quinta-feira, fevereiro 11, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
11 de fevereiro de 2010
Coluna das quintas

A SINFONIA
INACABADA
DA CRISE
Por Enéas de Souza

PASSAMOS AO COMPASSO FISCAL

Dando uma volta no mundo, a gente percebe que a crise é como aquele fogo lento que vai comendo uma erva aqui, desamparando uma árvore ali, subindo numa parede mais adiante e devorando uma folha de jornal, logo depois da esquina. E assim, o movimento da chama trabalha o seu passo inexorável. Contudo, um item é claro: não podemos ter como parâmetro para a crise atual a crise dos anos 30. Os desabamentos do capitalismo não são os mesmos. Ele sempre tomba, mas cada vez com um tombo diferente. Dito de outra forma: a configuração das crises não tem nunca o mesmo perfil, cada vez o seu retrato é diferente. Hoje, a foto de lado está mostrando uma profunda crise financeira e produtiva. Mas, já estamos flagrando o desdobramento dela, que vai se dando na península do Estado. Surgiu uma crise fiscal de corpo inteiro, a começar pela Grécia. De mais a mais, são candidatos fortes também Portugal, Espanha, Itália, Irlanda. Ponha-se igualmente a câmera sobre os Estados Unidos: uma dívida enorme, um déficit fiscal alentado, com o governo procurando controlar o orçamento. (E não estamos descrevendo a luta aberta entre as Finanças e Obama.) Mas, voltando à crise fiscal, não podemos negar que os investidores em títulos gregos, além de estarem forçando aumento de taxas para novas aplicações, estão jogando “proteção” contra os referidos ativos através do CDS. O que nos faz pensar que algum rombo nesta área pode levar a crise fiscal a por mais fogo na crise financeira. Ou seja, estamos vendo o começo de uma nova etapa da mesma crise que principiou em 2007?
(Comentário lateral: crise lenta tem este tom! Não termina só porque jornalistas e empresários e economistas dizem que a crise já passou e que estamos no pós-crise. Esta é uma crise que não se decifra num manual de economia matematizado ou no vai que vai de um financista voluntarioso).

O ELÁSTICO DA CRISE

1
- Olhando a anatomia da crise vemos que ela não fica somente nos elementos de uma parte do corpo. O rosto, por exemplo, que poderiam representar as finanças. O rosto com seus olhos que calculam a potencialidade pecuniária dos títulos. Ao contrário, ela revela que este corpo ocupa um lugar no conjunto do espaço e do mundo. E que este espaço e este mundo também estão empoeirados, estão bichados, estão devastados. Olhe só um pouquinho: o planeta atravessa uma crise ecológica sem precedentes, que afeta tanto a realidade rural como a urbana. E neste último aspecto, fala-se pouco, mas aqui o trauma é lancinante. Caos de transporte, caos de circulação, caos de distribuição de espaços, caos de moradias, caos de prevenções as mais diversas, caos de acessibilidade. E toda esta bagunça descortina na moldura das cidades, expressivas neves, temporais assustadores, terríveis abalos sísmicos, tempestades dementes, desaforados temporais e tsunamis terroristas. Dizendo rapidamente: uma série de catástrofes. Longamente anunciadas pelos ambientalistas, pelos ecologistas, pelos urbanistas, pelos arquitetos. E se a gente olha atrás deste panorama, há como que uma fiel companheira, mais guia do que seguidora, uma robusta crise de valores, cuja dança termina numa crise da civilização. Parece que estamos cortejando o pessimismo. Mas, Tarkovski, não terá razão quando diz que o pessimista é um otimista bem informado?

2 - Veja-se a crise de 30. A expectativa, não confirmada, era que havia a esperança de uma mudança para o socialismo, onde tudo seria diferente. Esta utopia que começava a fazer plantão já na guerra de 1914, atravessou a segunda guerra mundial, e esvaiu-se na praia e na queda dos muros dos anos 90. Hoje, na verdade, esta crise não tem utopia, tem o rosto de Medusa. Porque além se ser uma crise muito feia, as pessoas ficaram amnésicas; buscam saídas imaginárias, fantasiosas, de um otimismo prá cima. E não chegam a sentir que há de fato uma tremenda crise. No fundo, no fundo, esta amnésia mostra a máscara de um outro rosto, o rosto da impotência. A crise de fato está se autonomizando. Escapou das finanças, escapou da produção. E ameaça escapar do Estado. Falam que a verdadeira ameaça é o niilismo, como diria Nietzsche, que segue comandando este declínio americano e este tumulto da contemporaneidade. Com a barbárie dando vivas aos seus maiorais, a crise mergulha na noite dos crimes e dos medos. Bósnia, Bagdá, não são apenas nomes. Mas esperemos a inversão dialética: toda barbárie tem um quê de civilização. E que esta possa mudar o sinal da dinâmica social. E o tempo é uma questão chave. A crise dos anos 30 só inverteu o caminho da destruição depois da segunda guerra mundial. Uma guerra não é inexorável, porque os conflitos não necessariamente se solucionam apenas através da devastação bélica. Pois, a política está aí para isso. Mas, a pergunta, que vai ao ar, indaga: como a barbárie toma o míssil da civilização?

O TEMPO REI

1 - A temporalidade desta crise é complexa. Ela não é linear e, ao contrário daquela dos anos 30, não tem uma perspectiva fora do sistema capitalista. O capitalismo se mostra vulnerável, mas não parece estar numa crise terminal. Portanto, há que examinar e pensar a sua temporalidade. Crise financeira e crise produtiva chegaram juntas. A crise fiscal vem atravessando a rua e pode dar um novo choque na crise financeira e produtiva. Usando uma idéia schumpeteriana, o mundo tem um caminho de evolução que passa pela maturidade da trajetória das novas tecnologias de informação e pela busca de um novo paradigma energético. Mas, estes pontos estão apenas vislumbrados para daqui a pouco, no futuro da temporalidade. Fazem parte da resolução da crise. No entanto, eles habitam a beira da margem, ainda escura, deste rio. Há que clarear o horizonte para que eles naveguem. Não se pode deixar de ter cuidados, pois com o capitalismo se tornando cada vez mais companheiro do crime (desde o narcotráfico às empresas militares privadas), o trânsito do tempo em busca de uma nova perspectiva, inclusive de civilização, tem um longo caminho a percorrer. Thiago de Mello sempre teve razão: faz noite, mas eu canto.

2 – O atencioso leitor cético deve se questionar e inquirir: porque a sociedade se recusa a enfrentar todos esses personagens do apocalipse? (Que para muitos não são quatro como pensava Minelli, são muito mais. Guerra, peste, fome, corrupção, traição, predação, dizimação, genocídio, etc.) Daí, mesmo na sombra, com um olhar mais avantajado, passamos à pergunta seguinte: porque as festas do consumo, o gozo da guerra, a destruição do corpo do outro, a busca da escravidão, o assassinato como forma de política e de sociabilidade, etc. continuam a vigorar com uma intensidade perigosamente alta? Vamos assim de Ruanda ao Haiti, da máfia chinesa às finanças, do tráfico de drogas ao tráfico de pessoas, do consumo de drogas pesadas às “notícias de uma guerra particular”? Se a nuvem da ideologia é rompida, o mundo parece tenebroso. E estas facetas são coisas tão ativas que fazem do mundo atual a hora de uma sinfonia inacabada, por excesso de barulho e de bandoleiros. Mas, a temporalidade da crise continua avançando enquanto o celular da detonação está sendo ativado. O tempo, no entanto, continua rei, se transforma dando as cartas. A equação está pronta corretamente: de um lado a crise tende a sua explosão; de outro, a humanidade só é capaz de colocar os problemas que pode resolver. Como é que, então, se tira a cabeça do prêmio?

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