CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
12 de novembro de 2009
SEIS PONTOS A VENCER
(ou o lado ímpar do capitalismo financeiro)
Por Enéas de Souza
O que é que a crise traz como um cavalo indócil?
Não o crescimento miúdo, que este por si só não muda nada. Mas o crescimento sustentado, que vem da transformação da economia. Pois, a recuperação do desenvolvimento capitalista, no caso da crise financeira mundial, depende da solução de alguns fatores, que estão como potros alvoroçados, aí, aos pulos, nos desafiando. E só, afrontados e encaminhados pelo nave das resoluções, é que haverá mudança de estrutura; e então, com um escuro que clareia, aí sim, a economia entrará numa nova fase, o vento balançando o investimento, o emprego e o consumo. Eis os problemas que, incômodos, devem ser encarados nos olhos: (1) regulação e nova arquitetura das finanças; (2) resolução da tensão da governança corporativa; (3) passagem da instalação para a expansão das novas tecnologias comunicação e informação; (4) concessão de alguns benefícios aos trabalhadores; (5) nova concepção do Estado capitalista; (6) nova configuração do sistema mundial dos Estados.
Será que são problemas que não se respondem?
Regulação e Arquitetura
1 – Economia financeira descarrilhou. Embora o trem seja uma metáfora antiga, pode-se usa-la para definir o desencaixe da dinâmica financeira atual. O que significa a necessidade de encontrar uma nova montagem para a economia financeira. Ou seja, um dos aspectos fundamentais é a combinação entre regulação e uma nova arquitetura do sistema. Faz-se necessário retornar a um ponto chave, arrumar a construção, deixar de rodar o carrossel especulativo. Para tal, o sistema financeiro tem que separar o sistema bancário do sistema financeiro não-bancário. Há que evitar a todo custo, o lado endoidecido do descontrole do sistema e a exacerbação do movimento da especulação, como ainda agora continua, com os investidores se endividando em dólar e aplicando em outras economias. No Brasil, por exemplo.. O remédio vem com prescrição definida: é imperiosos criar uma nova arquitetura do sistema financeiro, o que é já exercer uma certa regulação. Embora se possa definir que a regulação tem que ir mais além, centrar o disparo, o tiro, em cima de dois alvos: sobre o controle da alavancagem e sobre uma definição do papel e dos limites da securitização. Mas, só isto não basta: há que regular não apenas o sistema bancário americano, regulando também deixar o internacional. Significa sobretudo uma eficaz supervisão e controlar os paraísos fiscais. (Ouço os incrédulos, rindo como aqueles que riem ocultos em qualquer lugar do mundo!)
2 – Embutido nestes aspectos está um dos pontos chaves do sistema financeiro: qual a sua finalidade? Pois, se o sistema financeiro é uma entidade que serve a si próprio como um sistema que se auto-alimenta, é uma coisa; outra coisa será se ele tiver como função financiar o desenvolvimento produtivo. Trata-se de um jardim a ser bem desenhado, alguém com o talento de Burle Marx, porque se não as flores que ali forem cultivadas, não encontrarem o regador que traga a água indispensável, e as regras não estiverem bem adequadas, como às vezes é peculiar ao sistema financeiro desregulado, o que vai acontecer é o retorno do desastre. O descontrole e prejuízos. Por essa razão, a opção de ter como finalidade o fornecimento do crédito à produção, por si só vai forçar o sistema a uma limitação bloqueadora da volúpia especulativa. Claro, terá que haver uma regulamentação bem adequada, uma fiscalização e uma supervisão com um roupa bem feita, para que o sistema não ensandeça e o crédito não seja transformado numa banca de cassino, como aconteceu recentemente.
3 – A pergunta insolente: quem é que vai determinar o controle das finanças, a nova arquitetura e uma nova regulação? O Congresso americano terá condições para fazer um bom trabalho, independente dos fortes lobbies financeiros? Portanto, a pergunta como num teatro de questões se desdobra: quanto tempo levará para que essas transformações surjam, agora ou depois, se é que vão ocorrer? Por isso, alguns economistas encontram como balão cativo a seguinte idéia: a previsão de uma longa estagnação da economia dos Estados Unidos. Naturalmente está incluído nesta realidade um prolongado adeus ao desenvolvimento do sistema econômico produtivo. Então vejam: Schumpeter sabia que o capitalismo é crédito, mas com o sistema financeiro não atendendo a sua precípua posição de apoiar a sociedade - o crédito não fluindo - veremos, então, que a produção vai andar de bicicleta num circuito de fórmula Um.
Logo: aonde vai se achar o sistema financeiro adequado para o desenvolvimento da economia?
Como é que se livra de uma contradição?
1 – A financeirização da economia foi um processo complexo que passou pela estrutura básica da corporação capitalista, seja financeira ou produtiva. Ela introduziu dois aspectos fundamentais. O primeiro: o princípio do valor acionário, o return on equity, que significa o requerimento da busca do maior valor para o rendimento de uma ação. Dito sucintamente: o princípio da maior valorização possível do referido título. Com esse princípio, a financeirização envolveu e capturou a corporação produtiva. Quanto ao segundo aspecto, podemos dizer que a empresa capitalista acabou por inscrever nela uma forte e vigorosa contradição. E contradição difícil de ser acalmada. Já que altamente explosiva, um dinamite no coração da entidade empresarial. Porque estabelece uma tensão entre dois lugares, dois polos que se afrontam irreversivelmente. Temos de um lado, o proprietário do capital, o acionista, o investidor, que está fora da empresa; e embora estabeleça o princípio da maior renda possível para a sua ação, ele não tem forças para organizar a entidade na qual investe (operações, decisões, sistema de informações, produção, financiamentos, empréstimos, etc.). E temos do outro lado da contradição, o capitalista em função, o popular executivo, que na verdade tem salário, tem vantagens indiretas, tem bônus (não vinculado aos resultados) e que são remunerações de assalariado. E têm ainda as “Stock options”, ações vendidas a ele em condições especiais. E por elas, este executivo é também proprietário do capital.
O que exacerba este contradição?
2 – Ora, vejam só! No primeiro lado, o proprietário do capital está fora da empresa, e tem direitos sobre os resultados da entidade. No segundo, o capitalista em funções, que, no regime atual é um misto de acionista e assalariado altamente bem remunerado, que permanece alojado na administração do dia a dia. Nos conflitos de hoje, o capitalista em funções tem levado enormes vantagens sobre o proprietário do capital, não só porque sabe das perspectivas estratégicas da corporação como conhece o futuro da empresa. Adquiriu, na direção da mesma, movimentos de alta plasticidade, perspicácia e agudeza dos negócios, e tem como um sapo bem esperto possibilidades de cair fora do barco antes que ele afunde (como ocorreu na bolha ponto.com). E, mesmo, quando o navio naufraga, diante da volúpia das águas adversas, sai lampeiro com o seu bônus posto em dinheiro na sua aprazível conta bancária. Lembremo-nos do executivo que quebrou uma companhia e foi embora com 140 milhões de dólares. E o que temos visto, seja nos fatos concretos, seja nas tentativas de regrar o sistema, é que não se fabricou uma forma de dominar essa questão, essa oposição, esta contradição, seja na realidade prática, seja através do Executivo (com exceção dos bailouts), seja pelo Legislativo. O bônus tem sido praticamente intocável. Sagrado. A aristocracia, por seu talento, dizem eles, tem direito ao referido item.
3 – Mas, o problema não está bem aí. O problema está que quando tudo aparece no melhor das cores, quando o ciclo sobe, ninguém se preocupa com o ganho dos executivos. São talentos que merecem. O caso, no entanto, sofre uma reversão profunda, na decida do ciclo, quando a corporação vai entrar em zonas turbulentas. Nesta hora, é impossível controlar as manobras do capitalista em funções. Ele tem a velocidade do Ulysses contra a tartaruga, ao contrário que demonstrava Zenão de Eléia. E se o personagem do executivo age com rapidez e com as informações privilegiadas; se ele tem a lei ao seu lado, mas não tem a ética por convicção e por comportamento, esta questão parece a canção mais escura de todas. Vale como tema encarniçado. Reside nele talvez a maior dificuldade de resolver o beco sem saída, o impasse no qual se meteu o sistema capitalista. É, de fato, uma divergência intra-muros, por isso mesmo, um combate de touros. Um combate “eterno”. No qual a aristocracia do capital, os executivos, até agora tem triunfado em todos os momentos do ciclo, enquanto o investidor só vence quando o movimento da economia ascende. Desigualdade que reacende a luta, um tem o dinheiro, investe e ganha parcialmente; o outro, domina internamente a empresa e ganha até quando perde.
Quem se instala, quer se expandir!
Encontramos na atividade econômica contemporânea uma terceira dificuldade muito forte. Na dinâmica capitalista do neoliberalismo, a economia foi puxada pelas finanças que colocou as Novas Tecnologias de Comunicação e Informação (NTCI) como a esfera mais ativa do setor produtivo, justamente na ativação de transformações de outros setores. A sua instalação permitiu que a própria economia financeira deslanchasse, através de uma rede de equipamentos, de informações e de operações. Foi a NTCI que protagonizou um desempenho muito especial igualmente no setor de bens de capital, introduzindo a mecatrônica, tanto quanto possibilitou que a indústria bélica pudesse fazer guerras à la vídeo-game, como a guerra do Golfo, e proporcionou uma revolução enorme na mídia contemporânea (imprensa, rádio, TV, e indústria de entretenimento – inclusive cinema). Diga-se a bem da verdade, que esta última foi decisiva para a expansão do capitalismo financeiro, sobretudo, desvinculando a cultura, desestruturando a arte, destroçando a mídia liberal que permitia opiniões adversas, além de construir um sistema de valores práticos no realce de um estilo de vida, impugnador de valores espirituais, culturais, etc. e que cativaram as diversas nações do mundo. Pois bem, estes setores se instalaram, mas agora precisam expandir-se. E para tal é indispensável que a política, a política econômica, a política financeira e o planejamento de longo prazo fortaleçam o desenvolvimento da expansão do setor das novas tecnologias de comunicação e informação. É preciso, portanto, que se transforme a financeirização em investimento produtivo. Como essa metamorfose vai acontecer?
E os trabalhadores não levam nada?
Numa crise de porte, a legitimação do capital financeiro desceu lomba a baixo, tornou-se um cão sem plumas. Arruinou muitos investidores, mas, principalmente, levou aos trabalhadores ao desemprego, à perda de ativos (casas e carro, por exemplo) e a um endividamento brutal da sua renda. Este capitalismo financeiro precisa, agora, construir uma nova sustentação com um tratamento diferente para os assalariados. Pode-se vislumbrar que uma transformação do Estado pudesse alterar as condições acima descritas. Um ponto seria um programa de obras de estímulos às industrias que atuam na infra-estrutura da produção ou das cidades e que encadeiam outras indústrias, possibilitando a expansão da produção e do emprego. Um outro ponto, absolutamente chave, seria descapitalizar, ao menos parcialmente, os setores de direitos civis, que foram articulados como fronteiras internas do capital. Fronteiras que possibilitaram um mercado cativo para o capital financeiro como a saúde, a educação, a previdência, a segurança, a cultura, etc. Não temos idéia como estas zonas se constituem numa área tremendamente difícil de serem conquistadas ao capital. Basta ver a batalha absolutamente dramática do healthcare americano. Por essa razão, para que o capitalismo dê um novo salto, há que imperiosamente tornar-se legítimo, social e ideologicamente. É preciso conquistar a adesão dos trabalhadores. E aqui é uma área onde o capital poderia ceder espaço. A sociedade e os trabalhadores poderão recuperar este espaço?
O Estado vai deixar de defender os banqueiros?
Essas mudanças, na verdade, só poderão ser alcançadas se o Estado entrar na arena e tomar uma certa distância e encontrar uma determinada autonomia em face do capital financeiro. E na autonomia conseguir organizar, ordenar, coordenar, negociar, programar, desenvolver, e dirigir, novas perspectivas para a sociedade. E quais são essas? Exatamente as que falamos desde o começo da nossa coluna: ou seja, patrocinar uma nova arquitetura e uma nova regulamentação para o setor financeiro; encontrar uma forma minimamente razoável de manejar a questão da governança corporativa; conceber uma reformulação na forma própria do Estado e dos seus direitos sociais. O que significa agir mudando a sua atenção exclusiva à salvações do sistema financeiro, buscando proporcionar pelos seus estímulos fiscais uma transformação produtiva da sociedade, articulando crédito e produção, bem como estimulando obras que conseguiriam angariar uma melhor situação de trabalho para os desempregados da economia que passou. Ou seja, o Estado seria a única entidade que teria a possibilidade de conectar setores ociosos com setores carentes deste recurso, que simplesmente pelos mecanismo de mercado seria impossíveis de reatar. Portanto, a mutação do Estado é vital. O capital continuaria a determiná-lo, mas com outro - ou outros enfoques.
Que venha uma nova configuração econômica!
E é por meio do Estado, junto com a estratégia de empresas globais, que uma nova configuração internacional pode ser atingida, ditando um dinamismo mundial para uma economia distinta da que passou. Isto quer dizer que há enormes questões a serem negociadas, numa agenda positiva com a comunidade planetária: fluxos controlados de capitais, investimentos produtivos, comércio atrativo entre as nações; negociações para a expansão, fiscalização e supervisão do sistema financeiro, etc. O objetivo destas realidades seria a metamorfose da atual situação mercantil, incorporando novas inserções de Brasil, China, Rússia, Índia, por exemplo. A estação não deve ser das rosas, algo que acabe prematuramente. A plantação deve ser de sequóias, como no filme ”Vertigo” de Hitchcock, que são árvores que duram muito tempo. Isto quer dizer que existe a possibilidade de uma nova constelação de países, numa nova ordem geo-econômica, tendo como centro da expansão as novas tecnologias de comunicação e informação, a energia, o meio ambiente, o setor farmacêutico, etc., descortinando uma melhor distribuição do investimento, do emprego e da renda entre as diversas nações. Isso tudo são desenhos agradáveis e coloridos; por vêzes fantasiosos, por vezes esperanças justas; mas que só podem se dar no jogo e no confronto dos membros da própria configuração, sempre na procura de uma hierarquia diferenciadora de poder e de riqueza. Há muito que acomodar: moeda, investimento, repartição das áreas industriais, emprego - ou seja, uma nova divisão do trabalho. Claro, este novo álbum de família, ornamentado por uma economia financeira que faça uma adesão razoável ao campo produtivo.. Por essas análises se pode ver a extensão dos problemas que terão que ser vencidos para uma nova organização da sociedade mundial. De qualquer modo, a gente percebe que deve haver vastas alterações na estrutura da economia do mundo E que não vai ser assim na boa vontade e no amor que as coisas vão se resolver minimamente. Para tirar o mundo da recessão não basta querer crescer. Não. É preciso mudança na mentalidade e na ação dos que ganharam inclusive. De onde se pode ver que há muito a percorrer, e que não se pode achar que as desigualdades serão eliminadas. Talvez sim, minoradas, mas não se pode ficar surpreso se elas forem ampliadas. Vivemos um sistema desigual. Mas que tudo terá que ser feito com legitimação. E, ora meus amigos, há muito chão a caminhar. Seja para melhorar o mundo, ou piorá-lo - isso, como diria Nelson Rodrigues, não é coisa de meia-hora, quarenta minutos