30 de setembro de 2010
COLUNA DAS QUINTAS
Uma fábula brasileira
PORQUE
VOTARIA EM
Por Enéas de Souza
Ora, Machado era um conservador, portanto não poderia votar em Dilma Roussef. Mas, Machado tinha o senso da observação e da construção dos romances e dos personagens, da narrativa na História Numa época como a de hoje, com o seu ceticismo – e não cinismo – ele duvidaria que o PT fosse fazer um bom governo. Mas, seu ceticismo era um método para não se entusiasmar com resultados humanos. Do homem, ele tinha uma certa dúvida; achava que o que os movia era o interesse. (Brizola diria os interésses). Bom cara, este. Achava que os homens não eram confiáveis. Machado, todavia, tinha uma grande virtude; se poderia dizer que tinha uma grande aposta. Quando pensava na Independência do Brasil, descortinava-se nele um grande júbilo. E pensava certo: se a Independência do Brasil fosse a origem de uma nação vigorosa, essa nação deveria ter uma literatura de primeiro nível, capaz de se medir com as literaturas dos países formidáveis do velho mundo. O lado colonizado era querer ser igual à Europa; o lado revolucionário era querer ter uma literatura que pudesse se bater com a dos europeus.
Pois, o Machado de Capitu, pensou certo. E se pôs, como um gato serpenteante, a escrever, com a sua língua plástica e simples, sobre a fisionomia do Brasil. O Brasil já tinha Joaquim Manuel de Macedo e sua “A Moreninha”; Manuel Antonio de Almeida trazendo “Memórias de um Sargento de Milícias” e José Martiniano de Alencar, a prosa mais caudalosa do Brasil. As cores brasileiras escrevendo as letras verde-amarelas. Mas, por mais que fossem gigantes, os três não tinham feito uma literatura capaz de se medir com a literatura portuguesa ou mesmo a literatura francesa ou inglesa. Enfim, José de Alencar tinha uma linguagem como as matas nacionais, luxuriantes, verdes, altivas, indianista, genuinamente vegetal, cheio de fauna, mas também trabalhando a realidade urbana da época. Seus personagens tinham muito de europeus. Quem não leu o Guarani? (Meu pai me obrigou a ler numas férias. E para se certificar que lia, tomava o capítulo após a inesquecível e aborrecida hora de leitura). Nossa imaginação romântica viajava com Ceci e Perí.
Daí veio Machado. Primeira coisa que fez, sobretudo depois de sua doença, que o levou a voltar indisfarçavelmente maduro e mais cético ainda, foi escrever.... Que é que ele escreveu mesmo? “As Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Corra para ler e reler; este é um livro revolucionário, audacioso, fantástico, brilhante, corajoso, pleno de ironia, zombando de alguns PSDBs da época. O próprio Brás Cubas, o seu cunhado Cotrim, Lobo Neves, Virgília, Quincas Borba, o filósofo; etc. E se a gente vai lendo o romance, a gente percebe que o autor terça armas com os grandes escritores do mundo: Pascal, Goethe, Voltaire, e desaba a sua história num mundo onde quem comanda é Pandora, que traz sempre uma sacola de bondade e de maldades ( sendo a esperança a pior delas). O gesto de Machado é medir-se com Cervantes, com Dante, com Shakespeare, ele, um pobre do Brasil, um coitado. Mas foi o primeiro que botou para longe o “complexo de vira-lata”, que Nelson Rodrigues inventou décadas mais tarde para definir a condição do Brasil e dos brasileiros.
Então falei até agora, meio como um errante, sobre várias coisas de Machado. E o que é que isto tem a ver com a Dilma? É que a Dilma está impregnada desta loucura do Machado, a audácia. Ou seja, é preciso criar este país que a Independência deixou lá na História. Um país que, na verdade, se a gente lê o Novais, o Fernando, a gente percebe que Portugal é que estava ficando apêndice do Brasil e não o contrário. O Brasil foi abortado por uma Independência que se alçou a ser império, vide José Bonifácio de Andrade e Silva, mas que continuou escravocrata, que deixou-se estar como um país secundário. O contrário do que queria Machado. E o contrário do que fez Machado. Sim, porque Machado foi um gênio, um cara que estava muito adiante de sua época. Veja o que se disse dele Carlos Fuentes: “50 anos antes de Borges, Machado abriu o caminho para ele”. Ou Salmon Rushdie: “Borges é o escritor que tornou possível Garcia Marques; então, não é exagero dizer que Machado de Assis é o escritor que tornou Borges possível.”
O que interessa. Machado estava querendo um Brasil independente, capaz de encarar os grandes. Fez isso na Literatura. Pois, o Lula, depois de Vargas, Juscelino, entrou nesta vereda, neste sertão, neste encontro marcado. Lula mudou a cara do Brasil, com todos os problemas que o seu governo teve no primeiro mandato. O segundo, se não foi céu de brigadeiro, foi audácia. Inclusive na crise. E Dilma e Celso Amorim, foram as duas naus que fizeram o Brasil avançar. De um lado, uma política externa excepcional e, noutro, uma sustentação econômica com uma estratégia econômica robusta. E Dilma pretende continuar a obra de Lula, o que significa “navegar é preciso” neste caminho da construção de um país integrado na economia mundial, com distribuição de renda, com ampliação dos benefícios à população, etc.
Aí é que está. Machado era conservador em face das disputas políticas estabelecidas no Brasil Império. Veja o leitor o que ele pensa ficcionalmente, dessa realidade, em “Esaú e Jacó”, onde dois irmãos políticos acabam por matar Flora, símbolo da política brasileira, Hoje, ele veria que o trapézio da política se mexeu e caminhou para a construção de uma nação integrada medianamente no sistema geopolítico e geoeconômico do mundo. Deixou de ser uma nação onde o ministro das Relações Exteriores tira o sapato sob a ordem de um guarda americano, para ser uma nação que atua fortemente na América do Sul, na articulação de vários fóruns e diversas relações nas múltiplas regiões, na questão do Irã, etc. Ou seja, há um projeto de Brasil que Lula construiu e está legando, dentro da sua ação política, para que Dilma continue. Um projeto de uma nação independente que, dentro de sua limitação econômica, política e cultural, pretende participar nas decisões do que acontece nos rebuliços do planeta.
Bem, pois acho que, apesar de conservador, irônico, com insuspeito pendor cético, Machado, se fosse votar hoje numa secção eleitoral, mesmo um pouco desacostumado com a máquina de votar, cravaria na urna eletrônica o nome de Dilma Roussef. Lula e Dilma estão fazendo o projeto que Machado esperou que a Independência do Brasil trouxesse. Machado votaria, votará, no domingo, com sua barba bem aparada, com os seus óculos de pincenez (a turma perguntando: quem é esse cara?), na candidata que participa de um projeto de Brasil. A mão de Machado porá na urna o voto que dará a Dilma a possibilidade de dar continuidade e destino à trajetória daquele trem que partiu da estação da Independência.
(Ao menos, é o que os brasileiros desejam!)