quinta-feira, abril 09, 2009

Quinta-feira, 9 de abril de 2009

O PUNHAL DO DESAFIO
(ou a estratégia política de Obama)

As areias do sol queimando

O caminho para a renovação do poder americano começa pela sua liderança. E ela vem com uma mudança de tom e com uma mudança de objetivos. Curiosamente, depois de uma presidência tosca, grotesca e truculenta socialmente, os Estados Unidos transformaram o seu rumo, desenhando um comando diferente. Naturalmente que em política, não existe apenas uma cor, existe um espectro de cores, o que significa que não só se travam disputas, como emergem contrastes e brotam-se diferenças, neste jogo entre vários competidores. O que interessa marcar aqui é a novidade estratégica dos americanos. Num primeiro sentido, a América do Norte, quando Obama entra em cena, atravessa uma arena muito complicada. Seguir na estrada proposta por Bush e Cheney e pelo neoliberalismo era seguir para um deserto, pleno de areia, adornado por montanhas pedregosas no horizonte, e um sol de chapa queimando, um verdadeiro campo explosivo.

A fenda e a operação

Pois, a questão objetiva, quando Obama adentra ao teatro político, se mostra e se passa assim: uma crise econômica de uma vastidão impensável - descalabro financeiro e esgotamento de um padrão de acumulação produtiva - acompanhada de uma devastadora crise da política externa. Resultado mais que óbvio, de um poder imperial que tinha se imolado na guerra contra o terrorismo, na guerra contra o Iraque, na desconfiança geral dos países e numa descrença manifesta quanto a sua capacidade de liderar a sociedade ocidental. Os Estados Unidos estavam isolados e perdidos. A vitória de Obama foi a chance que os americanos se deram a si mesmo para tentar uma transformação. O ato final da administração Bush principiou com a crise do sub-prime, um furacão que atravessou a América e desdobrou seus efeitos e pôs a nação desnuda, revelando as suas contradições desde os problemas econômicos e políticos até as questões culturais e civilizacionais. Não há mais dúvida nenhuma, houve uma fenda que se abriu em abismo no coração do gigante do Norte.

O lance para deter o ponto irreversível

Agora, com a viagem de Obama a Europa, houve o primeiro lance. E já se pode ver que há um novo Estados Unidos em ação. Houve o disparo de uma primeira idéia estratégica. O ponto chave foi recuar de sua pretensão imperial via guerra e finanças. Com isso, a tensão criada no sistema, que estava muito alta e poderia chegar a um ponto virtualmente perigoso e ameaçante para a nação americana, teria que diminuir para não atingir um ponto irreversível. Então, o primeiro objetivo dos Estados Unidos para transformar o império foi um lance (1) que mudasse o estado do jogo entre as nações; (2) e que estabelecesse proposições que fossem o oposto do que estava acontecendo: em vez de guerra, desarmamento e paz; em vez de especulação, tecnologia e produção; em vez de crise de energia; pesquisa energética; em vez de aquecimento global; luta contra a questão climática. Foi nesse lance que começou a reversão do quadro internacional.

O símbolo e a máscara

Como se vê, foram propostas feitas em perspectiva, abrindo itinerários, avenidas e trajetórias de longo alcance, e que não serão operacionalizadas sem obstáculos, sem adversidades e sem adversários. Mas, o lance de Obama se dá e se constrói a partir do símbolo. Ele próprio, Obama, é a mudança. Antes de tudo porque é o primeiro negro a ganhar a presidência da nação. Na verdade, o vencedor é um mestiço onde está incluída uma herança muçulmana. No entanto, existem mais dois aspectos significantes que dão amparo ao caráter simbólico de sua presença no cenário político: contra as finanças, no discurso no Congresso em fevereiro, revela um projeto de longo prazo para a economia dos Estados Unidos. Este discurso encadeia, ao lado de outros discursos, de diversas ações, de múltiplas negociações e tantas proposições, um estilo que tem como objetivo assegurar que o líder e a liderança dos Estados Unidos mudaram. A finalidade é tirar a mascara do medo e da prepotência e pôr no seu lugar o rosto da confiança, da sensibilidade e da escuta. A liderança pela sua própria aparição tem a ambição de ser uma nova figura, um símbolo para detonar a máscara.

O Clausewitz da paz

O que Obama representa e o que ele quer? Ele representa a visão liberal que volta a aparecer historicamente para tentar romper com a imagem guerreira introduzida acintosamente por George Bush, uma imagem guerreira desastrada, uma liderança avessa ao debate e às discussões, um comando de pura imposição da força. Ou seja, Obama traz a tentativa de construir a imagem de um império, no sentido contrário, que nasça da negociação, da riqueza benevolente e da tentativa de harmonia. Porém, ele surge no bojo de uma renovação da própria força do império, que pretende reconstruir um capitalismo baseado numa outra forma produtiva, que deixa espaço para as finanças, mas que quer um sistema financeiro mais controlado, mais a serviço do crédito do que da especulação. Pretende trocar um capitalismo “hard” para um capitalismo “soft”, se isto for possível, superando a guerra como o elemento básico, deixando espaço para a dinâmica da paz. Por essa razão, diríamos, fazendo um jogo de palavras, que os Estados Unidos nos propõe, pensando em Clausewitz, que se a guerra é uma forma de política, vamos para a paz como uma forma de guerra e, por consequência, uma forma de política.

O real e a utopia

A estratégia do novo presidente é fazer um deslocamento do movimento bélico do Iraque para o Afeganistão e, com isso, ir arrebanhando o apoio da Europa. E visa paralelamente conseguir uma diminuição da tensão com o Irã, embora sem ceder na questão do escudo nuclear. Com essa lógica, trata de mudar a inflexão no mundo muçulmano, afirmando que os Estados Unidos não estão nem estarão em guerra contra o Islã. Faz assim uma ação propositiva de acabar com a idéia conservadora e quase ridícula da “guerra das civilizações”, por consequência abrindo também a perspectiva de um relacionamento novo entre Israel e Palestina, etc. Contudo há uma nuance a estabelecer no presente tema. Além do deslocamento da guerra ao terrorismo para o Afeganistão, concentrando o ponto de frontal antagonismo, ao mesmo tempo, investe na idéia principal de sua estratégia política: inverter o tema da guerra pelo da paz, lançando, sobretudo, a estratégia do desarmamento. Com rigor, Obama faz um lance oposto ao normal dos últimos anos dos Estados Unidos. Ao contrário de exigir que os adversários abram mão de seu arsenal atômico, os Estados Unidos giram o jogo e dão o exemplo: eles se propõem abrir mão de suas armas. Este lance começou em Londres com a Rússia, na tentativa de diminuir o arsenal nuclear. O método de Obama é combinar um movimento real com uma utopia geral pela paz. Com isso alimenta um conteúdo moral na sua liderança e abre o jogo na direção de um apaziguamento das tensões. Todo este aspecto da sua estratégia não será feito sem discordâncias, sem combates, sem desconfianças, e talvez não sem turbulências imprevistas.

A racionalidade para domesticar

Então, a racionalidade do jogo de Obama começa efetivamente com essa carta da paz, essa carta do desarmamento. Diante dos impasses políticos de toda ordem dos Estados Unidos, o que se evidenciou nesta conjuntura é que ele deve voltar ao caminho da utopia liberal e a designação da paz como forma de vida entre as nações. Trata-se de uma maneira de mudar a sua liderança e o seu poder, com um objetivo substancial de conseguir tempo para que possa – um dos pontos reais de sua crise - domesticar as finanças, abrindo espaço para a reconstrução produtiva do planeta. Pois o embrulho americano foi total, o neoliberalismo levou esse navio para um impasse econômico e para um impasse político, para o desgoverno das finanças e para a desorganização política da guerra. Pois se o oposto é o que vai ser tentado, a paz e a produção, nesta mesma mudança, se poderá perceber os adversários internos de Obama, aqueles que se filiaram ao governo Bush, a indústria financeira, a indústria bélica e a indústria de construção civil com base na guerra. Esses grupos em processo de derrota vão responder fustigando de uma forma ou de outra. Cheney, por exemplo, já disse que os americanos não estão protegidos contra o terrorismo. E no plano da competição entre as nações, não podemos esquecer que se ninguém tem poder para enfrentar os Estados Unidos, há, no entanto, a necessidade de definir um novo mosaico de relações internacionais. Nessas relações se cruzam aspectos políticos e aspectos econômicos, constituindo um panorama que vai mudar a antiga configuração da disputa entre as nações. (Um exemplo desta “corrida imperialista”, como chama José Luís Fiori, é, dada a crise das finanças americanas, o avanço financeiro da China acertando swaps com a Argentina e instalando uma filial de um banco chinês na cidade de São Paulo).

A dialética do poder e do capital

Desta forma, a estratégia de Obama é muito nítida: desfraldar a campanha do desarmamento e da paz para obter um determinado tempo, com o fim de reformular as atividades econômicas, re-encaminhar as finanças, reorganizar o curto prazo produtivo e lançar um novo projeto de um outro padrão de acumulação. Mas, para modificar e expandir o poder americano é preciso torcer o objetivo da política externa e angariar condições para a construção de uma nova economia. E esta economia, de volta, poderá confirmar a renovação deste poder. É uma tarefa que para ter êxito há que articular bem a estratégia política e a estratégia econômica, armando uma dialética muito fina e muito firme entre o curto e o longo prazo. É dela, desta dialética, que nós poderemos julgar se os trabalhos de Obama vão, de fato, construir uma nova liderança, um novo capitalismo e um novo poder americano. Aqui está o punhal do desafio.

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