quinta-feira, março 03, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
03 de março de 2011
Coluna das quintas






A CRISE FINANCEIRA
E
OS GRITOS DE KADAFI
Por Enéas de Souza






1) Ah! Volto ao meu velho tema: a continuação da crise financeira mundial. Ela começou com os papéis bichados das finanças e devastou financeira e produtivamente diversas indústrias e minou a resistência fiscal de diversos países e passou dos Estados Unidos para a Europa e etc., etc. O que parece claro é que ela veio num ritmo imperioso, ora fulminante como nos eventos financeiros dos Estados Unidos, ora lenta como nos efeitos de sua vasta presença nos grandes países europeus. E a crise continua aí, como aquele fogo, aquela chama que, de repente, chega a novos focos de incêndios. Mas inúmeros comentaristas, diversos jornais – todos austeros e sábios – acompanhados de executivos e lobbies ativistas clamaram já não sei quantas vezes: “a crise acabou”, “a crise acabou”. Voz de coro de peça trágica grega. Só que a brasa estava fermentando e o vento do deserto reacendeu a luz vermelha. Eles, o vento e o fogo, passaram e passam forte pelo Egito, pela Tunísia, pela Líbia e batem nas janelas, nas vidraças de outros países árabes e tudo recomeça, um sinistro carrossel de circo. Que atrevidos esse fogo e esse vento! Mas os dois vêm mostrar que além da crise não ter terminado, ela não é apenas econômica, tem substância política misturada. E olhando bem, a gente observa que existe algo de novo, talvez ainda não perceptível totalmente, no panorama internacional da geoeconomia e da geopolítica. Como nos fala o amigo José Luís Fiori, isso se chama a nova política externa americana, que está fazendo como um avião que muda de rota, numa inflexão distinta dos últimos tempos. No meu modo de ver, essa política ainda está sendo trôpega, mas é indiscutível que a terra do Oscar se recompõe. É uma rede de comunicação que se reinventa.


2) O que este escriba pode ver são os Estados Unidos armando uma continuada ascendência sobre a Europa, se achegando à Rússia com apoio da Alemanha, para dar novos pesos europeus, tentar equilibrar o Oriente Médio e pôr uma certa contraposição à China. Mas é preciso ver que isto representa também uma mudança interna nos Estados Unidos. Antes de tudo, permite ver que a velha unidade finanças-indústria bélica-energia se recompõe noutro nível, que falaremos a seguir. Usando, porém, a imagem do xadrez, essa aliança faz um movimento singular, avançando um bispo importante, quase substituindo o inolvidável George W. Bush. Pois, de fato, ela re-posiciona Obama, cujos discursos humanitários e de boa retórica ajudam a propor como palatável a nova política, inclusive contra ditadores que sempre os Estados Unidos apoiaram.


3) Mas a coisa é complexa. Antes de tudo, as finanças mandam e tentam governar, mas já não comandam o mundo. Esse lhes escapa de várias maneiras. A consequência imediata é que os efeitos financeiros do desastre das finanças recaíram sobre a política fiscal americana com uma afetação brutal da sua moeda, o dólar. Todavia, o dólar continuará sendo a moeda de referência mundial, mas ele oscila por causa da dívida e do déficit americano, por causa do jorro de liquidez que o FED deu aos bancos, por causa da volúpia dos capitais financeiros em busca de rendabilidade no resto do mundo e por causa da necessidade de exportação da economia do norte.


4) Embora haja um poder da economia hegemônica em colocar os problemas da sua moeda para os outros países, o fato é que a expansão americana para a Ásia (China, em especial), impede que ela passe rapidamente a questão para as demais economias. A China sabe disso e força uma boa queda de braço com a política monetária americana. Como é uma economia estatal, controla o câmbio e procura levar vantagem tanto no fato de empresas americanas estarem no seu território como também pelo fato dela, China, sustentar em parte a dívida do Tesouro Americano. O que não se pode esquecer é que a política externa chinesa tem como objetivo prioritário o crescimento chinês, pois nesse sentido, ela melhora a sua posição contra os Estados Unidos e agrega ao seu redor a Ásia, a Índia e os países da América Latina. Por isso, a política monetária chinesa joga com esses fatores e se movimenta com controlada estratégia a seu favor, face às mudanças do dólar.


5) Os americanos e os europeus estão um pouco desesperados com a situação. Claramente pelo o crescimento e pela expansão do domínio chinês. Pois até se fala, no médio prazo, no avanço da China sobre os Estados Unidos. E outros acoplam um casamento estranho entre a China e a Índia. Mas o desespero tem um rosto tremente por causa da instabilidade do petróleo – e, por consequência, o Oriente Médio perturba os cálculos, já que o aumento do preço do “ouro negro” ou “sangue negro”, causado pela ausência de fornecimento, inquieta e assusta. Contudo, o aumento do custo não vem só por causa da retirada dos barris da Líbia, mas está vinculada decisivamente, como sempre, à especulação das finanças. E esse problema com a energia, é óbvio, se derrama sobre a recuperação americana e européia. Todavia, a especulação renova e mantém na pauta a música da contradição forte entre as finanças e a produção, já que tomba como uma adversidade cortante sobre a atividade produtiva. Mas a especulação é um vírus terrível, pois há um segundo ponto que avança sobre todo o mundo e foi uma causa decisiva nas insurreições dos países árabes: a volúpia volátil dos aumentos dos alimentos, que funcionam na dinâmica capitalista contemporânea como ativos financeiros. Claro, o tema econômico rebate, como uma bola jogada sobre uma parede, sobre o panorama estratégico americano, se a gente pensa no controle geoeconômico e geopolítico do Oriente Médio. As atuais transformações políticas complexas certamente não estão indo na direção americana, nem na direção de Israel, além de complicarem muito o tema da organização e das relações entre os diversos países daquela região. Isto sem falar no aumento da tensão finanças e produção.


6) Todo o movimento estratégico geoeconômico dos Estados Unidos e da Europa é procurar, a todo o momento, passar a crise monetária para os países mais fracos, inclusive os da América Latina. Vejam como as exportações brasileiras e, consequentemente, a balança comercial e o balanço das transações correntes ficam afetados pela valorização do real. Esse é o objetivo da política monetária americana: jogar no colo dos países emergentes e menores a bomba da desvalorização do dólar para favorecer a economia exportadora americana e dificultar importações desses mesmos países. Só que as finanças perturbam todo o ambiente em função da especulação financeira com produtos primários, com petróleo, com matérias primas. Mas olhem bem a sutileza dos americanos e dos europeus: tentam botar a culpa nos países produtores de alimentos como o Brasil. Numa escandalosa atitude, Sarkosy chegou a propor que se coloque um limite ao preço dos produtos alimentares. Tudo em nome do aumento da fome do mundo. Só que quem tem que ceder são os países produtores de alimentos, os culpados. E deixam numa boa os especuladores, sempre prontos para voar com os seus mísseis sobre novos alvos e novos ativos de qualquer espécie transformados em títulos financeiros.


7) Ora, o que se percebe com o recente discurso do rei, ou do rei dos reis, Kadafi, é que o desespero e a crise crescem no mundo. E se o protagonista do grito é o ditador líbio, o que se vê, na verdade, é mais uma trajetória na sucessão da crise financeira mundial. As finanças perderam, mas não saíram de cena nem modificaram suas posições no contexto econômico. E forçam o Estado americano a organizar uma política externa de dólar que quer contaminar as outras moedas, de uma política para forçar o jogo do petróleo, de manter, apesar das mudanças, a influência no Oriente Médio, etc. Mas o que se percebe também é que, macroeconomicamente, os americanos não comandam unilateralmente mais o mundo porque a China é hoje um rival com crescente poder, dado que através do Estado conseguem bloquear os movimentos dos Estados Unidos e dos países atrelados ao dólar. E de outro lado, do ponto de vista microeconômico, a chamada competição de mercado - sobretudo com o império da financeirização do mundo -está levando ao descontrole do preço do petróleo e à exacerbação daqueles dos alimentos. Assim, de uma forma ou de outra, o macro e o micro põem cheque a unidade e o domínio americano, e exigem uma renovação constante nas táticas de sua estratégia geopolítica.


8) Só que os Estados Unidos, numa atitude defensiva, podem desviar e apertar o seu projeto econômico, político, social e cultural, tentando impor valores e dinâmicas comerciais, financeiras e produtivas num ambiente desorganizado, dado o seu poder global. O que significa que a crise continua. Ela agora está saindo do nível geoeconômico, pela perturbação permanente das finanças, e se espraiando pelos campos já mais sombrios e mortíferos da geopolítica. Temos, no entanto, um aspecto picante. Exatamente num movimento reverso, a política se torna incestuosa com a economia, pondo na tela dos conflitos contemporâneos o novo adubo das desordens dos últimos tempos. O discurso do rei é, não resta dúvida, desespero do ditador, mas traz também um sujeito oculto: a incapacidade americana tanto de equilibrar e dominar o Oriente como da busca inquieta de outras fontes de petróleo e de energia.


9) Termino com duas perguntas.

Primeira. Não será por essas razões que os Estados Unidos estarão pensando mais carinhosamente na América Latina, que tem petróleo e que tem alimentos?

Segunda. E também não será pelas mesmas movitvações que o Brasil, como tática de defesa da sua estratégia geopolitica, parece tão cauteloso na política externa e insinua esboçar uma aproximação mais apurada com os brothers da América do Norte?













Nenhum comentário: