quinta-feira, junho 17, 2010



CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
17 de maio de 2010
COLUNA DAS QUINTAS


O CONTRA-ATAQUE
NEOLIBERAL:
VAMOS CONTROLAR
O ESTADO!
Por Enéas de Souza


AS FINANÇAS CONTRA O ESTADO E A PRODUÇÃO

1) Há uma clara novidade na conjuntura presente: um contra-ataque neoliberal. Um ataque neoliberal das finanças à posição do Estado. A ironia da situação: as finanças, que foram salvas pela mão visível do Estado, estão pedindo, estão clamando que o Estado reformule a sua atuação e seja austero, faça uma política de contenção de gastos, etc. Aquela conversa neoliberal que eles chamam de política econômica. O Leviatã, na época da crise de 2007, agiu keynesianamente certo. Salvou, com o dinheiro ágil do seu cofre, as finanças em nome de vários aspectos. Em nome do risco sistêmico, da função estatal de emprestador em última instância, do resguardo do sistema financeiro, etc. Ou seja, o Estado – leitor, sinta a profundidade do gesto – contra os princípios neoliberais, teve que se fardar, vestir o seu traje de todo poderoso, se endividar, usar os recursos dos contribuintes, etc. para retirar os bancos, as instituições financeiras de situações críticas de insolvência e de bancarrota. E, na continuação do processo, levar o sistema financeiro para o hospital, cuidá-lo durante longo tempo, dando soros, dando sangue, injetando capital, operando reformas na contabilidade empresarial, com o objetivo de pôr em pé o sistema bancário e assemelhados. Sob certo ponto de vista, o Estado tomou uma atitude keynesiana.

2) Só que foi um keynesianismo perneta, “mais que perneta” disse meu colega André Scherer. Porque, uma crise como esta, na verdade, foi uma crise mais que a financeira, foi também produtiva. E não se aplica um keynesianismo pela metade. Faz-se uma ação completa. O Estado assume o comando da economia, salva as finanças e a produção. Lança junto com os “bailouts” do sistema financeiro, um conjunto de medidas que visam o investimento e o emprego. Mas, isto não aconteceu. Os americanos deram dinheiro para as instituições financeiras, mas não fizeram nenhum plano para atender a recuperação da demanda efetiva. E o ataque neoliberal é exatamente isso, ataque à recuperação da produção – para que essa fique nas suas mãos, jogando a carta pérfida da contenção de gastos, da austeridade a todo custo. Enfim, um ataque ao princípio keynesiano da demanda efetiva, que falamos acima. Mas, um ataque que não só contenha o Estado, como não modifique as relações funcionais entre as finanças e a produção. Mantenha as finanças tanto no seu poder especulativo como no seu poder de definir o crédito ao setor produtivo.

O LANCE MUNDIAL DO NEOLIBERALISMO

1) O Estado americano se endividou e aumentou o seu déficit anual sempre em função das finanças. E para evitar maiores problemas deixou de atender ao investimento e ao emprego, seja porque era importante não apoiar as empresas produtivas velhas, seja porque as dimensões para injetar recursos nas novas tecnologias eram vastas e complexas. O Estado deixou o barco correr. Portanto, o keynesianismo ficou pela metade, mancando; se é que podemos falar de keynesianismo. E só estamos trazendo esse assunto porque depois de dois anos digerindo a sua comida tóxica e infértil, as finanças resolveram lançar um forte ataque contra o Estado sob pena de que o keynesianismo não deu certo. O gasto do Estado não deslanchou a produção, o Estado está ameaçado pela dívida e pelo déficit e, logo, é preciso, que cuidadosamente, o Estado tome uma atitude contracionista, que pare de gastar. Dito de outra forma, o substancial é que o ele reduza a sua dívida, que baixe fortemente o seu déficit. Enfim, que o Estado (depois de ter salvo as finanças) faça finalmente a sua parte, se recupere e saia da economia... Depois do keynesianismo capenga, a recuperação do neoliberalismo...

2) Ora, este contra-ataque liberal é um ataque global. Sobretudo, depois desta crise grega que se transformou numa crise européia. E o mote principal das finanças já está dado. “Recuperar os Estados”. (Claro, depois de salvar as finanças). Só que quem está sendo visado fortemente neste momento são várias coisas. Em primeiro lugar, impedir que o Estado faça o outro lado de uma atitude do Estado, lançar programas de investimento que recuperem a economia e o emprego. Em segundo lugar, enfraquecer o setor dos trabalhadores, seja público, seja privado, visando, antes de tudo, baixar salários. Daí a receita clássica: fazer o Estado cortar gastos, ajustar as suas dívidas, podar o seu déficit, porque como uma casa um Estado deve viver dentro dos seus recursos. Ora, clarividente leitor, esta é uma visão de usurário, de bodegueiro. Se a gente gasta demais, aperta-se o cinto. Claro, claro, não falemos da ajuda das finanças. Isto já passou. Ora, um Estado não é um boteco, não é uma casa. Um Estado pode fazer dívidas para fazer crescer uma economia, porque o crescimento desta permite que, a certa altura, o Estado recupere o seu controle econômico. O investimento é o que faz aumentar a renda. E o que faz aumentar as receitas do governo é, obviamente, o aumento da produção e do consumo.

3) Não é preciso, portanto, quebrar a espinha dos trabalhadores nem impedir que o Estado apóie a produção. Este impedimento faz parte do domínio das finanças sobre o Estado e sobre a economia. E vejam o truque em toda a sua extensão. Primeiro, as finanças crescem ao máximo e, para tal, o Estado desregulamenta o sistema financeiro. Não controla nem bancos, nem bancos de investimentos. Nem hedge funds, nem private equity. Nem nada, nem ninguém. O Estado libera tudo, fica apenas atento ao risco sistêmico. Se der bode com as finanças, aí sim, aí ele entra como um bom xerife para resolver a reboldosa no saloon. Deixa-se solto o reino da especulação. Quando o sistema financeiro quebra, o Estado, como os antigos heróis das histórias de quadrinhos, age rápido para a sua salvação e se possível para a sua ressurreição. Muito cristão, portanto. E os Estados Unidos, bem como a Europa, são, é verdade, zonas da cristandade. Porém, quando o Estado deve salvar o resto da economia para levá-la novamente ao crescimento, as finanças, que se beneficiaram com o Estado – inclusive fornecendo empréstimos a juros cada vez mais altos ou comprando títulos do governo a taxas apetecíveis – agora, elas lançam uma campanha de austeridade do Estado. É exatamente isso (e isto é hegemonia): o Estado tem que ser das finanças. Se a economia deve crescer, tem que crescer a partir da liderança delas, a tal de “finance led growth”. Jamais se pode crescer invertendo a equação. Nada disso. Nada do investimento estatal e investimento privado puxando o resto da economia. Emprego? Antes de tudo, cortar os salários dos empregados. E os novos empregos? Só quando houver a retomada cíclica “natural” – e com salários diminuídos. As chamadas “flexibilizações trabalhistas” como se diz aqui no país da “Lavoura Arcaica”.

CORTAR A ORGIA DE GASTOS

1) Desde a Grécia até a Itália, e você pode incluir a França, passando pela Espanha (olha só embolamento no seu sistema bancário neste momento), e a Irlanda, e chegar até a Inglaterra, a Europa evidencia que está com os Estados arrebentados substancialmente por causa da crise financeira mundial e regional. Mas, a solução política da crise, para o contra-ataque neoliberal, é apenas uma. Ela se desdobra como resultado do apontamento da orgia de gastos públicos (Com quem? Para quem?) como causa. E, por essa razão, a pressão segue só numa direção: cortes dos salários dos funcionários e corte nas aposentadorias. Já que, como sempre, quanto aos juros nada. E toda essa “audácia” para que se possa recuperar as finanças do Estado com o objetivo jubiloso de pagar os bancos, que atiçaram a dívida pública. Na verdade, esta austeridade tem dois objetivos: salvar as próprias instituições financeiras, mas ao mesmo tempo, recuperar os Estados para que a citada dívida pública e o orçamento possam, num segundo momento, servir aos ganhos dos bancos. De que maneira? Recomeçando o movimento financeiro de crescimento das finanças e, por derivação, dar algum capital para o crescimento da economia.

2) Só que isso é complexo. Porque a recuperação financeira do Estado passaria por empréstimos de bancos de outros países ou de outros Estados em melhores condições. E o recurso conseqüente da austeridade fiscal, no final das contas, vai desembocar no colapso da demanda efetiva, tanto do consumo como do investimento. A espiral contracionista se tornaria numa depredação da economia pública, por ausência de receita. A proposta neoliberal ainda tentaria empurrar eventuais eliminações de impostos, sob a idéia de que os ricos e as empresas não pagando tributos consumirão e investirão mais. Quá. Quá. Quá. Quá. Pagar menos imposto não quer dizer nem mais investimento, nem mais consumo. Os ricos e as empresas vão acabar aplicando no mercado financeiro. E há até uma variante desta estratégia depressiva. Aumenta sim, impostos; mas aumenta impostos sobre os produtos, o que encareceria a vida da população e jogaria mais para o chão o nível da indústria e do comércio. O malefício é fácil de perceber: a baixa de salários, a baixa das aposentadorias e o aumento de impostos embutidos nos bens, certamente, causariam o empobrecimento na qualidade de vida. E não provocaria o efeito desejado: o aumento das receitas do governo. Tome assim recessão e até depressão no lombo.

A RESSURREIÇÃO E A MORTE DAS FINANÇAS

1)
Temos então um vasto contra-ataque neoliberal, e nele uma tentativa de recompor a posição das finanças no domínio político do Estado, impondo a este um constrangimento de gastos. Esta postura impediria que o governo assumisse a liderança do processo econômico, como também anularia a transformação da função prioritária das finanças no apoio à produção. Veja, portanto, caro leitor, se você quer ser mais uma vez enganado pelas finanças, seja você empresário ou funcionário público ou empregado privado. As finanças usam, entre outros aspectos, um determinado tipo de austeridade para que a população, a economia e os economistas lutem pela ressurreição das finanças.

2) É por essa razão que não acreditamos que a crise terminou, e que estamos no caminho da sua solução. Ao contrário, acho que a crise está entrando numa trajetória inquietante, porque esta aposta está nos levando a mais recessão, senão à embrulhada tragédia da depressão. A sociedade e a política é conflito, e o capitalismo, que é processo de concentração e centralização de capital, também é competição intensa, destruidora e reconstrutora. Estão em jogo, nesta autêntica Copa do Mundo, as forças sociais. As finanças estão tomando a iniciativa, tratando de uma vigorosa ressurreição. Estarão as outras energias políticas de acordo? Estarão dispostas a sacrificar os seus rendimentos, o seu nível de vida, as suas pretensões econômicas e sociais em nome de uma força que absorve os recursos financeiros da sociedade pela especulação?

3) A luta segue permanente e constante. Nada está definido por ora. As finanças especulativas têm parte com o peru: não morrem de véspera.

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