siglas dantes desconhecidas ou de uso restrito dos especuladores mais diretamente interessados passaram subitamente às primeiras páginas dos cadernos financeiros e foram ouvidas dos lábios de embaraçados apresentadores no mundo blasé e eternamente cor-de-rosa do telejornalismo financeiro. Subprime, ABS, MBS, CDO, ABCP, CDPO e tantas outras siglas e expressões oriundas do mundo mágico da finança global, passaram a rimar com expressões bem mais antigas e conhecidas, com as quais o capitalismo ciclicamente nos brinda: crise, recessão e desemprego, dessa vez com sua origem na principal economia mundial, os Estados Unidos.
Paradoxalmente, a “sopa de letras” confunde e explica ao mesmo tempo. O mundo financeiro se tornou intencionalmente complexo e opaco, fonte de enormes lucros para “espertos” donos da melhor informação e do menor esforço. A chamada “alavancagem” – tomar empréstimos para assumir uma posição especulativa mais rentável em busca de um lucro diferencial – é hoje tão normal quanto acordar pela manhã, mesmo que, ao multiplicar ganhos nos momentos de alta, também possa inflar enormemente os prejuízos quando os ventos passam a soprar na direção oposta. E nesse caso, mesmo ventos inicialmente de pequena intensidade são capazes de gerar, na medida em que se intensificam com o acúmulo de prejuízos, estragos de grandes proporções.
Trata-se da primeira crise cujas características decorrem exclusivamente das especificidades do mundo financeiro criado a partir dos anos 1980, momento onde a confluência da desregulamentação com as novas tecnologias da informação liberaram forças cuja contenção escapa inclusive aos Bancos Centrais. A securitização e os derivativos – instrumentos de repartição do risco em um mundo cada vez mais incerto – predominam na busca da proteção, mas também nas “apostas” especulativas. Os fundos de investimento, de pensão, hedge e private equity proliferam e espalham esses títulos pelo planeta, interligando geograficamente mercados aparentemente distantes. Os bancos, procurando fugir das regras que lhes garantiriam a solvência em tempos de crise, criam seus próprios fundos para poderem conceder empréstimos acima dos limites prudenciais. As agências de notação – aquelas que dão notas e opiniões inclusive quanto à capacidade de solvência de países soberanos – participam da festa, chancelando como “seguros” títulos frutos da chamada “engenharia financeira”, cujas características lembram mais um desengonçado Frankenstein, a partir da cobrança de “módicas comissões” que engordam seus crescentes lucros. E tudo isso se passa sem que os Bancos Centrais possam ter uma visão sobre quem “carrega” esses títulos mais perigosos, conhecidos no mercado financeiro pelo sugestivo apelido de “lixo tóxico”.
E o que temos ao final se não uma enorme e perigosa “cascata de dívidas”, onde a inadimplência de um agente se reflete na capacidade de outro em honrar seus compromissos? E como saber quais são os títulos “podres” e as instituições em perigo quando a securitização e os derivativos espalharam os riscos em todas as direções e em diversas partes do mundo, sem supervisão adequada, a partir da confiança nas supostas virtudes da auto-regulação? A incerteza emerge com força inaudita nessa crise contemporânea, paralisando mercados tidos até ontem como “a salvo”, transformando a busca pelos ativos “infectados” em algo muito parecido ao jogo infantil onde se busca encontrar o “Wally” em meio a uma miríade de títulos que podem ou não estar contaminados. A desconfiança mina assim a fluidez de mercados e traz a possibilidade de crises que abalem tanto à saúde das instituições financeiras quanto à capacidade de crescimento do consumo, afetando as empresas ditas “produtivas” com a possibilidade de uma recessão.
Todas essas características gerais que demonstram a insanidade da formação de um complexo sistema que parte da acumulação de capital fictício com o único objetivo de geração maior de capital fictício que caracteriza o capitalismo financeiro contemporâneo (circuito reduzido D-D’ em Marx, caracterizado como a forma fetichista máxima da acumulação de capital), aparecem quase caricaturalmente na crise atual.
Vejamos então o que tem ocorrido e como uma crise com origem no setor imobiliário norte-americano pode abalar profundamente as estruturas do sistema financeiro global. A crise que abalou as bolsas norte-americanas em 2000/2001 foi superada a partir de grandes reduções nas taxas de juros daquele país. Isso incitou, de parte das famílias, a uma retomada em seu endividamento. Com a confiança nas bolsas de valores abalada pelas recentes perdas, os novos empréstimos direcionaram-se especialmente ao setor imobiliário, o que elevou os preços das residências. Na medida em que esses preços aumentaram, foi possível às famílias refinanciarem esses empréstimos e tomarem mais recursos tendo como contrapartida seus imóveis, destinando parte desses recursos ao consumo em geral, o que possibilitou uma nova rodada de crescimento baseada na elevação do consumo.
Com o passar do tempo, com os preços dos imóveis em elevação, as exigências para concessão de crédito foram relaxadas, ao mesmo tempo em que se criaram novos “produtos’, com facilidades iniciais de pagamento aos tomadores de empréstimos que se constituem em verdadeiras “bombas-relógio”, com contratos que contemplam a abrupta possibilidade de elevação nos preços das prestações. Esses contratos são revendidos aos bancos que conformam com eles novos títulos (ABSs ou MBSs) para serem novamente revendidos aos fundos e aos bancos de investimento. Os bancos de investimento misturam esses títulos vendidos pelos bancos comerciais a outros, criando um novo papel (CDOs) que são revendidos aos fundos do mundo todo, com a benção das agências de notação. Esses fundos muitas vezes tomam novos empréstimos dando como contrapartida esses papéis. Podemos notar que esses “investidores” estão bastante distantes dos compradores dos imóveis que deram origem ao primeiro contrato de hipoteca, o que possibilita comportamentos “agressivos” quanto ao risco de todos os envolvidos nessa cascata de títulos.
Mas a história ainda continua. Bancos comerciais do mundo todo criam fundos e tomam recursos nos mercados de curto prazo a juros mais baixos, investindo-os em CDOs de prazo mais longo e maior rendimento, colocando em risco mercados monetários essenciais para o dia a dia financeiro das empresas produtivas.
Com o declínio no preço dos imóveis a partir de 2006 e o aumento da inadimplência nas hipotecas, todo o ciclo se reverte. O valor dos títulos emitidos a partir das hipotecas (MBSs e CDOs) cai abruptamente, uma vez que o fluxo de pagamentos gerado por esse empréstimos se torna mais instável. As perdas se acumulam e “pipocam” casos de falência de fundos e problemas bancários em várias partes do mundo (Alemanha, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, etc.). Fica claro o comportamento irresponsável e ganancioso das agências de notação ao certificar a “segurança” dos títulos emitidos a partir da revenda das hipotecas. Os mercados monetários se fecham, os juros de curto prazo sobem e os bancos passam a desconfiarem uns dos outros, evitando a concessão de empréstimos entre si. Resta apenas a intervenção estatal, a partir de empréstimos dos bancos centrais, para evitar o colapso. Os apologistas “modernos e ousados” do livre-mercado se convertem em bebês chorões, em busca dos recursos salvadores oriundos dos impostos dos contribuintes. Tal qual piromaníacos arrependidos, chamam pela intervenção salvadora dos bombeiros.
Assim se compreende a intervenção dos Bancos Centrais, na tentativa de dar a liquidez necessária para a volta à normalidade dos diversos mercados. Mas a confiança está quebrada, a crise imobiliária norte-americana apenas em seu início, o mercado de crédito não poderá mais ser o mesmo dos últimos anos. Trata-se de uma crise de longa duração – fenômeno admitido em setembro pelo mesmo FMI que em abril dizia não haver risco de crise maior –, a mais grave do capitalismo financeiro contemporâneo, com reflexos econômicos e políticos que apenas o futuro poderá nos revelar. A possibilidade de crescimento mundial com uma crise no consumo norte-americano será brevemente desmentida. Os efeitos da agressiva redução nos juros norte-americanos se revelarão passageiros. O entusiasmo dos especuladores com os “mercados emergentes” das últimas semanas será revertido. Os ganhos com as ações nas bolsas de valores não se manterá e o ano de 2008 marcará o fim das ilusões quanto às possibilidades de um “desendividamento indolor”.
Estamos apenas no início. Devemos estar preparados para aproveitar as oportunidades políticas que se abrirão com essa crise em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, país completamente entregue à hegemonia dos bancos e da especulação financeira. Infelizmente, muitos que não se beneficiaram em nada com a especulação pagarão a conta da crise. Trata-se de uma das características mais perversas do capitalismo financeiro contemporâneo, que deve despertar a indignação de todos aqueles que buscam uma sociedade com maior justiça e igualdade. A compreensão dos eventos contemporâneos deve ser a base para a ação conseqüente e eficaz na luta contra mistificação ideológica dos benefícios do livre-mercado.
[1] Artigo publicado no jornal Página 50, em outubro de 2007.