quinta-feira, março 11, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
11 de março de 2010
Coluna das quintas

O PODER FINANCEIRO
VERSUS
O PODER DOS ESTADOS

Por Enéas de Souza


SEM LIQUIDEZ, AS FINANÇAS NÃO FUNCIONAM

1
- Estamos vendo um segundo tempo da crise. E nos dá uma nova visão do entrelaçamento pernicioso da economia financeira. Pois encadeia na sua corrente devastadora a economia privada e a economia pública. De que maneira? Antes de mais nada, a economia como um todo precisa de uma moeda, sobretudo uma economia financeira. E uma moeda adequada para esta atividade, para a predominância das finanças, é obviamente uma moeda ágil, veloz, flexível, açulada. E só pode ser uma moeda que não tenha mais como base uma mercadoria concreta, uma mercadoria como o ouro. Logo, uma moeda sem nenhum valor intrínseco, uma moeda abstrata, com um valor garantido pelo Estado. Por isso, a moeda financeira articula a taxa de juros – definida pelo Banco Central – e os títulos públicos – emitidos pelo Tesouro Nacional.

2 - Por quê? Por causa da função monetária de reserva de valor. Pois, como sabemos, uma moeda é meio de circulação e medida de valor. Mas a potência de uma moeda se sabe exatamente pela sua capacidade de ser reserva de valor. Quando tiver preferência pela liquidez, como numa crise, o que faço? Busco aportar numa moeda forte, que é robusta porque é garantida pelo Estado. Pois esta é a coisa que a economia financeira construiu. Um Estado para emitir uma moeda adaptada a seu requerimento, uma moeda que tenha flexibilidade, cuja circulação e cuja velocidade seja fornecedora de liquidez. A liquidez, como forma de valorização do capital aplicado em títulos privados e públicos, é o desejo fundamental do capital financeiro. Mas, para ter uma moeda deste porte, só um Estado pode garantir. Mas quem garante esse Estado? O poder econômico, político, militar e ideológico de uma nação. No caso contemporâneo, o principal Estado é o americano, e por isso, o dólar é a moeda entre as moedas. Como diria o cineasta Scorcese, ele é a cor do dinheiro.

O DESEJO DE QUE TUDO SEJA ATIVO

1 - O mercado financeiro é a alegria dos ricos e dos investidores. Não é um clube exclusivo, mas é um clube para cachorro grande, para espertos e de raciocínio rápido. E ações extremamente prontas, como a de cavalos ligeiros. Agora. Neste instante. E daí, a busca permanente de ativos que dêem lucro fácil, lucro de ocasião, talvez até um lucro descuidista. Na verdade, o objetivo é o rendimento mais exagerado possível. Pois a alma das finanças é a especulação. E a idéia de especulação, para o sistema financeiro, é função de um rendimento, se possível, infinito. Ou seja, as finanças querem e têm mercados instantâneos, que são, pela rapidez dos movimentos, instáveis pela própria natureza. Permite, quando estamos no pró-ciclo, quando o ciclo sobe, que haja sempre um ganho crescente, um avanço aparentemente infindável no território feliz da lucratividade. Por isso, o desejo do mercado financeiro é de girar ativos, muito ativos, supostamente protegidos – securitizados é o termo – com o sonho irrealizado, mas sempre presente, de que eles rendam ilimitadamente. O capitalismo é um sistema transgressor, o capitalismo financeiro um capital vorazmente atravessador de limites. Capital bandoleiro.

2 - Nessa seqüência, o financista faz de tudo para que um ativo possa ter liquidez. E na volúpia do mercado, há que ter ativos. E tudo, na verdade tudo, passa a ser ativo financeiro: ativos reais, títulos privados, títulos públicos, commodities, compondo uma “corbeille”, uma diversificação enorme de títulos. Há no financista e nas finanças o gozo do jogo. É a tesão do movimento da bolsa, do movimento dos títulos públicos, da especulação, etc. O que alegra e faz deste mercado um verdadeiro ”crack”, uma venusiana “drug”, como a guerra para o soldado de “A Guerra ao Terror”, o ganhador do Oscar. O calor da fome de dinheiro é o próprio jogo do movimento financeiro. A mente está sempre buscando alguma coisa para dar grana, para render imediatamente. E assim, é preciso inventar e inovar em termos de ativos. Mas o que mexe com a alma do financista é achar sempre um papel cujo rendimento tenha uma elasticidade em excesso. Foi o que pensou o setor com os primes, os Alt-A, os sub-primes – a escalação das hipotecas do setor imobiliário. É o que pensam agora os especuladores com os títulos gregos. Só que cada ativo porta o seu risco. E, no fundo, a Medusa está ali para pegar os financistas, sempre em algum dia, no mercado financeiro, a casa cai.

3- E a saída é isso mesmo, é se aventurar e correr contra o risco. Porque o excesso instaura o risco como uma forma sempre presente de fazer a diferença entre os competidores. Por isso, as finanças inventaram e inovaram com o Credit Swaps Default, este Pelé do cassino financeiro. Mas, um Pelé que joga para todos os lados. Vejamos o esquema: o Goldman Sachs arranjou empréstimos para os filhos longínquos de Aristóteles. Mas, como o mundo é das finanças, o pensamento de Soros segue junto. Ou seja, e se a Grécia não pagar? Vamos nos proteger. E jogar contra a ela. E assim se faz um CDS contra a referida nação, com uma outra instituição financeira, que pagará na hipótese dos gregos não pagarem. Mas, por sua vez, esta outra instituição, para se resguardar do risco, encadeia um outro CDS para o caso de ter que pagar. Mas, não com as mesmas taxas. Quem sabe aposto mais alto? E eis aí a Grécia apanhada numa teia de aranha. E vem, como um pequeno monstro, para complicar o fenômeno, as agências de notação, as agências de ratings. Quando as coisas ficam perigosas, elas dão o alarme e abaixam a classificação da instituição ou do país. Conclusão: a Grécia para conseguir rolar as dívidas tem que pagar mais juros. De 3% passou a oferecer o dobro. De outro lado, como o país estava, por causa de suas contas, com um déficit anual de mais de 12% e uma dívida de 112% do PIB – quando o tratado de Maastricht permite apenas 3% e 60%, – o mundo caiu em cima do governo grego. E este, como acontece sempre nos tropeços da vida, joga para o bolso dos funcionários (baixa de salários e modificações do valor das aposentadorias) e para a carteira da população (um aumento de impostos), com a finalidade de recuperar as contas públicas. Logo, já se viu este drama, um desastre social completo. A solução de mercado e a felicidade dos especuladores é fazer a Grécia e a população grega sangrarem. E toca mais e mais juros. E o pior é que os CDS não têm nenhum controle, é um mercado de balcão, por isso não há nenhuma instituição que fiscalize e que faça a vigilância. É um mercado do caos, vende e garante o bordel dos títulos. E ameaça a Grécia, a Europa e o Euro.
(Chegará, por via da voracidade especulativa, ao dólar?)

A EXPLOSÃO DA BOMBA

1 - O desejo de que tudo seja ativo e seja motivo de especulação, se no primeiro momento é esperteza, no segundo, é um tiro na fronte, uma bala nos neurônios. Sim, porque este sistema é um sistema suicida. Uma bomba que pode explodir a qualquer momento. Se você, atilado leitor, assistiu ao filme de Kathryn Bigelow, “Guerra ao terror”, que já citamos acima, pode compreender como funciona este sistema, sobretudo o CDS. Ele, o CDS, é um título sempre perigoso, sempre prestes a explodir. E que tem que ser desarmado a cada minuto. Se no momento de euforia, na subida do ciclo, tudo funciona para o aumento das rendas financeiras, quando o ciclo desce, quando o ciclo fica como o Iraque, cada operação é um chamamento a explodir. As finanças se tornam uma ameaça completa e complexa.

2 - Pois vejamos o que está em jogo nesta crise grega. Primeiro, depois da atual crise de várias inovações financeiras nos mercados internacionais, e que leva a uma ruptura da valorização do capital na área das finanças, o rastilho da crise passa da esfera financeira privada para a esfera financeira pública. Com o ataque aos títulos soberanos dos países, começando pela Grécia, o caminho da especulação parece nítido. Visa, de saída, a Grécia, e depois prepara o lança-chamas sobre Portugal, Espanha e Itália, em ordem a ser estabelecida. E por fim, o objetivo – não tenhamos dúvida – é uma bala de canhão sobre o euro. Se a especulação chegar a derrubar esta moeda, o que no momento parece distante, o sistema financeiro terá prosseguido seu movimento suicida em direção à destruição dos Estados. E, no limite, de si mesmo. Naturalmente, que os Estados não quebram, mas podem ficar por muito tempo inviabilizados. E obviamente, é assustador, na mão das finanças. É só especulação e progressivos aumentos das taxas de juros. Se as coisas não funcionarem para os herdeiros de Aquiles e Ulysses, os juros vão subir – e muito. Como, um dia, subiu no Brasil chegando a mais de 40%. Ou seja, a Europa monetária poderá entrar na linha de tiro. Trata-se da trajetória da pólvora financeira.

NOVA RECESSÃO?

Bem, o problema do euro é simples teoricamente. É uma moeda financeira, capenga, coxa e incompleta. De um lado, a Europa é uma união monetária e tem um banco central; com isso, pode gerir a moeda e definir uma taxa de juros para a região, fixando o valor mínimo dos títulos dos países da comunidade. Só que, como não tem um Tesouro, não é uma união fiscal. Têm vários fiscos, os dos países, com situações muito diversas. E assim, ainda teoricamente, o euro, na Alemanha, pode ser moeda de reserva, porque ela pode se garantir, tem capacidade para sustentar uma moeda. Já na Grécia, como é que o euro, ali, pode ser reserva de valor? Impossível. O déficit e a dívida não suportam o balé financeiro. Então, o ataque dos especuladores na Europa começa por ela. Depois, o já dito, avançará para cima de Portugal, Espanha, Itália, etc. Um pouco mais, um pouco menos, eles estão na mesma condição da Grécia. E se esses países caírem, e forem ameaçados com taxas de juros expressivas, o Tesouro da Alemanha não vai resistir. E não resistindo, o euro tombará após a fileira de peixes mortos. Portanto, é hora imperiosa de contra atacar a especulação, para salvar os países e começar uma tentativa de reabilitação do controle dos Estados sobre as finanças. É preciso conter a instabilidade financeira do capitalismo. A crise está, portanto, no segundo tempo. Não é por nada, que Papandreou está pedindo apoio para todos, de Ângela Merkel a Obama. Até quando, Catilina, as finanças devastarão o mundo?

O SEGUNDO TEMPO

As perspectivas de resposta e de metamorfose da economia ainda estão muito nebulosas. Mas, a crise ainda não desatou nos Estados Unidos, o epicentro do terremoto financeiro. As finanças bloqueiam qualquer mudança maior no Congresso, onde o seu partido, o partido do Lobby, é o mais forte, e impede um novo marco regulatório. Enquanto os americanos não resolverem pelo menos: 1) a questão dos grandes bancos (to-big-to-fail), 2) enquanto não regularem ou interditarem os derivativos e 3) enquanto não terminarem o que eles chamam de “consume abuses”, ou seja, a exploração profissional e massacrante dos investidores miúdos e médios, a coisa financeira não vai avançar. Portanto, a sociedade continua na defensiva. E se os americanos estão maltratados, o resto do mundo quase não tem esperança. Desta forma, o que se mostra é que o segundo tempo da crise está promovendo a passagem da crise financeira, envolvendo o setor privado, para o incêndio na área das finanças públicas. Isto quer dizer que é preciso cortar o fogo, pois se ele continuar se alastrando, a recessão em andamento deve crescer. O que vai cortar as labaredas lida com a mudança da arquitetura do sistema financeiro americano e do sistema financeiro mundial. Não parece, no entanto, que as finanças estejam de acordo. E hoje, quem tem o poder são elas. Por um tempo, tudo poderá continuar como está, mas a economia financeira é um mundo de papel que, como a madeira, sofre sem resistência a ação das chamas, no caso das chamas das finanças. A Europa, fortemente ameaçada, esboça um movimento para tentar proibir nos seus domínios o apocalipse da especulação dos derivativos, como resultado do triunfo do capital financeiro.

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