17 de fevereiro de 2011
Crônica das quintas
AS CHEIAS
REVOLUCIONÁRIAS
DO NILO
Por Enéas de Souza
1) Um amigo meu me disse: “olha que o Nilo está crescendo, suas águas estão invadindo e fertilizando as terras do país. Era assim que o Egito antigo se tornava exuberante”. Claro, ele falava por metáfora. Porque, tocava no assunto fundamental dos últimos dias no Oriente Médio. De fato, foram 18 dias de jornadas políticas - fim de janeiro, inicio de fevereiro - na luta contra a ditadura de Mubarak, do Cairo a Alexandria, passando pelo Suez. Os jornais e blogs mundiais gostaram tanto da generosidade do movimento que começaram a falar tanto em revolução quanto em democracia, Seguramente, os manifestantes queriam democracia, mas certamente revolução foi um termo excessivo, ao menos até agora. Por quê? Porque, o que houve foi um protesto exitoso, uma revolta contundente.
2) Todavia, até agora, de concreto pouco aconteceu. Sim, sim, Mubarak saiu, (Mas, continua no Egito) e o vice-presidente Suleiman, ex-chefe da política secreta, eclipsou-se. Mas, o Conselho Supremo das Forças Armadas, dirigido por um possível candidato a novo a ditador, Tantawi, suspendeu a antiga constituição. E convocou, num gesto aparentemente dócil, “notórios juristas” para fazer um esboço de uma nova, a ser votada pela população em dois meses. Só que o Conselho continua no poder e não foi constituído nenhum governo de transição. A despótica e duradoura lei de emergência, que permite prisões arbitrárias, mantém o seu império. Assim, mudou tudo e não mudou nada. Jogo e manobras no teatro da política, que é conflito, oscilando entre a tragédia, a comédia e o drama. Mas, tentemos compreender, mais profundamente, o tema, passando pelos vultos e eventos que aparecem na mídia, para verificar o que está transitando pelo Egito em direção a todo o Oriente Médio.
3) A situação é altamente complexa, mas pelo menos algum esboço, como um pintor que faz uns traços para elaborar um retrato, podemos fazer. E olhando para o princípio do rosto desenhado, ficamos espantados. Por quê? Antes de tudo, o que a gente olha é um contraste muito forte entre os militares e a população. Os primeiros estão no poder há mais de 60 anos, se contarmos Nasser, passarmos por Sadat e chegarmos a Mubarak. O que se vê é que nesta transição continuam no comando, jeitosos, mais educados, mas nunca se esquecer que mesmo durante os 18 dias prenderam e torturaram pessoas. E o que a gente percebe é que esse grupo dominante não é tão inteiriço assim, daí a sua suavidade, os seus passos quase intangíveis na transição.
4) É preciso ver que esta ditadura de Mubarack era uma ditadura militar capitalista, pois o Exército e muitos generais são proprietários, sócios de grandes empresas do Egito. Por isso sempre afirmaram: “O Egito tem que voltar a trabalhar”. Segundo informações, estes empreendimentos são 15% do PIB e 40% da produção industrial. Portanto, os militares são também proprietários a defender as suas fábricas, os seus produtos, os seus lucros. E além de tudo, jogam o seu poder político, pois é através dele, que negociando a ajuda americana, conseguem recursos para aplicarem nos seus negócios. Mas, quando se olha bem, vê-se como o capitalismo contemporâneo neo-liberal foi cruel com este segmento social aliado. Pois, Mubarak queria fazer de seu filho Gamal, o substituto dileto da sua ditadura. E o Conselho foi contra, obrigou ao pai e ao filho desistirem da idéia. E sabem por quê? Gamal estava associado com as multi e abriu um divisão na classe hegemônica, ele do lado neoliberal, os militares do lado do capitalismo nacionalista. Não foi sem razão, razão amarga, que o maior industrial egípcio foi aos manifestantes aliar-se a eles na praça Tahrir.
5) Mas, o grupo dominante articula militares e policiais, industriais e grandes proprietários de terra. Mas, é preciso ver que se havia divisão entre os militares, o segmento policial era extremamente fracionado, desde a guarda de Mubarak, a polícia civil até a polícia de fronteira. E com uma nota e uma imagem picante: viu-se outro dia, na Aljazeera, cenas da passeata de encorpados policias (alguns com os seus famosos óculos escuros, que esta fração de classe usa como marca de sua elegância), a gritarem por melhores salários e reclamando que levavam a culpa de serem os torturadores do regime. Vendo esta descrição pode-se compreender como o Conselho Supremo tem agido sem violências, com bastante delicadeza, sensibilidade política e dando passos cuidadosos. Ou seja, é um bloco que tem armas, mas não tem necessariamente unidade. Precisa negociar as alianças internas. E tudo se complica, carece de tempo, principalmente se se confirmar a informação que o Exército era todo dividido por regiões, competências, etc. e com fidelidades diversas e múltiplas diretamente a Mubarak.
6) Naturalmente, que muita gente discutia, nos blogs, nos artigos, nos comentários, desde a citada Aljazeera até o Asian Times, não deixando de citar filósofos como Slavoj Zizek, repórteres como Robert Fisk, Pepe Escobar, e inúmeros professores acadêmicos de todas as partes do mundo, informando, denunciando, criticando, sugerindo, interpretando, questionando, formulando indagações sobre os acontecimentos do Egito. E uma das questões era a seguinte: quem eram os agentes do movimento, os atores da tal de “revolução”? Quem eram aqueles que enfrentavam os militares?
7) Cheguei a conclusão que houve um combate político envolvendo vários grupos antagônicos sociais, políticos e econômicos, que, no entanto, se juntaram contra Mubarack e os “seus”. Para uma melhor análise partamos dos aspectos econômicos. Três fenômenos graves agregarem a maioria: desemprego enorme, salários vis e aumento crescente de alimentos importados, dominante no Egito. Isto afetava serviços e indústrias, Mas, havia algo grave também no campo: um favorecimento excessivo aos fazendeiros ricos contra fazendeiros pobres. Ou seja, união de desempregados, operários mal pagos, funcionários públicos depreciados, camponeses empobrecidos, etc. Esta base econômica compunha uma parte do que Antonio Negri chamaria de revolução da multidão, que se engrossaria com jovens educados sem emprego, mas com domínio de meios de informação modernos como internet e celulares. E completando godo este conjunto, não se poderia deixar de citar a presença pouco lembrada, mas imagisticamente muito vista, das mulheres. Vigorosas, decididas, fortes; belas ou feias, comoventemente tenazes, decisivas nesta possível revolução.
8) Há que examinar agora, que faziam parte deste ”grupo de baixo”, dos contrários ao regime, a Irmandade Islâmnica. E aí, sobretudo Israel e os americanos, procuraram demonizar esta facção, tentando comparar com os integrantes da revolução islâmica do Irã. Nada a ver. Primeiro, porque, não há agora um movimento para a instalação de uma utopia islâmica de poder político. Os jovens são tocados pelo islamismo, mas como salientaram vários pesquisadores, inclusive Olivier Roy, de forma individual, e separam bem suas reivindicações políticas e as suas questões religiosas. De qualquer forma, a Irmandade Islâmica reclama tratamento político renovado e uma representação adequada na Assembléia. No entanto, se vista mais atentamente, pode-se constatar dois pontos inquietantes nesta agregação que estamos considerando: eles votaram contra os trabalhadores nas greves de 2007/2008 e foram contra os camponeses na questão agrária. É, em verdade, um grupo de classe média e conservador. O que mostra o equívoco americano e israelita em relação à Irmandade e revela a rigidez dos militares na ampliação de sua esfera social.
9) Pois bem, a revolta só se constituirá numa revolução se os militares forem deslocados de seu posto de mando, se a democracia for instalada a partir de um governo provisório imediato, se a lei de emergência for renovada, se novas relações sociais de produção forem instaladas. Mas, uma coisa já se pode constatar. Este movimento está se tornando uma comoção de diversas colorações e diversas características nos países árabes, de um jeito no Bahrein, de outro no Irã, com as oposições começando a ver que as ditaduras e as formas não-democráticas de poder podem ser desafiadas em toda parte, desde os dois países falados até o Yemen e a Arábia Saudita.. Logo, as águas revolucionárias do Nilo podem invadir os solos complexos do Oriente Médio e proporcionarem uma inesperada fertilização geopolítica
10) Mas, talvez, como diz um outro meu amigo, os grandes perdedores já sejam os Estados Unidos e Israel. Os primeiros porque se mostraram inconsistentes na sua noção de democracia, sustentando por 30 anos Mubarak. Democracia um pouco prolongada, não é verdade? E igualmente porque apareceu durante as manifestações na praça Tahrir, e mesmo nas palavras de Mubarak, uma certa aversão a influência ambígua estrangeira. Isso sem falar que, economicamente, a incerteza aumenta para os americanos dada a possibilidade de fechar o canal de Suez à passagem do petróleo. Isto sendo motivo para uma vasta especulação financeira com esta commodity, sem nenhuma dúvida, emergiria como conseqüência uma competição empresarial forte na busca de fonte de energias alternativas. De outro lado, Israel teria um prejuízo significativo conforme os resultados futuros na região: os apoios e acordos com o governo presente, o recebimento subsidiado de gás vindo através do Egito, o apoio deste país ao sítio dos palestinos, e quem sabe, o retorno das questões do acordo de Camp Davis.
11) Para sexta-feira na Praça Tahrir – ou em outra praça do Cairo – está anunciada a comemoração do “Dia da Vitória”, que será mais um passo na questão política. O que nos permitirá ver com mais detalhes qual a capacidade de manobra dos militares e qual o potencial das cheias revolucionárias do Egito, seja para o Oriente Médio ou para outras partes do Mundo. Leibniz dizia algo assim: que um bater de asas de borboleta aqui, causavam inundações na China. E a pergunta que fica é um desdobramento desta: o que causarão - se houver - as inundações do Nilo?
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