CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
25 de fevereiro de 2010
Coluna das quintas
O SEGUNDO
TEMPO
DA CRISE
Por Enéas de Souza
O MEU MUNDO CAIU
1 - Para compreender a possível metamorfose da sociedade contemporânea é preciso saber da construção que está em rota de desabamento. Uma madeira cheia de nós e tensões, cupins e baratas. A finalidade é única: não repetir o mesmo, não realçar de novo esta hegemonia financeira. Pois, é da realidade de agora que temos que falar. Ela se engalanou, se empolgou, cresceu com os seus delírios, as suas especulações e numa das esquinas da vida, esbarrou no carro da crise, que vinha na contramão da ideologia neoliberal. O que aconteceu? Antes de tudo, a articulação sistema financeiro e Estado, sistema financeiro e produção, sistema financeiro e população foi armada, ao longo dos últimos trinta anos, para exibir a vitória das finanças dentro do triunfo do capital. Digo triunfo do capital, porque a Guerra Fria, com a queda da União Soviética, trouxe para o primeiro plano o lado financeiro do empresariado, a arrasadora presença das corporações bancárias e não-bancárias. Coisa que ficou dominando, fustigando, planta viva e planta carnívora, construindo moeda financeira; fazendo subir e descer mini-crises nos mercados de ativos financeiros; entrelaçando moeda, títulos privados e títulos públicos; fazendo um rodízio especulativo contra moedas, contra as aplicações imobiliárias, contra as ações na Bolsa, contra os produtos financeiros e especulando ostensivamente contra o petróleo e commodities. Depois de tantas crises miúdas e médias, explodiu, sem refinamento a grande recessão de 2007, puxada pelo personagem marginal das sub-primes.
2 - Como escrevemos num trabalho chamado a “Insustentável Leveza do Capital Financeiro”, o sistema financeiro girava uma máquina, que unia desregulação, alavancagem, sindicalização, securitização, agências de ratings e articulação especulativa das finanças e da produção”, buscando a acumulação financeira do capital. Ou seja, um modo outro do capital de acumular, ao contrário de aumentar seus volumes de riqueza pela produção, agora, a sua forma tinha a lantejoula e a plumagem do crescimento via papéis. Num mundo, onde tudo era ativo financeiro, desde os próprios, até os ativos monetários e os reais; as fábricas, as mercadorias, as empresas, a tecnologia, as hipotecas, os dólares, os euros, as obrigações, os derivativos, tudo, tudo, se perfilavam e se comportavam como ativo financeiro. Vendeu-se tudo, comprou-se tudo. Só que um dia, como sempre, alguém desconfia desta roda da felicidade, e sai fora. E o mundo cai, as finanças acordam em crise. Mas dormem sonhando com o retorno da forma que desmanchou-se. Na aurora seguinte, começa um devastação social, que devasta nos Estados Unidos, atravessa a Inglaterra, incomoda na China, requer malandragem no Brasil e desmaia na Grécia.
Então a pergunta acorda: “que tipo de construção social está diante de nós?”.
A DIALÉTICA ESTADO-CAPITAL
1 - O Estado a serviço das finanças
Vamos examinar um aspecto da complexa questão. Trata-se da relação entre a economia e a política, e nela, a construção do Estado financeiro, o Estado que acompanhou a carreira das finanças como a linha das ondas que chega com a maré à praia dos ganhos maiúsculos. Todo o objetivo da hegemonia financeira foi exatamente isso, criar um Estado poderoso, altamente coercitivo, mas flácido em relação ao desejo especulativo e a ambição de rendas fartas do setor. Uma sociedade precisa de um Estado que combine seus órgãos, sua burocracia, suas medidas de política econômica, seus planos de tratamento social das classes desfavorecidas, em benefício, maior ou menor, às frações dominantes. No caso atual, ele foi elaborado social, econômica e politicamente pelo capital financeiro. Portanto, esculpiu-se uma entidade a serviço das finanças, por causa da hegemonia desta.
O atual Estado foi um Estado privatizado na sua natureza e em toda a sua extensão, a começar pela mirabolante proposta das instituições financeiras de deixarem em suspenso uma regulação estatal, visando obviamente a instauração da auto-regulação. Renovou-se o faroeste vivo e solto da mitologia americana. Do ponto de vista político, a presença das finanças forçou uma cisão, uma fissura, uma cirurgia no Estado, dividindo de um lado, uma presença forte, até totalitária, do mesmo, em relação a sociedade civil. E de outro lado, a razzia financeira, a livre exploração dos ativos financeiros inventados para aplicações e possíveis proteções empresariais. Quanto ao primeiro aspecto, não foi a troco de outra coisa que o Estado americano agiu guerreiramente no campo externo (exemplo, a ação predatória sobre petróleo no Iraque), e o estabelecimento de uma repressão da coletividade interna, (valham os casos, do Patriotic Act e do violento acréscimo de cidadãos presos). No tocante ao item da razzia financeira, separou-se e isolou-se, em desfavor das demais, a parte do Estado que se dedicou a criar condições para o cultivo dos rendimentos nos jardins dos ativos financeiros.
2 - Sucessão de quinze pontos
25 de fevereiro de 2010
Coluna das quintas
O SEGUNDO
TEMPO
DA CRISE
Por Enéas de Souza
O MEU MUNDO CAIU
1 - Para compreender a possível metamorfose da sociedade contemporânea é preciso saber da construção que está em rota de desabamento. Uma madeira cheia de nós e tensões, cupins e baratas. A finalidade é única: não repetir o mesmo, não realçar de novo esta hegemonia financeira. Pois, é da realidade de agora que temos que falar. Ela se engalanou, se empolgou, cresceu com os seus delírios, as suas especulações e numa das esquinas da vida, esbarrou no carro da crise, que vinha na contramão da ideologia neoliberal. O que aconteceu? Antes de tudo, a articulação sistema financeiro e Estado, sistema financeiro e produção, sistema financeiro e população foi armada, ao longo dos últimos trinta anos, para exibir a vitória das finanças dentro do triunfo do capital. Digo triunfo do capital, porque a Guerra Fria, com a queda da União Soviética, trouxe para o primeiro plano o lado financeiro do empresariado, a arrasadora presença das corporações bancárias e não-bancárias. Coisa que ficou dominando, fustigando, planta viva e planta carnívora, construindo moeda financeira; fazendo subir e descer mini-crises nos mercados de ativos financeiros; entrelaçando moeda, títulos privados e títulos públicos; fazendo um rodízio especulativo contra moedas, contra as aplicações imobiliárias, contra as ações na Bolsa, contra os produtos financeiros e especulando ostensivamente contra o petróleo e commodities. Depois de tantas crises miúdas e médias, explodiu, sem refinamento a grande recessão de 2007, puxada pelo personagem marginal das sub-primes.
2 - Como escrevemos num trabalho chamado a “Insustentável Leveza do Capital Financeiro”, o sistema financeiro girava uma máquina, que unia desregulação, alavancagem, sindicalização, securitização, agências de ratings e articulação especulativa das finanças e da produção”, buscando a acumulação financeira do capital. Ou seja, um modo outro do capital de acumular, ao contrário de aumentar seus volumes de riqueza pela produção, agora, a sua forma tinha a lantejoula e a plumagem do crescimento via papéis. Num mundo, onde tudo era ativo financeiro, desde os próprios, até os ativos monetários e os reais; as fábricas, as mercadorias, as empresas, a tecnologia, as hipotecas, os dólares, os euros, as obrigações, os derivativos, tudo, tudo, se perfilavam e se comportavam como ativo financeiro. Vendeu-se tudo, comprou-se tudo. Só que um dia, como sempre, alguém desconfia desta roda da felicidade, e sai fora. E o mundo cai, as finanças acordam em crise. Mas dormem sonhando com o retorno da forma que desmanchou-se. Na aurora seguinte, começa um devastação social, que devasta nos Estados Unidos, atravessa a Inglaterra, incomoda na China, requer malandragem no Brasil e desmaia na Grécia.
Então a pergunta acorda: “que tipo de construção social está diante de nós?”.
A DIALÉTICA ESTADO-CAPITAL
1 - O Estado a serviço das finanças
Vamos examinar um aspecto da complexa questão. Trata-se da relação entre a economia e a política, e nela, a construção do Estado financeiro, o Estado que acompanhou a carreira das finanças como a linha das ondas que chega com a maré à praia dos ganhos maiúsculos. Todo o objetivo da hegemonia financeira foi exatamente isso, criar um Estado poderoso, altamente coercitivo, mas flácido em relação ao desejo especulativo e a ambição de rendas fartas do setor. Uma sociedade precisa de um Estado que combine seus órgãos, sua burocracia, suas medidas de política econômica, seus planos de tratamento social das classes desfavorecidas, em benefício, maior ou menor, às frações dominantes. No caso atual, ele foi elaborado social, econômica e politicamente pelo capital financeiro. Portanto, esculpiu-se uma entidade a serviço das finanças, por causa da hegemonia desta.
O atual Estado foi um Estado privatizado na sua natureza e em toda a sua extensão, a começar pela mirabolante proposta das instituições financeiras de deixarem em suspenso uma regulação estatal, visando obviamente a instauração da auto-regulação. Renovou-se o faroeste vivo e solto da mitologia americana. Do ponto de vista político, a presença das finanças forçou uma cisão, uma fissura, uma cirurgia no Estado, dividindo de um lado, uma presença forte, até totalitária, do mesmo, em relação a sociedade civil. E de outro lado, a razzia financeira, a livre exploração dos ativos financeiros inventados para aplicações e possíveis proteções empresariais. Quanto ao primeiro aspecto, não foi a troco de outra coisa que o Estado americano agiu guerreiramente no campo externo (exemplo, a ação predatória sobre petróleo no Iraque), e o estabelecimento de uma repressão da coletividade interna, (valham os casos, do Patriotic Act e do violento acréscimo de cidadãos presos). No tocante ao item da razzia financeira, separou-se e isolou-se, em desfavor das demais, a parte do Estado que se dedicou a criar condições para o cultivo dos rendimentos nos jardins dos ativos financeiros.
2 - Sucessão de quinze pontos
Houve uma sucessão de características econômicas nessa contradição, nessa tensão, entre o Estado e o Capital, principalmente quando a pensamos a partir dos Estados Unidos. Destacando a temática desde os anos 70 até agora, enumero facilmente 15 pontos desta aliança/conflito:
Primeiro ponto: a liquidação da moeda que atendia a hegemonia produtiva: a supressão do dólar-ouro.
Segundo ponto: a construção de uma moeda financeira, o dólar papel, para substituir a precedente. O Estado dispôs o Banco Central, o FED, para definir a taxa de juro básica do mercado, e o Tesouro, para fornecer o título - títulos do Tesouro Americano - que possibilita o nível de valorização mínima da aplicação financeira. Acabam, assim, os dois órgãos do Estado, o FED e o Tesouro, por construir a função reserva de valor desta moeda. Também fica revelada a natureza da moeda que se instaura: o Estado garante.
Terceiro ponto: uma cisão na estrutura do Estado. Uma cisão entre o Estado dedicado a política monetária, financeira e fiscal – em resumo, a política macroeconômica de apoio as finanças – e o Estado dedicado aos demais aspectos da sociedade, salientando em primeiro lugar a guerra e o controle interno da sociedade.
Quarto ponto: o desgaste crescente da unidade do Estado nas questões financeiras. Uma das realidades importantes foi a criação de vários órgãos controladores (às vezes, embolando o nível federal, estadual e municipal) de setores financeiros: bolsa, seguros, setor imobiliário, etc. Ou, foi permitir que se estabelecesse o descontrole total, como no caso dos CDS onde a auto-regulação é absoluta. Tudo isso foi um torpedo das finanças no Estado.
Quinto ponto: a ocupação insustentável do Banco Central na posição de emprestador em última instância. No desempenho desta função, durante a crise, o FED teve que pedir auxílio ao Tesouro para poder absorver os títulos podres do sistema, através dos bail-outs e das linhas de liquidez. Em resumo: o Banco Central quebrou. E acredite, salvou-o, como se dizia na infância, o Rhum Creosotado. Aliás o Tesouro; logo, o Estado.
Sexto ponto: o crédito social como uma questão privada. O Estado não estabelece a direção dos empréstimos porque ele, sob a iniciativa das finanças, é submetido fortemente ao critério da máxima rendabilidade. Não há prioridades estratégicas do Estado para os empréstimos e os recursos para aplicações são atraídos pela instantaneidade valorativa do mercado financeiro. As alocações são vertidas para o curto prazo.
Sétimo ponto: a construção de um Estado financeiro. O Estado fica, por conseqüência da lógica econômica presenste, nas mãos das finanças, facilitando as necessidades e os objetivos desta. E fica a serviço inclusive da integridade do capital financeiro, no detrimento da sociedade como um todo. Vejam-se na composição dos bail-outs o que foi doado às finanças, à produção, e aos consumidores. (Aqui não podemos nem falar em cidadãos, pois esta “categoria” não influenciou nas decisões dos pacotes salvadores).
Oitavo ponto: o surgimento da “governança corporativa”. Toda a política de organização das corporações foi submetida à “governança corporativa” porque alisou as pretensões contraditórias dos financistas e dos acionistas, financeirizando toda a corporação, desde os seus objetivos, as suas metas, até a remuneração e a previdência de seus funcionários. Neste último aspecto o Estado deixou que a regulação e o cumprimento de uma política social funcionassem como uma janela de valorização do setor privado.
Nono ponto: o setor público como espaço ampliado de valorização do capital. O financiamento, os títulos e a dívida do governo estão igualmente à serviço das finanças, seja como fonte segura de suas aplicações, seja como a busca de recursos que o Estado traz do mercado financeiro para a salvação de diversos capitais do próprio sistema.
Décimo ponto: a ameaça das finanças às contas internas e externas do governo. Obviamente, esta ameaça depende do grau de ousadia dos capitais; da corrupção e da competência do Executivo, do Legislativo e do Judiciário; e do convencimento (via a indústria da mídia), do poder estatal e da sociedade para o uso do Estado em favor da área privada.
Décimo ponto: a ameaça das finanças às contas internas e externas do governo. Obviamente, esta ameaça depende do grau de ousadia dos capitais; da corrupção e da competência do Executivo, do Legislativo e do Judiciário; e do convencimento (via a indústria da mídia), do poder estatal e da sociedade para o uso do Estado em favor da área privada.
Décimo primeiro ponto: a pressão do Estado para o controle da inflação mundial. As finanças utilizaram o governo dos Estados Unidos e instituições para-nacionais, como o FMI e o Banco Mundial - via ajustes, planos, programas – para forçarem os Estados de diversos países a efetuar um controle inflacionário, com o objetivo de assegurar horizontes de cálculo para a valorização das aplicações e especulações da área financeira do capital.
Décimo segundo ponto: os capitais requerem a proteção do Estado contra eles próprios. As finanças concordam que deve haver um mecanismo básico de proteção contra o caráter auto-destruidor da natureza especulativa do capital. E aí o Estado serve. E serve para salvar a concorrência intercapitalista do risco sistêmico.
Décimo terceiro ponto: a competição dos capitais privados com o Estado pelo poder e pela regulação. No processo atual, as instituições chamadas “to big to tail” (“muito grandes para falir”) passam a afrontar o Estado no sentido regulatório, ou no sentido auto-desregulatorio. E com isso ameaçam a coesão unitária do Estado, produzindo, no mínimo, um nível elevado de imposição de suas políticas.
Décimo quarto ponto: as finanças ameaçam a moeda. Os capitais financeiros fazem e jogam na falência da solidez de uma moeda, como um dia fez Soros contra a Inglaterra.
Décimo quinto ponto: a busca de preservação do Estado por causa do tipo de movimentação das finanças. As nações (e os Estados) são ameaçadas pela especulação das finanças e ficam numa dupla situação: de um lado, são sustentadores político-econômicos da continuidade da existência das corporações financeiras; e de outro lado, terminam na dependência, em diversas ocasiões, do crédito privado, porque também se caracterizam como um dos locus de aplicação e fonte de rentabilidade dos capitais da área em pauta. Com isso, os países são internamente constrangidos pelas ações desbragadas e especulativas dos capitais privados. Não há dúvidas, a par das euforias, as finanças tem no seu âmago uma vocação explosiva E se os Estados, governados por um combinação política de classes, não tomarem a precaução de se preservar da competição feroz e destruidora dos capitais, eles terminam por implodir. Pois, o conflito é o rei da economia e da política.
A CRISE FINANCEIRA VAI DESCENDO O RIO
A CRISE FINANCEIRA VAI DESCENDO O RIO
Tudo isso tem a finalidade de mostrar como a crise atual se desdobra do mercado financeiro para o sistema financeiro; do sistema financeiro para o Banco Central, do Banco Central para o Tesouro, do Tesouro para o Estado. E, assim, hoje, com o excessivo endividamento dos Estados Unidos, com as crises anunciadas e efetivas da Grécia, da Espanha, da Itália, da Irlanda, estamos sentindo um cheiro de um segundo tempo: o tempo da crise fiscal. Com isso nos aproximamos de uma crise social e de uma crise monetária. Ou seja, estamos passando da crise dos setores privados para o setor público. E no centro da questão está o Estado, seja na sua relação com o referido setor privado, seja na sua relação consigo próprio, seja na sua relação com a sociedade civil. Pois, neste jogo, emerge uma diferença aguda. Uma diferença entre um Estado com unidade precária e crédito geralmente privado como os Estados Unidos, a Europa e seus países, e um Estado com unidade razoavelmente consistente, com crédito centralizado, como o da China. Por essa razão, é razoável dizer que o futuro do capitalismo sairá destas questões apontadas neste texto. E que envolvem o atual desenvolvimento da crise, do desdobramento do que estamos chamando de crise do segundo tempo, onde o segredo estará no resultado dos múltiplos confrontos sociais que existirão entre o capital financeiro e a sociedade. Combate que se expressará na definição de um Estado, resultante da trajetória dialética do Estado e do Capital.
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