quinta-feira, outubro 29, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
29 de outubro de 2009

O ESTADO
COMO
RESERVA
DE CAÇA
Por Enéas de Souza


O Estado é meu!

A chave da reformulação da economia mundial é o Estado. Por mais que os neoliberais o combatam, por mais que vociferem contra, não podem deixar de pensar que é no Estado que as energias políticas, econômicas e financeiras vão ser geradas para as transformações da nova economia. Vejam-se os bail-outs americanos, vejam-se as desonerações dos impostos na economia brasileira. Olhando bem encontramos dois pontos decisivos. De um lado, o capital sem a alavanca e a proteção do Estado, sem uma política econômica que o ampare, no limite, ele encontra muitas dificuldades para decolar. Precisa de financiamento, de subsídios, de orientação tecnológica, de suporte para embates internacionais, etc. De outro, o capital não pode deixar o Estado levar a fama. E simplesmente, por quê? Porque, depois de tudo, o Estado é o local onde os confrontos políticos da sociedade encontram a sua solução e a sua aglutinação. E é nele que se organiza uma política econômica, onde se concretiza um pacto social em ato. E num regime capitalista, o que o capital desenvolve é a idéia de que o Estado é uma reserva de caça dele. E que, portanto, as instituições estatais não devem aparecer como aquelas que dirigem a sociedade, que orientam ou designam uma direção econômica. O que o capital deseja é que o Estado possibilite a liberdade do capital na busca de belas colheitas de lucro. Assim fazendo, dizem eles, o Estado deixaria a sociedade alcançar o melhor aproveitamento de seus recursos.

A verdade é que tanto o Estado é importante para a empresa privada, como a empresa privada para a sociedade. Só que, ouvimos outro dia, um empresário daqueles que erraram o rumo do seu mercado, sem reconhecer seus pecados, dizer: “na crise, este Estado teve pontos ineficientes”. Ou seja, na defensiva, partiu para o ataque. Porque sempre há o desejo de pôr o guizo no gato.

O tudo e o nada: a fronteira interna do capital

Esta ideologia é a aposta cega dos capitais, mas principalmente do capitalismo financeiro. E para tal, vale-se de um conjunto de idéias, de propostas, de artimanhas e de iniciativas que conduzem o capital a mandar sobre o Estado e sobre a própria sociedade que institui este Estado. E aí vem o principal: o Estado sim, tem que apoiar ao máximo o capital, mas, além disso, deve constituir-se como um Estado Mínimo, mas para a população. Assim, anula-se a idéia de um Estado de direitos sociais e civis. O que significa algo mais importante ainda: os setores de educação, saúde, previdência, segurança, etc. tornam-se fronteiras internas para a expansão do capital. Ou seja, o que o neoliberalismo propugnou foi mais do que o Estado não interferir. Foi que o Estado assegurasse que as empresas públicas e as políticas públicas fossem áreas para a expansão do capitalismo liderado pelas finanças. Financeirização e capitalização, o objetivo fundamental da política econômica e da política pública. Fernando Pessoa dizia que o mito é o nada que é tudo. E as finanças dizem que elas, que não produzem nada, financeirizam tudo. Soros, o financista, mostrou que há setores da sociedade que não devem ser capitalizados. Vejam o exemplo daquela associação pela paz que administrada como empresa financeira acabou por aplicar em ações da indústria bélica. E Aristóteles ainda dizia que o homem é um animal racional...

A cirurgia plástica do Estado

1 – A visão financeira do Estado é fazer desta instituição um ponto de transmissão da correia financeira, abdicando do controle, da fiscalização e da regulação dos setores bancários e não bancários, última instância, como um Jesus Cristo social, ser o salvador do capital nas horas desesperadas da crise. Só que para exercer bem estas funções, o Estado necessita fazer uma operação cirúrgica precisa, na verdade uma cirurgia plástica. A operação tem êxito quando ele consegue ter a aparência democrática, para dar legitimidade à entidade pública. Mas logo após a eleição há que interromper qualquer contato dos governantes com seus eleitores. Considere-se o primeiro Lula, e agora a presidência de Obama. As entidades privadas de classe passam a ser o intermediário das relações sociais, principalmente as entidades empresariais. Encontros que são feitos num ambiente de comunicação dominado pela mídia, esta indústria da ideologia. Ou seja, o Estado é cercado pelas entidades de classes, no caso atual, com a hegemonia das finanças. Vocês se lembram um das primeiras reuniões de Fernando Henrique logo depois da sua eleição? Foi com os banqueiros.

2 – E há uma segunda cirurgia. Esta é de medicina interna, feita dentro do próprio aparato de Estado. O que fez o bisturi político? Isolou órgãos econômicos, na estrutura burocrática, do resto do Governo, dando a eles a predominância indiscutível sobre os demais. Foi o caso do Banco Central e da Fazenda (Tesouro nos Estados Unidos). Mas para que a operação fosse bem realizada, ela trouxe um acréscimo notável: o presidente do Banco Central, que decide elementos fundamentais de política econômica, é escolhido nos conchavos burocráticos e empresariais e submetido pelo presidente da República à aprovação do seu nome pelo Senado. E com isso criou-se a autonomia ou a independência do Banco Central, o que se constitui na maior astúcia política das finanças, pois é o Banco Central que define o patamar básico da política de juros. E se no desdobrar da carruagem, o Banco Central tem apenas uma regulação tênue sobre o sistema, o que se percebe é que a independência do Banco Central é sinônimo da independência do capital financeiro. Pois ninguém pode se enganar: as finanças dominam francamente a indicação do nome.

O problema da omelete

O Estado é, assim, o resultado de uma democracia formal, que através da eleição coloca uma cúpula política, burocrática e administrativa que sustenta uma política econômica e social no exercício do seu poder. E como já vimos, este poder é balizado pelas entidades corporativas que dialogam com o Estado, mas também pelo jogo político estatal partidário, onde o embate do Executivo e do Legislativo assume o cenário principal das adversidades. E com esses aspectos simplesmente enunciados aqui, temos a brutal sensação de que o confronto eleitoral ficou apenas como um pano de fundo. E que o governante na sua ação, pode ou não respeitar. Isso se tiver capacidade e habilidade para contornar todas as arestas da disputa direta com as forças dominantes da sociedade e que tem acesso ao governante seja por pressão direta, seja por pressão política, seja por pressão midiática. Desta maneira, o caminho para a hegemonia de uma fração social depende da forma como o setor se ampara do Estado. E, sobretudo, dos pontos decisivos deste Estado. E quando a própria ação da sociedade e da política, no caso das Finanças, destaca órgãos (Banco Central e Finanças) para gerirem políticas econômicas em benefício deste setor, toda a composição dos demais ministérios do governo fica facilitada, porque a reserva de caça está já e há muito tempo delimitada. E, no caso americano, desde o governo Clinton as finanças aumentaram significativamente o seu poder, a ponto de tratarem de estabelecer uma política de desregulamentação, de fragmentação de controle e supervisão das múltiplas áreas financeiras (bolsas, seguros, imobiliárias, etc.) através das famosas agências reguladoras, que nada mais são do que o capital controlando e supervisionando o capital. É frigideira cuidando da omelete ou não se faz omelete sem quebrar os ovos.

O favor chama-se risco sistêmico

Quando a volúpia financeira desabou, o movimento foi claro. O Big Government serviu, através do Banco Central e do Tesouro, para articular com o Congresso, junto com ações práticas do Estado, o fornecimento aos bancos em desgraça de tudo o que era indispensável: capital, linhas de liquidez, troca de títulos podres por títulos do Tesouro Americano, taxas de juros convenientes, etc. Ou seja, as finanças estavam na defesa, mas em nome de um chamado risco sistêmico, o Estado interveio para salvar o possível do que estava em pedaços. Concentrou toda a sua política monetária, financeira e fiscal, em defesa das finanças. E, sobretudo, evitou qualquer projeto de estatização ou nacionalização dos bancos. Claro, em nome da liberdade de empresa e do livre mercado. O mesmo Estado que está dando garantias aos bancos, proporcionando tempo para que as finanças se recuperem e possam encontrar novos caminhos, é a mesmo que é impiedoso para os assalariados, presos nas foreclosures das hipotecas, e que é levemente benévolo para o capital produtivo em processo de decomposição.

Onde está o avião da economia?

O mundo está vindo abaixo, mas o Estado continua sólido e em defesa do capital financeiro. O único problema é a moeda. O Estado que garante o valor da moeda é o mesmo que permite o caminho da desvalorização do dólar, por causa do seu empenho fiscal em defender os bancos e as instituições financeiras. Aí aparece a negação deste processo. Trata-se de um mecanismo interno ao Estado e que se reflete direto no mercado, os déficits fiscais levam ao aumento da dívida estatal e conduzem à economia monetária e financeira a praticar uma disfunção na moeda. Com a desvalorização, temos a liquidação da função reserva de valor (garantida pelo próprio Estado, através da taxa de juros e dos títulos públicos do governo). E só esta ameaça introduz no coração do Estado a possibilidade dele realimentar a crise. Traz também a hipótese de que a instabilidade financeira possa derrubar a estrutura de solidez da instituição do Estado. Ou seja, neste momento se avizinha a uma zona de perigo que indica que o Estado deve ser reformulado, reformado, modificado, transformado. Estamos nas proximidades de um conflito social alargado. Embora não tenhamos chegado lá, há indicações de que a crise não terminou. Que a crise não é pós-crise, que ela chegou quando muito à transição da primeira fase da ruptura econômica para uma segunda fase. O avião está voando na direção das nuvens da depressão. Mas, mesmo entrando ou não em regiões de alta turbulência, o Estado continua a ser fundamental para a resolução dela, só que através de alterações que vão introduzir o reposicionamento das forças sociais. Há que perceber que este será o momento da postulação, da proposição e da execução de novas políticas econômicas. Só através do Estado é que pode se estabelecer um novo pacto social e o estabelecimento de um novo poder. Mas este não chega pela boa vontade das forças da sociedade, e sim depois de inúmeros equívocos de política e de vários confrontos. Se o dólar se deteriorar fortemente, a crise vai entrar num período de grandes comoções. Mas, em qualquer caminho que a sociedade venha a trilhar, o Estado é o elemento necessário e fatal. E, para isso, ele terá que deixar de ser reserva de caça.

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